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2 CONCEITOS FOUCAULTIANOS: SABER, PODER, GOVERNO,

2.3 Escolhendo as ferramentas: Governamentalidade, Biopolítica, Biopoder e

2.3.3 Sujeito, Subjetividade e Modos de Subjetivação

2.3.3.2 O sujeito da educação e as práticas de governamentalidade

Para iniciarmos esta seção, consideramos importante nos posicionarmos frente à histórica trajetória das instituições escolares, explicitando que, como Heckert e Rocha (2012), consideramos que este percurso nos trouxe a condições de possibilidade que configuram a escola contemporânea de tal forma que essa se tornou,

junto de outros equipamentos sociais, um espaço estratégico de gestão da vida e dos riscos. Pressionada por políticas governamentais planejadas em boa parte dos casos sem conexão e diálogo com os profissionais, estudantes e familiares, a escola se situa entre discursos de formação para a cidadania, produção de subjetividade com responsabilidade social, prevenção da periculosidade e práticas assistencialistas que visam ao resgate de múltiplas carências (p. 85).

Sim, a escola opera como equipamento social para gestão da vida. E, mais uma vez, ressaltamos que buscamos atentar para as práticas de governo de uma população específica: os jovens, estudantes de escolas públicas, em sua maioria de classes baixas, comumente vistos como correndo risco e se tornarem um risco ao enveredar pela marginalidade (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005).

Mas o que se diz com isso? Como podemos perceber as marcas de uma maquinaria de gestão da vida nas instituições escolares? Para compreendermos esse processo recorreremos a uma estória que nos aproxima do cenário de criação das cidades e de toda dinâmica que essas passaram a vivenciar. Partiremos das marcas trazidas no conto de Pinóquio, próprios do contexto em que a escola é ressignificada como instituição pela qual os homens poderiam reconhecer sua humanidade, considerando as discussões realizadas por Vasconcelos, Benevides e Campani (2012).

Tendo o marceneiro Gepeto ganhado de presente um pedaço de pau falante, o transformou em boneco de madeira, e o colocou no lugar de filho dando-lhe o nome de Pinóquio. Pinóquio não era totalmente um boneco pois falava, mas também não era, obviamente, uma criança, já que, segundo o Grilo-falante ele tinha cabeça de pau.

Mas o que faltava para que Pinóquio se tornasse um menino? Faltava-lhe ―responsabilidade‖. Se quisesse ser um ―menino de verdade‖, um ―humano‖, seria necessário ter responsabilidade e sua ―própria consciência‖. Mas para que a fada o transformasse em um menino ele já teria que estar vivendo como tal, isto é com responsabilidade e consciência (COLLODI, 1992), isto é, Pinóquio deveria encontrar em seu interior, em sua alma, atributos de um menino de verdade, para isso precisaria aprender a ser um menino de verdade.

Gepeto imediatamente indica onde Pinóquio poderia aprender a viver como menino de verdade: na escola. Não era a rua, ou nos campos, muito menos no circo. Era na escola! É importante salientar que desde o crescimento das cidades burguesas eram nas ruas que tudo acontecia, e com o tempo essa passou a se tornar um lugar de ―perdição‖ dos homens. O pensamento e as atitudes de Gepeto apontam para um regime de verdade presente em seu tempo, mas que ainda tem seus ecos bastante presentes nos dias de hoje.

Gepeto acreditava tanto no poder da escola que, inclusive, trocou seu casaco por uma cartilha, em um movimento de plena confiança de que ela seria o local indispensável para fazer de Pinóquio um menino como os outros; um ―menino de verdade‖.

Gepeto tinha razão! Ele prediz a função criadora de sujeito que teria a escola. A tão evocada ―função social da escola‖ trata-se, portanto, de mediar a experiência de si e fazer dos indivíduos sujeitos humanos. As configurações dessa instituição como um lugar para que se opere inúmeros dispositivos, parece ter estado presente no contexto de institucionalização da mesma, e perdurando firme e estruturalmente até hoje. As escolas estão diretamente marcadas pelos mecanismos da sociedade disciplinar que, segundo Foucault (2010d),

vê o sujeito como uma exigência do discurso, ou como resultado momentâneo de dispositivos disciplinares, ou, ainda, como produto de práticas de controle; a escola e o hospital psiquiátrico são excelentes exemplos de tais práticas, ou melhor, constituem agências disciplinadoras e controladoras. Em qualquer desses casos, não pressupõe uma instância unitária – psíquica, social ou de qualquer outro tipo – como um proto-sujeito. (p, 46)

Esse eco, referente à função social da escola, reverbera na contemporaneidade sem ter perdido suas forças, mas, por vezes operando de forma diferente, sob a égide de novas articulações discursivas. Em 1996 a Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (UNESCO), motivada pelas grandes mudanças ocorridas no século XX e as incertezas sobre o que haveria de ser o século vindouro, lança um relatório para pensar a educação para o futuro e aponta ―novos‖ objetivos para educação do século XXI, mas que se tratava, em nossa análise, do discurso funcionalista revestido de nova roupagem. Esse documento, que foi intitulado ―Educação, um tesouro a descobrir‖, traz em sua terceira parte, nas orientações, títulos que expressam a importância que se dá a educação enquanto aquela, por meio da qual, os indivíduos podem tornar-se humanos o suficiente para que se considerem realmente vivendo. São eles: ―Um passaporte para a vida: a educação básica‖ e ―Ensino secundário: uma plataforma giratória de toda uma vida‖ (DELORS, 2003).

O que encontramos nos títulos acima é uma significativa aproximação com as perspectivas presentes na sociedade de Gepeto. Nos dias de hoje, ainda vemos a escola como aquela que é responsável por dar vida. Mas de que vida se está falando? Pensada por quem?

Problematizar tais questões tem implicações relevantes uma vez que tratamos de uma produção no contexto do poder que se configura como ação sobre a ação dos outros (FOUCAULT, 2013a).

Mesmo apresentando mecanismos distintos daqueles defendidos por Durkheim e analisados por Foucault (1977) ao definir as sociedades disciplinares, o que o documento da UNESCO vai trazer é a mesma lógica de produção de sujeito só que agora vestido de retóricas mais aceitáveis e aparentemente ingênuas. Larrosa (2011) chama atenção para essa suposta ingenuidade indicando uma operação constitutiva, na medida em que ela funciona como produtora de sujeitos, escondida na retórica de que as práticas educativas são meras "mediadoras" e apenas dispõem os "recursos" para o "desenvolvimento" dos indivíduos (DELORS, 2003).

O que encontramos no relatório da UNESCO é uma tentativa de sistematização daquilo que se elegeu com caminho para funcionamento da educação e que expressa, na verdade, uma das faces do que Larrosa (2011) vai chamar de dispositivos pedagógicos contemporâneos, ou seja, um lugar de materialização de discursos e agenciamentos que fomentam a experiência de si, produzindo, como já falamos, a realidade, por vezes percebida como essencialidade.

Tais dispositivos correspondem a ―qualquer lugar no qual se constitui ou se transforma a experiência de si. Qualquer lugar no qual se aprendem ou se modificam as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo‖ (p, 46), ou seja, que produzem efeitos tanto em nível de representação quanto a nível comportamental e de sentimentos e que na contemporaneidade vem sendo a forma produtora dos sujeitos.

Essas práticas vão desde práticas pedagógicas de educação moral a assembleias, sessões de um grupo de terapia, o dispositivo do confessionário e etc. O que todos têm em comum é o fato de sempre estarem orientados à constituição e transformação da forma pela qual a pessoa se descreve, se narra, se julga e controla a si.

Atualmente, existe um grande esforço para que a ação educativa produza mais do que indivíduos habilitados e qualificados a responderem às demandas do sistema produtivo. De forma muito mais intensa e explícita do que em outros momentos da história, os dispositivos pedagógicos são mobilizados visando à produção de subjetividades, cujos atributos devem estar atualizados em relação ao modo de funcionamento acelerado e fragmentado exigido pela sociedade contemporânea (AMADO, 2009, p. 43).

É, sobretudo, através da constante exigência da relação consigo mesmo, expressa em termos de ação na medida em que se utiliza verbos reflexivos: ―conhecer-se, estimar-se, controlar-se, impor-se normas, regular-se, disciplinar-se, etc.‖ (LARROSA, 2011), que se manifestam as principais fontes de agenciamento pedagógicos. Esses termos são

considerados

antropologicamente relevantes na medida em que designam componentes que estão mais ou menos implícitos naquilo que para nós significa ser humano: ser uma ―pessoa‖, um ―sujeito‖ ou um ―eu‖. Como se a possibilidade de algum tipo de relação reflexiva da pessoa consigo mesma, o poder ter uma certa consciência de si e o poder fazer certas coisas consigo mesma, definisse nada mais e nada menos que o ser mesmo do humano (p. 38-39).

Na verdade, quando um sujeito diz de si, há grande probabilidade do que ele está fazendo é tomando as normas, incutidas pela vivência e discurso cotidiano, como medida de si. Daí o reconhecer-se sujeito no cenário escolar nada mais é que um reconhecimento em si da adequação às normas. As tecnologias do Eu configuram-se assim como sendo ―práticas pedagógicas, nas quais o importante não é que se aprenda um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva da ‗pessoa‘ consigo mesmo‖ (LARROSA, 2011, p, 36). Dessa forma o que elas favorecem é

um enlace entre ―subjetividade‖ e ―experiência de si mesmo‖. A ontologia do sujeito não é mais que a experiência de si que Foucault chama de ―subjetivação‖. Há um sujeito porque é possível traçar a genealogia das formas de produção dessa experiência. Aqui teríamos a virada historicista em sua radicalidade: o que pode ser colocado em uma perspectiva histórica não está restrito às diferentes descrições que os homens produziram de sua experiência de si mesmos. Na perspectiva de Foucault, a experiência de si não é um objeto independente que permaneceria imutável, através de suas diferentes representações, mas, antes, é a experiência de si a que constitui o sujeito, o eu enquanto si mesmo (soi, self) (p. 55).

É neste contexto que uma série de dispositivos pedagógicos fomenta toda uma gramática da autointerpretação dos sujeitos como sujeitos e um conjunto de critérios normativos que balizam o significado de ―ser‖.

As tecnologias do Eu são ―práticas pedagógicas, nas quais o importante não é que se aprenda algo ‗exterior‘, um corpo de conhecimentos, mas que se elabore ou reelabore alguma forma de relação reflexiva do ‗educando‘ consigo mesmo‖ (LARROSA, 2011, p. 13). Abrimos um parêntese para dizer que, mesmo assim, entendemos o sujeito como efeito provisório (MANSANO, 2009), cabendo, nas microrrelações, possibilidade de reinvenções.

A partir do referido documento da UNESCO, as escolas de nossa época passaram a eleger, quase que de forma redentora, quatro pilares para a educação do século XXI: ―Aprender a conhecer‖, ―Aprender a fazer‖, ―Aprender a viver junto‖ e, finalmente, ―Aprender a Ser‖. Dizemos ―finalmente‖ porque, segundo a comissão, ―Aprender a ser‖ constitui a via essencial que integra as outras três aprendizagens. Motivados pelo suposto temor de uma desumanização do mundo, a escola teria como missão ensinar as pessoas a serem realmente pessoas de forma integral e ―deve transmitir, de fato, de forma prática e eficaz, cada vez mais permanentemente, saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro‖ (DELORS, 2003, p, 84).

―Aprender a ser‖ se constitui, portanto, como o grande objetivo da educação para o século XXI, onde ―ser‖, para nós, é, na verdade, o resultado dos processos de governamentalidade, articulados por vias das engrenagens do poder disciplinar e do biopoder, que, no contexto escolar, operam por meio dos discursos que legitima a escola como o lugar revestido de uma suposta bondade e capacidade de ensinar tal bondade, por meio de uma saber próprio, e que configura-se como um lugar para interiorizar o exterior, por meio de práticas de vigilância, reflexão, nomeação de si e análise daquilo que se é a partir das referências pré-estabelecidas.

Os alunos constituem-se, a partir do referido relatório, como sujeito a partir das transmissões do professor, como podemos perceber: ―Cabe ao professor transmitir ao aluno, o que a Humanidade já aprendeu acerca de si mesma e da natureza, tudo o que ela criou e inventou de essencial‖ (DELORS, 2003, p. 19). Mas o que mais chama atenção nessa passagem é o fato do aluno ter que aprender ―o que a humanidade já aprendeu sobre si mesma‖. Isso aponta para o seguinte desdobramento: aprender a ser uma pessoa humana, que carrega essa humanidade que já é sabida anteriormente, sem necessidade de descobertas pessoais porque o que se é o ―humano‖ já foi descoberto por outros.

Considerando o pensamento de Mennucci (2009) sobre os postulados da Conferência de Jomtiem, na Tailândia, de onde surgiram as ideias sobre os pilares da Educação, vemos que essa

teve como resultado a assinatura da Declaração Mundial sobre Educação para Todos e o Marco de Ação para a Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem. O Brasil foi signatário desses documentos e o Banco Mundial foi o grande financiador das propostas educacionais para os países em desenvolvimento, entre os quais se encontra o Brasil. Daí que entendemos o porquê de vários Estados brasileiros, inclusive São Paulo, se preocuparem em apresentar números positivos de formação, aprovação e permanência na escola para essas agências financeiras (p. 13).

Na perspectiva de ―todos por uma educação de qualidade para todos‖12

, passou-se convocar os agentes públicos, as empresas, as multinacionais, as entidades sem fins lucrativos, e tantas outras, a colaborarem com um projeto comum de (en)formação dos indivíduos, uma vez que não podemos chamá-los de humanos a não ser que esses, a exemplo de Pinóquio, passem a agir como tal, o que é ensinado e deve ser aprendido na escola.

Essa convocação abre muitas possibilidades para novas reconfigurações dos espaços, dos currículos e das políticas públicas para a educação, tornando-a significativamente permeável aos interesses neoliberais.

12

Slogan que seria empregado também no Ceará, durante o governo Lúcio Alcântara, num projeto de implementação de políticas assemelhadas com as ideias neoliberais para a educação. Falaremos disso um pouco mais à frente.

2.4 As primeiras inscrições de uma Sociedade de Controle e suas implicações na