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2 CONCEITOS FOUCAULTIANOS: SABER, PODER, GOVERNO,

2.4 As primeiras inscrições de uma Sociedade de Controle e suas implicações

Iniciamos esta seção nos situando sob a construção teórica do pensamento de Deleuze (1992b, p. 216) que nos diz que

A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina: as máquinas simples ou dinâmicas para a soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle.

Essa proposição não figura como uma realidade estanque, ou mesmo acabada. Ela surge como uma espécie de ―profecia‖ no sentido de antecipação, mas, claro, advinda da atenção aos movimentos inventivos constituidores das sociedades e realidades vividas. É nesse caminho que buscaremos trilhar nesse momento.

Ao mapear as formas como o poder vinha atuando nas sociedades europeias, Foucault (2010d) apresenta a passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares. Enquanto na sociedade de soberania o objetivo e funções eram ―açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida‖ (DELEUZE, 1992a), as sociedades disciplinares, através da disciplina buscaram

o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade (...) Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (FOUCAULT, 2010d, p. 164).

Em meio a muitas transformações sociais e, consequentemente com a crise do poder do soberano, a ordenação da morte vai dando lugar à gestão da vida, característico e atuante no modelo disciplinar (MIRANDA; EL KHOURI, 2016).

Particularmente, no contexto desse trabalho, vemos que as escolas chegaram ao seu ―apogeu‖ no bojo do modelo disciplinar, operando com uma vigilância hierarquizada, própria de todas as instituições disciplinares, que mais se aproximava de uma espécie de ―maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento‖ (FOUCAULT, 2010d, p. 167), e de um novo modelo econômico a partir do castigo, que no sistema punitivo é estruturado em via de mão dupla: gratificação-sanção. Além de trazer o bem e o mal, como elementos basilares para análise dos comportamentos (ibid).

Mas também as sociedades disciplinares entraram em crise, sobretudo com o declínio dos diversos meios de confinamento tais como a prisão, a fábrica, a família e a escola, o que fez despontar um novo arranjo nos processos disciplinares. Deleuze (1992a) vai nos lembrar de como os

ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo‖ (p. 219).

Essas iniciativas são apenas tentativas de gerir a agonia dessas instituições, mas já se percebe que novos mecanismos agenciadores das subjetividades estão em construção.

Entendemos que não seja possível uma sociedade sem marcas de mecanismos que dominaram o cenário anteriormente, uma vez que não se trata de uma sobreposição de um modelo para outro, porém, podemos identificar novas formas de operar, mais específicas e adaptadas, que convivem com os modos antigos, e que podem anunciar um novo modelo de sociedade.

Assim como a sociedade disciplinar sucedeu às sociedades de soberania e cuja transição foi feita de maneira progressiva e com manutenção de algumas técnicas desta última, assim também despontam as sociedades de controle, sem que as técnicas disciplinares desapareçam, mas convivam. Na verdade, a sociedade de controle opera a partir de um redimensionamento e amplificação dos modos constituintes da sociedade disciplinar.

Deleuze (1992a) vai indicar uma compreensão de que as sociedades disciplinares estariam cedendo espaço às sociedades de controle e essa transição poderia ser percebida na observação de que os mecanismos disciplinares, como o confinamento e a domesticação do corpo, engrenagens próprias de instituições tais como a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família, estão sendo substituídos por agenciamentos mais sutis e mais contínuos. Embora mantenham a recompensa e a sansão como elementos ainda presentes (como no modelo disciplinar) (FOUCAULT, 2010d), cada vez mais o sistema de sansão vai sendo mais especializada e a recompensa revestindo-se de novas técnicas. Os indivíduos são, cada vez mais, convocados para uma autorregulação e autovigilância permanentes, como caminho do ser-sujeitos desta sociedade. Outro fato importante é que, se antes (nas sociedades disciplinares) vivia-se em um eterno recomeço, hoje, nas sociedades de controle, isso seria substituído pelas ideias de que nunca se termina nada. Vivemos isso através do discurso sempre constante, por exemplo, da educação permanente, em suas múltiplas possibilidades e operando no interior das instituições, sobretudo no interior das escolas.

É importante salientar que estamos na difícil tarefa de observar uma transição, que pode ter tantas curvas, reviravoltas e retornos, não podemos dizer, identificar com exatidão suas bordas, seu delineamento, sobretudo por se tratar de um modo de operar bem mais metamórfico, por isso trata-se, na verdade, de uma atenção aos modos de operação mais específicos e eficientes em uma sociedade de mudança, que assume a lógica da cifra (senha),

em vez da assinatura. Enquanto as sociedades disciplinares são/eram ―reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração, quanto da resistência)‖ (DELEUZE, 1992a, p. 220) a sociedade de controle assume o modelo de linguagem digital, ―que marcam o acesso à informação, ou a rejeição‖ (idem). Há uma dissolução do par massa-indivíduo, e este último passa a ser "dividual". Os indivíduos se tornam divisíveis, ―e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‗bancos‘‖ (idem).

Mas poderíamos nos questionar: como todos esses movimentos, e sobretudo a construção de uma Sociedade Educativa (NOGUERA-RAMIREZ, 2011) que se configura campo fecundo para a operação do discurso de uma educação permanente, estão relacionados com os processos de subjetivação dos jovens empreendedores?

Essa questão parece está realmente imbricada com as sociedades de controle, não só pela questão da educação permanente, mas pelo novo espírito que se achega às escolas por meio do modelo ―empresa‖ que substitui a fábrica no modo de operar da sociedade como um todo.

Deleuze (1992a) vai nos dizer que

numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos (p. 220).

Aos poucos, o modelo empresa vai espraiando-se por todo o tecido social e influenciando os modos de operar de suas instituições. Se os salários são as ―recompensas‖ do trabalhador, e esse passa a estar cada vez mais atrelado a desafios e superações, ao poucos as outras instituições passa a adotar também esse modelo para que os indivíduos possam também obter suas ―recompensas‖. Nesse sentido o que vemos é um espírito. Espírito empreendedor, espírito proativo, espírito criativo, um novo espírito de sociedade. A empresa transcende o lugar. Na fábrica, o espaço físico era o lugar de produção. Na empresa não. Ela está em todo lugar, ela se perpetua, ela dilui e reconfigura-se engenhosamente.

Assim também se dá nas escolas-empresas, modelo que assume ares de oficialidade nas sociedades de controle. Para Deleuze (1992a) o que é marcante no funcionamento das escolas nesse modelo de sociedade seria: ―as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ―empresa‖ em todos os níveis de escolaridade‖ (DELEUZE, 1992a, p. 222), além de um currículo flexível e um revisitar constante dos objetivos e das avaliações como forma de um maior controle pedagógico. Isso tem incidência nos modos de subjetivação, uma vez que as sociedades de controle apontam para a

necessidade de indivíduos mais flexíveis e adaptáveis.

No que toca a lógica da educação permanente, essa, no interior das escolas, ganha ecos e lógica legítima que atingem professores e alunos. E é exatamente o que encontramos no processo de formação de jovens quando esses são convocados a serem empreendedores.

Para articularmos essas proposições vamos recorrer a um trecho de Comenio (1992/1657) em que esse autor nos diz:

Do mesmo modo que o mundo inteiro é uma escola para o gênero humano todo, desde o começo até o fim dos tempos, para todo o gênero humano, cada idade da sua vida é uma escola, desde o berço até o túmulo. Já não basta, portanto, repetir com Sêneca: não há nenhuma idade que seja demasiado tardia para aprender, senão que o que tem que dizer é: todas as idades estão destinadas a aprenderem e, os mesmo limites são colocados ao homem para viver que para estudar (p. 105).

Talvez esse trecho de Comenio tenha sido um dos primeiros sistematizados sobre a perspectiva de uma educação permanente, que na atualidade desponta como um potente agente balizador dos modos de vida e relação consigo, como nos indica Deleuze (1992a).

Quando Deleuze discute sobre a educação permanente que, para ele, tende a substituir as escolas, embora hoje ambas convivam, refere-se a um modo balizador das experiências de si por meio daquilo que fora historicamente consagrado pelas sociedades, inclusive nos fazendo evocar cuidados e vigilância, e outros tipos de segurança frente à fluidez da vida. Nesse contexto, caberia à escola, ―desenvolver estratégias ativas para intervir nessa desordem em busca de coesão e pensamento: um trabalho permanente para evitar que tudo se dissolva‖ (SIBILIA, 2012, p; 188).

Atrelado aos interesses do mercado, e nas configurações atuais de flexibilização e precarização laboral, a perspectiva do empreendedorismo, que também se configura como um movimento permanente – é preciso empreender sempre e criativamente -, nos parece encontrar no campo da educação permanente das sociedades de controle um lugar simbiótico e retroalimentador das práticas educativas/econômicas. Tanto é que Deleuze (1992a) vai nos dizer que ―muitos jovens pedem estranhamente para serem ‗motivados‘, e solicitam novos estágios e formação permanente‖ (p.226).

Esse tipo de sociedade nascente funciona de forma bem semelhante aos apelos do atual sistema político-econômico que, ao apontar para a ideia de uma aldeia global, rompendo-se as fronteiras, favorece o surgimento de agenciamentos para além dos espaços das instituições para agirem, agora, livremente, no espaço social, num processo de indistinção do que viria a ser interior e exterior (HARDT; NEGRI, 2001).

Para Guattari e Rolnik (1996, p.45),

o que caracteriza os novos movimentos sociais não é somente uma resistência contra esse processo geral de serialização da subjetividade, mas a tentativa de produzir

modos de subjetividade originais e singulares, processos de singularização subjetiva. A visão de Deleuze (1992a) é compartilhada por Bauman (2011, p. 18) quando apresenta a ideia de uma sociedade pós-panóptica e defende que os detentores do poder nessa sociedade, ―podem se livrar dos aspectos irritantes e atrasados da técnica de poder do Panóptico.‖ A forte marca das sociedades de controle é que elas acabaram por desenvolver formas de singularização subjetiva onde se abandona as formas explicitas de poder e opera com formas mais sutis e atenuadas. Seguindo a lógica do atual capitalismo, usa-se da premiação e do aperfeiçoamento constante como forma de obter dos ―sujeitos‖ as ações esperadas como se fossem livres e refletissem a essência do ser ou expressão de sua vocação, daquilo para o que nasceu.

Em suma, e seguindo as discussões trazidas por Deleuze (1992a), na sociedade disciplinar, realidade tão presente no século XVIII ao XX, o exercício de poder era exercido pelas instituições, em especial pela fábrica e outras instituições de confinamento (manicômios, prisões, escolas...). Essa sociedade caracterizava-se por um exercício de certo tipo de poder.

A escola, que como instituição surgiu ao mesmo tempo em que as fábricas, foi influenciada diretamente por esse exercício de poder: provas, palmatórias, castigos diversos... Os profissionais que trabalhavam nessas instituições estavam, de certo modo, a serviço de um poder explícito com delimitações claras dos lugares em que deveriam colocar professores, alunos e outros profissionais dessa área.

A crise de todas as formas de confinamento fez com que esse modelo de sociedade precisasse reinventar-se. Em meados do século XX (embora não queiramos aqui propor um marco, uma vez que isso é tão capilarizado que não se pode prever exatamente) o poder deixa de ser exercido a partir das sociedades disciplinares e segue o modelo trazido pelas sociedades de controle. Nesse novo modelo de sociedade o controle passa a ser mais sutil e contínuo. Há aí a diminuição das fronteiras para uma globalização através do controle.

Na sociedade de controle, o exercício de poder se dá por mecanismos por vezes velados, baseados em recompensas, em que o modelo de vigilância, próprio do arquétipo panóptico dá lugar, cada vez mais, à observação fluida, virtual e em rede. Também a técnica de coerção, nesse modelo, vai dando lugar ao prazer e à sedução (MIRANDA; EL KHOURI, 2016), embora esses dois tipos de poder, na atualidade, conviverem, dialogarem, e se atravessarem cotidianamente (Idem).

Nas escolas isso é bastante perceptível na medida em que observamos a operação, juntamente com técnicas disciplinares, práticas de autogoverno, com grande conteúdo

competitivo, com incentivos verbais, elogios, premiações com medalhas, quadros de honra e até mesmo distribuição de bolsas escolares para os melhores alunos ou que se comportarem bem. As sociedades de controle dão a sensação de que vivemos em liberdade. É justamente esse modelo fluido e sedutor que vai exigir também uma nova forma de resistência, também fluida e inventiva (DELEUZE, 1992a).

Abrimos aqui um parêntese para trazer uma proposição do filósofo político ByugngChul Han (2014) e discutida por Benevides (2017) acerca da ideia de uma psicopolítica, uma nova forma de governo que estaria a operar em uma substituição de uma biopolítica, que apontaria para o fato de não mais se operar sobre o ―bios‖, mas sobre a matéria ―psi‖. Isso se dá a partir da ideia de que as formas de controle com que vem operando o neoliberalismo são bem mais específicas e voltadas para o controle da ―psique‖, que se constitui a matéria prima fundamenta deste modelo econômico e alvo de ―mecanismo de monitoramento das condutas, dos comportamentos, das escolhas e da mobilidade de indivíduos e grandes extratos populacionais‖ (BENVIDES, 2017, p. 3) e que estariam a produzir novas subjetividades.

Entendemos também ser importante apontarmos para uma compreensão deleuziana, na contramão das configurações das instituições escolares atuais, que é o que Deleuze vai chamar de Educação Menor, que seria uma ruptura com aquilo que ele entendia como sendo uma Educação Maior: planos educacionais, Leis de Diretrizes e Bases, grandes mapas e projetos educacionais que visam instituir o poder (GALLO, 2003).

A Educação Menor, que ocorre no âmbito micropolítico, no nível das relações professor-aluno, pode e deve favorecer a construção de um presente e um futuro para além de qualquer política educacional, num ato de singularização e militância. Daí a importância de os sujeitos da educação se construírem num processo de desterritorialização das macropolíticas, num processo transdisciplinar a partir do modelo rizomático e não arbório, na busca de combater a grande máquina de controle e de subjetivação a partir das políticas públicas e de uma Educação Maior (GALLO, 2003).

No contexto da educação encontramos um cenário bastante fértil para operação e invenção de novas maquinarias. Larrosa (2011), tomando as ideias de Foucault (2010b) acerca das tecnologias do eu, vai descrever como a educação opera através de dispositivos pedagógicos que, ao desenvolverem uma gramática com verbos reflexivos, permitirão ao sujeito, supostamente livre e autônomo, constituir-se na relação com os dispositivos que agora, ao contrário do que acontecia nas sociedades disciplinares, visão diluir os modos de resistência. É um pouco dessa perspectiva que vemos adentrar ao ambiente educacional,

sobretudo no que se refere às Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará, em convívio com práticas disciplinares tradicionais, que sancionam os comportamentos a depender do que se elege como correto, útil e desejado.

3 APROXIMAÇÕES GENEALÓGICAS ACERCA DAS TRAMAS DE UMA