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CAPÍTULO 2 – HISTÓRIA DE UMA EXPERIÊNCIA: O “FAZER-SE” DO MOVIMENTO

2.2 Autoritarismo

2.2.1 A invasão da UNB, a criação da Lei Suplicy e os Acordos MEC-USAID

O período que compreende o início da ditadura militar no Brasil, em 1964, e as lutas pelas Diretas Já, entre os anos de 1983-1984 – e que culminou com as eleições indiretas que elegeram Tancredo Neves para Presidente da república – está inscrito no imaginário popular como o mais intenso e atuante do movimento estudantil brasileiro. Também não poderia ser diferente. As várias medidas postas em prática neste período, que procuraram reestruturar a educação nos moldes americanos e a linha dura e antidemocrática do governo no combate às ideias de oposição, fizeram do regime militar o grande inimigo a ser combatido pelo movimento estudantil.

Neste caso, a recíproca também era verdadeira. Uma prova do reconhecimento do poder de organização e atuação dos estudantes – e da tentativa de desestabilizá-lo – foram as diversas iniciativas postas em prática para desarticular o movimento estudantil que, como vimos, desde

a criação da UNE, em 1937, sempre esteve presente no debate das questões de interesse nacional. Não à toa, no primeiro dia do golpe militar a sede da UNE foi incendiada. No campo da educação, entre as principais ações do governo militar, à época, com vistas a desorganizar os estudantes estão a invasão da UNB, a criação da Lei Suplicy e os Acordos MEC-USAID.

Nove dias após o golpe de 1964 a Universidade de Brasília (UNB) teve suas dependências invadidas por tropas do exército a mando do Marechal Castelo Branco com a desculpa de que poderiam haver irregularidades naquela universidade. Fundada em abril de 1962, sob o signo da reinvenção do ensino superior no Brasil, a Universidade de Brasília reuniu entre seus idealizadores nomes como os do antropólogo Darcy Ribeiro, o educador Anísio Teixeira e o arquiteto Oscar Niemeyer. Apesar do pouco tempo de fundação, o empenho destes e de outros intelectuais na formação do quadro de professores e nas diretrizes da universidade já a colocava numa posição de vanguarda em relação as instituições de ensino superior no Brasil.

Com a invasão da UNB pelos militares, deu-se início a perseguições a professores e alunos, confisco de livros e interdição de bibliotecas; demissão em massa de professores – muitos mandados para o exílio taxados como criminosos e subversivos. Anos depois, refletindo sob o ocorrido, Darcy Ribeiro escreveu em seu livro “UNB: invenção e descaminho”, de 1978:

Quando, amanhã, o Brasil – e dentro dele a Universidade de Brasília – conquistar a alforria para retomar o comando de seus próprios destinos, precisaremos recordar estes dias trágicos da travessia do túnel da iniqüidade. Entre eles, principalmente, o da invasão de 1964, em que, depois de assaltada por tropas motorizadas, a UnB teve diversos professores presos levados a um pátio militar para serem ali desnudados e assim humilhados por toda uma tarde. [...] Será preciso recordar igualmente a demissão de 1965 quando, acompanhando solidários os quinze expurgados, duzentos e dez professores deixaram a Universidade de Brasília, a cidade, e a maioria deles o país. Também não deve ser esquecido este episódio histórico: é o dia da diáspora (RIBEIRO, 1978, p. 85).

Contra as arbitrariedades do regime, os estudantes reagiram deflagrando greves em apoio aos professores e exigindo respeito à autonomia universitária, além da renúncia do reitor-interventor nomeado pelos militares para a direção da universidade. O caso da invasão da UNB não foi um evento isolado, em todo o Brasil houveram situações semelhantes de perseguição, desmantelamento e exílio do quadro de professores e funcionários das instituições de ensino superior. Da mesma forma, houve resistência por parte dos estudantes. No entanto, os obstáculos às suas atividades se tornavam cada vez maiores, como indica a aprovação da Lei Suplicy de Lacerda ainda no mesmo ano do golpe.

Com o objetivo de limitar e ter um maior controle das atividades estudantis foi aprovada, em novembro de 1964, a Lei nº 4.464, popularmente conhecida por Lei Suplicy de Lacerda. A lei que ficou conhecida pelo nome do então Ministro da Educação visava estabelecer uma nova regulamentação de funcionamento das entidades de representação estudantil ficando a partir de então sob controle direto ou indireto do Ministério da Educação. Assim, a UNE foi

[...] substituída pelo Diretório Nacional de Estudantes, e as uniões estaduais, pelos diretórios estaduais (DEEs). Impedia-se, além disso, através de restrições as mais variadas, o livre curso do diálogo entre diretórios acadêmicos e os alunos. Na regulamentação das entidades, feita inteiramente à revelia dos estudantes e sem consulta-los, a Lei Suplicy de Lacerda tornava possível a convocação do Diretório Nacional dos Estudantes pelo Ministério da Educação ou pelo Conselho Federal de Educação, ferindo, assim, o mais elementar princípio de funcionamento de uma entidade de representação, o direito de autonomia (POERNER, 2004, p.212).

Com a aprovação da Lei Suplicy de Lacerda pelo congresso, ainda no ano de 1964, os militares deixaram claro seu objetivo de desarticular as organizações estudantis e inviabilizar qualquer tipo de investida dos estudantes contra as arbitrariedades do regime. Ao tomar o poder via golpe, os militares sabiam que sofreriam oposição por parte de seguimentos da sociedade civil; e os estudantes – ponta de lança das lutas políticas das últimas décadas – certamente estariam nas primeiras fileiras da resistência contra os militares.

A Lei Suplicy de Lacerda cumpria, assim, uma função: ela foi um meio para se atingir um fim específico que não era o de simplesmente desarticular o movimento estudantil, mas preparar o terreno para a implantação de reformas profundas na educação brasileira. Tais reformas seriam introduzidas através de acordos entre o governo brasileiro e uma agência norte-americana. Assim, os acordos MEC-USAID, como ficaram conhecidos, englobaram uma série de convênios entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID) que tiveram início no ano de 1964 e se estenderam até 1968 com a aprovação da lei de reforma universitária (Lei 5.540/68).

O objetivo de tais acordos era introduzir no Brasil um modelo de educação que se aproximasse do modelo norte americano. Em seu conteúdo, os acordos MEC-USAID deixavam clara a submissão do Brasil neste processo, uma vez que, para sua efetivação, seria necessária a contratação de técnicos e assessores americanos aos quais caberiam a implantação do novo regime de ensino.

Além disso, a ruptura política levada à cabo pelos militares e setores da classe dominante foi tida como necessária para a garantia da continuidade da ordem socioeconômica vista, então, como ameaçada pelo grupo político que ocupava o poder. Assim,

a nova situação exigia adequações no âmbito educacional, o que implicava mudanças na legislação que regulava o setor. [...] [Desta forma], bastava ajustar a organização do ensino ao novo quadro político, como um instrumento para dinamizar a própria ordem socioeconômica (SAVIANI, 2011, p.26).

O desejo de reforma e modernização do ensino superior não era, naquele momento, algo novo. Desde a década de 1940 que administradores educacionais, professores e estudantes almejavam mudanças significativas na estrutura e organização das universidades. Assim, “quando os assessores norte-americanos aqui desembarcaram, encontraram um terreno arado e adubado para semear suas idéias” (CUNHA, 1988 apud GERMANO, 1994, p.117). No entanto, a forte oposição dos estudantes às reformas do ensino superior visava mostrar que estas eram reformas conservadoras, implementadas de forma vertical e que não atendiam aos interesses

nacionais. Isto ficou claro no teor do relatório Atcon21, de 1966, que destacava

a necessidade de disciplinar a vida acadêmica, coibindo o protesto, reforçando a hierarquia e a autoridade. Além disso, o relatório enfatizava a importância de racionalizar a universidade, organizando-a nos moldes empresariais, privilegiando, assim, a questão da privatização do ensino (GERMANO, 1994, p.117).

Florestan Fernandes (1975) ao abordar a questão da reforma universitária deixava claro que esta, para que fosse levada a cabo, necessitaria, antes de tudo, de uma institucionalização do jogo político democrático. Assim, o reformismo exige, segundo o sociólogo, uma sociedade de estrutura democrática que possa aperfeiçoar a ordem social através de opções coletivas fundamentadas no consenso da maioria. Como as reformas propostas pelo governo militar se deram no marco não de uma democracia, mas de uma ditadura só poderiam ser úteis para a

manutenção do status quo e da revitalização do poder conservador. Neste sentido, afirma que

[...] a reforma universitária [foi] consentida como uma manifestação de tutelagem política e como mera panacéia. Não podemos aceita-la porque ela não flui de nossa vontade, não responde os anseios que animam a nossas lutas pela reconstrução da universidade e não possui fundamentos democráticos legítimos (FERNANDES, 1975, p. 203-204).

Estava claro que o conjunto de medidas tomadas pelos militares visando mudanças profundas na educação brasileira tinha como objetivo alinhar as diretrizes gerais da educação

21 Relatório desenvolvido por Rudolph Atcon, sob encomenda do MEC, no período de junho a setembro de 1965. Continha propostas para a reformulação das universidades brasileiras que atendessem aos pressupostos americanos de racionalidade, eficiência e eficácia das instituições. Com esse intuito visitou 12 universidades (entre elas a UFPB). Atuou também assessorando a reforma universitária em outros países da América Latina, como o Chile, na América Central e no Caribe. Cf. ZANDAVALLI, 2009.

no Brasil ao modelo ideológico conservador que se instaurara com fins claramente de manutenção da ordem econômica.

Além de instaurar um regime excludente, os militares se utilizaram do recurso da cooptação dos estudantes e líderes estudantis através de entidades norte-americanas com atuação no Brasil com vistas a promover o intercâmbio de estudantes brasileiros para os Estados Unidos. Este papel coube à Associação Universitária Interamericana (AUI) que, por trás da ideia da promoção de intercâmbios para conhecer os EUA, a vida familiar americana e o diálogo com professores e estudantes americanos, visava mostrar ao estudante “o bom capitalismo, como é exercido nos EUA”. Para isso procurava-se as lideranças estudantis, “[...] pois a liderança é a única característica que não pode ser criada” (POERNER, 2004, p.221-223).

Outra forma de cooptação de lideranças estudantis se deu através de programas governamentais de extensão universitária como, por exemplo, o “Projeto Rondon”, o Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária (CRUTAC), a “Operação Mauá” e a Fundação Mudes (Movimento Universitário de Desenvolvimento Social), esta última com vínculos com a iniciativa privada. Tais programas de extensão universitária junto às comunidades distantes da realidade dos estudantes tinham como objetivo, antes de tudo, combater focos de subversão e fomentar práticas paternalistas e de caridade junto às populações visadas por estes programas (GERMANO, 1994, p.136-137).

As reformas na educação não se limitaram apenas às mudanças no ensino superior. A introdução da disciplina de “Educação Moral e Cívica” nas escolas de todos os graus e modalidades dos sistemas de ensino no país, através do Decreto-Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969, cumpria a função de fomentar princípios básicos de disciplina, obediência e respeito às instituições (como a família, a escola e o Estado). Isto fica claro no texto preparado pela “Comissão Nacional de Moral e Civismo”, em 1970, que resumia a finalidade da disciplina: “o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições, e aos grandes vultos da história”, “O

culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integração na comunidade”22.