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1.2 Marialice Foracchi: a sociologia do jovem e do estudante na sociedade moderna

1.2.1 O Estudante e a participação no processo de transformação social

Com a publicação de “O estudante e a transformação da sociedade brasileira” (1965),

Foracchi deu início a um estudo de fôlego no entendimento do estudante enquanto categoria social e os determinantes que fazem deste um agente de transformação. Assim, evidencia a especificidade de sua pesquisa em relação a outras mais focadas nas condições sociais ou psicológicas que influenciam as atitudes e opiniões dos estudantes; trabalhos que tomam a juventude sob o ângulo do desvio social e que tem como objetivo propor soluções assistenciais, entre outros.

Segundo Foracchi, seu trabalho demarca uma diferença em relação aos anteriores uma vez que "a classe, como categoria explicativa, é convertida no eixo básico da exposição, já que a compreensão objetiva do processo de constituição do estudante como categoria social, não dispensa a elucidação da natureza e dos conteúdos de classe" (FORACCHI, 1965, p. 06).

Para a autora a condição de classe tem um destaque fundamental na compreensão das condições sociais as quais estão inseridos os estudantes na sociedade brasileira. A noção de classe enquanto suporte para a análise tem sua importância na medida em que as relações de

classe, segundo a autora (Idem, p.66), "[...] compreenderia, então, relações de localização,

caracterizadas por padrões peculiares de pensamento e de experiência". A partir deste entendimento, a autora estabelece um roteiro de análise que vai da relação do estudante com a família, passando pelas relações no plano do trabalho/carreira e a participação política.

No primeiro e segundo capítulo, a autora analisa o comportamento do estudante focando no nível das relações interpessoais que se passam no âmbito familiar. Aqui, a relação do estudante com a família é caracterizada como uma relação de manutenção. Há uma acomodação do jovem à situação familiar uma vez que, havendo laços de dependência, há por parte da família uma “[...] forma de controle que traz para o estudante novos compromissos e novas

responsabilidades” (Idem p.26). Foracchi evidencia uma teia de vínculos em que o estudante

está ligado por relações de dependência primeiramente à sua família e esta, por sua vez, que se interliga à sociedade global sofrendo os impactos que sua posição de classe comporta neste sistema. Segundo a autora, não há nisto uma relação de tensão, mas sim de acomodação “[...] nas quais os vínculos de dependência são fortemente acentuados e constantemente redefinidos”

(Idem p.26).

Preso neste intricado jogo de compromissos, o jovem, segundo Foracchi, não estaria apto para empreender uma “atuação de ensaio”, convertendo-se numa espécie de “réplica prematura do adulto”. Afirma ainda que há entre o jovem e o adulto uma continuidade quanto

a sucessão natural das gerações que se dá através dos vínculos de manutenção. Neste sentido, a família se esforçaria no controle das atividades do estudante visando “prolongar a situação de manutenção, isto é, manter pelo maior espaço de tempo possível o estudante comprometido

com uma responsabilidade direta de retribuição” (Idem p.44). Foracchi entende que tais arranjos

assim se desenvolvem uma vez que a família teria como objetivo garantir sua posição no sistema, mobilizando para isto todo um conjunto de mecanismos de controle com fins de manipular o jovem para garantir sua ascensão e a da própria família.

Este projeto de ascensão que se desenvolve primeiramente no âmbito familiar – através de relações de manutenção – tem continuidade agora em outro nível, ou seja, no plano do trabalho. Neste nível, há uma gradativa ascensão do estudante no sentido de trilhar um caminho de independência em relação à família. “Ocorre, no entanto, que os vínculos de dependência, antes atuantes no plano familiar, passam a ser plasmados na situação de trabalho pelo simples

fato de não poder o jovem, sem a remuneração obtida, manter-se como estudante” (Idem, p.12).

É certo que a estrutura da sociedade e das instituições brasileiras – como a família e o Estado, por exemplo – em meados dos anos 1960 era bem distinta da que se constituiu nas últimas décadas do século XX e agora no século XXI. Naquele momento, a ascensão ao ensino superior era privilégio das classes de melhor condição econômica. No entanto, a permanência na universidade só poderia ser garantida, para alguns, com a oportunidade de trabalho uma vez que “o estudante, sem trabalhar, não pode manter-se como estudante e é esta a principal razão

que o faz procurar trabalho ou manter-se através dele” (Idem, p.142).

É, portanto, no terceiro capítulo do livro, em que discute trabalho e autonomia, que Foracchi fala do movimento da transformação do jovem em estudante possibilitada pelo acesso deste ao trabalho. Isto acontece com o processo de vinculação deste ao sistema que pode ocorrer em diferentes situações de classe. Essa passagem do jovem à condição de estudante permite a este uma maior liberdade em relação à família ao mesmo tempo em que o vincula ao sistema criando outros elos. Portanto, é através da passagem do jovem à estudante que se dá a garantia da ascensão de classe e o acesso ao ensino superior é o meio em que isto vai se confirmar.

Quando o sistema se constitui como um momento particular do sistema de classe e a família, como uma das expressões da situação de classe, a educação universitária apresenta-se como requisito necessário do processo de transformação social e o jovem como agente efetivo desse processo (FORACCHI, idem, p.125).

Para Foracchi (idem, p.125) há na situação de classe as condições para que a educação opere como fator de mobilidade. “É neste sentido que a transformação do jovem em estudante se torna paralela ao processo de constituição da classe média”.

Por parte da família há uma expectativa de realização profissional, de consolidação de uma posição já adquirida e perspectivas de mobilidade que se voltam para o estudante, visto como o agente humano capaz de realizar o projeto familiar. A educação, através do ensino superior, é de fundamental importância neste processo de mobilidade. No entanto, no jogo das relações sociais que envolvem a definição de papéis dos jovens,

[...] a participação em setores extrafamiliares, especialmente no convívio universitário e na situação do trabalho, [o] conduzem a um gradativo desvinculamento da família e à progressiva redefinição crítica de valores que até então balizavam o seu comportamento, a rebelião do jovem surge como uma tentativa inicial de romper drasticamente os vínculos de dependência formados na situação familiar (FORACCHI, idem, p.181-182).

A ascensão através da carreira se torna o meio que projeta o estudante em força para o futuro e que, agindo assim, impulsiona também todo um projeto de classe, expectativas e projeções que podem ser correspondidas em maior ou menor grau.

Ao analisar a práxis estudantil, Foracchi destaca que esta tem que ser feita no contexto

de sua classe de origem. Deste modo, vários mecanismos de vinculação do jovem ao sistema (como a família, o trabalho e atuação profissional) agem no sentido de mantê-lo nos trilhos que o levarão à realização do projeto de classe. Quando as “implicações alienadoras do vinculamento” são percebidas a nível de tolhimento das opções de ação, a atuação do jovem se dá no sentido de uma atuação radical de engajamento. “Radical, porque esta ação lhe permite

visualizar a classe através das suas limitações, através daquilo que lhe é negado” (idem, p.238).

A ação do estudante, segundo a autora, teria como propósito ultrapassar os limites de sua condição de classe média em ascensão. Isto não quer dizer que ele seja contra esta, mas contra o sistema que a produz e assim sua ação acontece dentro dos limites de sua condição e das possibilidades de ação abertas. O “desvinculamento do estudante” – de todo o conjunto de mecanismos que visam integrá-lo ao sistema – está ligado a toda uma reformulação de valores e uma redefinição de interesses que são analisados pela autora a partir da situação brasileira e da ação do estudante.

Qual seria então a classe de origem dos estudantes investigados naquele momento (meados de 1960) e quais as dificuldades e desafios impostos por sua posição?

As condições sociais da participação do estudante no processo brasileiro devem ser investigadas no contexto de referência de sua classe de origem que é, predominantemente, a pequena-burguesia ascendente, denominada por alguns autores de “nova classe média”. [...] Com efeito a condição assalariada a vincula, positivamente, às camadas populares, fazendo-a, não raro, compartilhar das suas reivindicações nem que seja exclusivamente em moldes de tímido ou subjetivo apoio. Por outro lado, essa mesma condição de assalariada vincula-a, em termos de dependência e subordinação, à experiência acumulada e à visão histórica das camadas dominantes, incapacitando-a para qualquer efetiva tomada de posição que exija a ruptura desses vínculos (FORACCHI, idem, p. 221-222).

A análise de Foracchi apresenta-nos um quadro da situação em que se dá a participação do jovem no processo de transformação da sociedade brasileira. Como exposto, os dilemas desta ação estão ligados à uma série de mecanismos que atuam num processo de vinculação do jovem ao sistema que evidenciam sua posição de classe e as exigências consequentes deste vínculo. A questão que se apresenta então é: como poderá o jovem romper com os dilemas de sua posição de classe?

É no convívio do ambiente universitário que se reelaboram as ações e os papeis que deve desempenhar o estudante. Foracchi nos mostra que, se por um lado há o sistema com seus mecanismos de vinculação; por outro, há os efeitos integrativos da socialização com a abertura proporcionada pelo desempenho de papéis. O estudante se encontra entre estes dois mundos: um, em que as forças integrativas visam acomodá-lo ao sistema com vistas a dar continuidade a todo um estilo de vida já consagrado e valorizado pela tradição; e outro, aberto pelas oportunidades de socialização permitida pelo acesso ao trabalho e ao ambiente universitário, locais em que os valores são resignificados e que podem encaminhá-lo a um projeto de participação social.

Assim, os processos de socialização podem levar à autonomia. Por sua vez, a educação universitária atua como um mecanismo de ratificação da trajetória social consolidando, principalmente, a ascensão das classes médias e altas. Foracchi conclui concordando com Mannheim quanto ao poder de transformação social da juventude enquanto força dinamizadora do sistema social:

“a juventude envolve, também, um estilo próprio de existência e de realização do destino pessoal. Menos que uma etapa cronológica da vida, menos do que uma potencialidade rebelde e inconformada, a juventude sintetiza uma forma possível de pronunciar-se diante do processo histórico e de constituí-lo, engajando-se (FORACCHI, idem, p.303).