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CAPÍTULO 2 – HISTÓRIA DE UMA EXPERIÊNCIA: O “FAZER-SE” DO MOVIMENTO

2.4. A incorporação dos movimentos identitários na pauta estudantil

2.4.3. O movimento pela questão racial

A aprovação da Lei de cotas (Lei nº 12.711) em 2012 representa, certamente, uma vitória importante da juventude negra no campo da educação. No entanto, a luta dos grupos e coletivos no combate às desigualdades raciais e pela ampliação das oportunidades sociais não é nova. Neste sentido, a aprovação da lei de cotas é um reflexo do conjunto dos esforços da luta do povo negro, de sua organização política e sensibilização da sociedade no tocante ao preconceito, a diversidade e as desigualdades das relações entre os grupos humanos em sociedade.

No interior do movimento estudantil, a incorporação da temática racial vai se dar de forma semelhante à luta das mulheres e dos grupos que pautam a diversidades sexual. Assim como estes, a questão negra emerge com mais ênfase após a redemocratização, momento em que uma rede de movimentos sociais surge e ganha maior visibilidade. Nos anos 1990, há o aparecimento dos primeiros grupos organizados que vão abordar o tema da questão negra na

universidade através de encontros, notas, panfletos e em reuniões e instancias de decisões estudantis. E, nos anos 2000, observa-se a institucionalização e inclusão da política antirracista no quadro da organização institucional dos estudantes (MESQUITA, 2006).

Nos anos 1990, o Seminário Nacional de Universitários Negros (SENUN) que aconteceu na Universidade Federal da Bahia UFBA, em 1993, é um dos marcos para se pensar a organização dos grupos e coletivos que pautam a temática da questão negra dentro da universidade.

Segundo as notas de jornais da época e o boletim desenvolvido pelos participantes (Cf. Anexo), a pauta do seminário debateu questões como: o ensino superior sem racismo; a necessidade de que o conhecimento seja produzido a partir de uma perspectiva do próprio negro; maior representatividade do negro nas universidades etc.

Em matéria à época do Jornal da Bahia intitulada “Negros lutam por uma universidade sem cor”, a coordenação nacional do SENUN afirma que "[...] a universidade ideal seria aquela que não tivesse mais o negro como objeto de estudo, e sim, que ele fosse o sujeito do estudo. Em outras palavras quer dizer que o negro possa ter mais acesso ao conhecimento, uma vez que

somente 3% entram na universidade [...]" (Jornal da Bahia, setembro de 1993)40.

Se nos anos 1990 há o surgimento dos primeiros grupos organizados que ao sair dos guetos começam a pautar a questão negra na universidade – embora ainda de forma descontínua –, nos anos 2000 observa-se um aumento desses grupos que darão continuidade à esta pauta no ensino superior. Nos dias atuais, estes grupos e coletivos atuam amplamente nas universidades e, assim como o movimento de mulheres e da diversidade sexual, eles conseguiram abrir frentes dentro do movimento estudantil chamando a atenção para a necessidade de abraçar as demandas de parte significativa dos estudantes brasileiros representados pelos seguimentos feminino, LGBT e negro.

A expansão da universidade ocorrida nos últimos anos e um cenário mais favorável, devido ao crescimento dos grupos que evidenciam a questão identitária, tem favorecido o surgimento de coletivos nas universidades como o Coletivo Negrada e o Coletivo Kizomba, por exemplo, que atuam no movimento estudantil. Atualmente, a pauta negra já está amplamente incorporada nos diversos espaços institucionais do ME, como mostra este trecho da “Resolução de Movimento Estudantil aprovada no 55º Congresso da UNE”:

Fruto da democratização do acesso às Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e privadas através das políticas educacionais implementadas recentemente, o perfil estudantil das IES gradativamente se populariza e, consequentemente, a direção e a política do movimento estudantil

40 Cf. Anexo, p. 269-270.

brasileiro incorporam a política feminista, antirracista, anti-LGBTfóbica

e popular. Nesta gestão, comemoramos ter realizado o maior Encontro de

Negros, Negras e Cotistas; de Mulheres Estudantes e LGBT da história; comprovando nitidamente que a UNE é uma das principais entidades comprometidas com a democracia e a representatividade na política brasileira, aprofundando a cada gestão as políticas de reparação (UNE, 2017, p.3).

A institucionalização das pautas do movimento feminista, LGBT e negro no ME não se dá, porém, sem conflitos:

É claro que a incorporação destas bandeiras de luta na dinâmica domovimento estudantil [...] não é realizado sem conflitos. A própria formatação de um trabalho realizado em modelo de secretaria – consequência da alta institucionalização destes grupos – é passível de críticas por parte de coletivos no interior do movimento. Além disso, nem sempre o surgimento destas secretarias em sua estrutura expressa algum tipo de interesse por parte do movimento estudantil clássico em abordar ou realizar algum tipo de atividade referente a estas temáticas (MESQUITA, 2006, p.51-52).

O movimento estudantil universitário se fez, enquanto movimento social, através da experiência política de jovens de diferentes épocas ligados a grupos políticos e coletivos na busca da consolidação de uma sociedade democrática, inclusiva e de uma educação pública de qualidade. O surgimento da UNE, em 1937, permitiu, a partir de então, reunir em torno de uma entidade representativa os desejos, anseios e utopias de estudantes de todo o Brasil. Foi, assim, cobiçada por diferentes grupos de orientações políticas distintas que almejaram guiar a massa dos estudantes em momentos decisivos da nossa história. Neste sentido, revela-se como um campo de força em constante disputa.

Como um movimento de estudantes em sua grande maioria procedentes da classe média, sua pauta refletiu, de certa forma, os anseios desta classe. Na passagem dos anos 1990 para os anos 2000, a inclusão da pauta dos movimentos identitários na estrutura organizativa do movimento estudantil representou uma atualização deste movimento em relação a uma tendência que já começa a se esboçar neste período.

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Do período de retomada da democracia ao início dos anos 2000, a experiência política dos estudantes foi forjada em meio a dispersão do ME e da gradual perda de representatividade de suas instituições representativas. Entre outros fatores que levaram a isto podemos citar: a forte influência dos novos tempos marcados pelo colapso do socialismo real, a introdução da

política e ideologia neoliberal no Brasil, a ampliação do número de estudantes universitários e da diversidade interna do ME e a reinvenção da política com novos modelos de participação. Ainda assim, movimentos como o Fora Collor e as mobilizações contra as imposições do FMI na política brasileira – além da incorporação das pautas identitárias no ME –, demonstraram a capacidade agregadora da juventude para a ação.

Em meados da primeira década dos anos 2000, a reforma do ensino superior, ocorrida nos governos petistas, promoveria uma mudança significativa na base social do alunado das universidades públicas federais. Como isto ocorreu e as consequências para a universidade, os estudantes e o movimento estudantil é o assunto que discutiremos no próximo capítulo.

CAPÍTULO 3 – QUE A UNIVERSIDADE SE PINTE DE POVO: UNIVERSIDADE