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2 CONCEITOS FOUCAULTIANOS: SABER, PODER, GOVERNO,

2.3 Escolhendo as ferramentas: Governamentalidade, Biopolítica, Biopoder e

2.3.1 Biopolítica e Biopoder: a economia política do fazer viver

Iniciar falando dos processos de governamentalidade se fez necessário porque, além de ser fundamental entendermos esse novo modo de operar no governo das populações, para entendermos o contexto e os fundamentos de um biopoder, é importante sabermos que esse se dá na concretude de uma governamentalidade.

Embora Foucault tenha dito que seu grande empreendimento teórico tenha sido a questão de como nos tornamos sujeitos (FOUCAULT, 2013b), foi pela analítica do poder que ele ficou realmente conhecido. Talvez, por seu trabalho genealógico que tomou tantas vezes essa questão como ferramenta para explicar o sujeito e seu engendramento, quem sabe, pelo fato de abordar o poder por um viés completamente novo e bastante intrigante.

Foucault, na contramão do que se pensa, não buscou tecer uma teoria do poder.

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Neologismo criado por nós frente a dificuldade de operar com duas palavras enquanto compreendemos não ser possível expressar nossa compreensão integradora da teoria e da prática. O uso de qualquer estrutura de junção das duas palavras, seja com barras, seja com hifens, será ainda incorreta frente a compreensão dessa ação.

Buscou tomar a questão do poder como analítica, como falamos. Para ele, ―se tentarmos construir uma teoria do poder, será necessário sempre descrevê-lo como algo que emerge num determinado lugar e num tempo dados, e daí deduzir e reconstruir sua gênese‖ (FOUCAULT, apud DANNER; OLIVEIRA, 2009, p. 787). Tratar o poder em Foucault é entender que este não é um objeto natural, uma coisa, tão pouco existe ―o poder‖, mas uma rede articulada de poderes, uma relação de poder, que é ―uma prática social e, como tal, constituída historicamente‖ (MACHADO, 2011). Em sua analítica, Foucault entende que, por articular- se com tamanha capilaridade, é necessário que se atente para o poder não a partir de um centro (o Estado), ou um poder único, mas constituído de microoperações no tecido social a ele articulados (ao Estado). Para Foucault, segundo Machado (ibid), trata-se de

captar o poder em suas extremidades, lá onde ele se torna capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material, eventualmente violentos (p. 182).

Consideramos importante ressaltar que, Para Foucault, o poder não é uma coisa. Ele não está localizado. Tão pouco alguém lhe detém. Ele é difuso, capilarizado. Não está situado em um determinado lugar ou estrutura social e nem se dá na exclusividade da relação dominador-dominado ou nas relações de produção. Foucault entende o poder como ―materializado através dos discursos, e, muito mais que repressivo: produtivo. Cria, a partir de seu funcionamento, realidades, sujeições, sujeitos e objetos‖ (MORAES; NASCIMENTO, 2002). Isto significa que, ―mesmo que pela intervenção proibitiva, o efeito principal e o interesse de quem exerce o poder sobre outrem são de que sua ação interfira no comportamento, na ação do outro. Quem exerce o poder pretende fazer o outro agir, pensar, sentir, analisar e se posicionar diante das coisas de acordo com seu interesse‖ (p. 91).

Nem poderíamos dizer que ―o poder‖ exista enquanto substantivo. Trata-se, na verdade, de um verbo, uma ação, uma relação, uma prática de poder que se dá de forma articulada e engenhosa. Em rede e é exercido, podendo ser entendido também com tática e uma estratégia, muito mais que uma coisa ou um objeto.

Outro aspecto importante de ser registrado, é que, para Foucault, o poder está sempre relacionado com algum tipo de saber, que legitimado, acaba por servir de aparato legitimador de discursos, práticas e regulamentações dos corpos e modos de vida. Para Furtado e Camilo (2016)

Exercer o poder torna-se possível mediante conhecimentos que lhe servem de instrumento e justificação. Em nome da verdade legitimam-se e viabilizam-se práticas autoritárias de segregação, monitoramento, gestão dos corpos e do desejo. Inversamente, é no centro de aparatos sofisticados de poder que sujeitos podem ser observados, esquadrinhados, de maneira que deles sejam extraídos saberes

produtores de subjetividade (p. 36).

Também o poder não é considerado por Foucault como operando na supressão ou repressão, com sendo uma negatividade. Mas o considera em seu potencial positivo e criador. Ele incita, produz, cria (FOUCAULT, 2010d).

É nesse contexto de compreensão do poder que Foucault vai pensar as análises sobre o que ele conceituou de Biopoder, que seria um conjunto de práticas, exercidas no contexto ocidental moderno, que tinham por objetivo gerir e regulamentar a vida dos homens. Seria uma relação de poder na qual seria possível gerir a vida e administrar as populações, focando em sua dimensão biológica fundamental. Por meio das práticas de biopoder, desde o século XVII, vem sendo possível, por meio de saberes jurídicos, políticos, biológicos, médicos e estatísticos, controlar as aglomerações urbanas, as epidemias, as proposições liberais da economia, a relação e transformação dos espaços, e os modos de vida possíveis e legítimos.

O biopoder, é, portanto, ―o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais, vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral do poder‖ (FOUCAULT, 2008b, p. 3). Foucault (2008a) vai nos dizer que fora a partir do surgimento das populações, atreladas à nova ordem europeia da época e à demandas liberais, ―que algo como a biopolítica poderá se formar‖ (p. 30), numa estreita relação com a razão governamental nascente. A biopolítica nasce como prática de governo, frente a uma população que o governo deve administrar.

O termo biopolítica, prática de biopoderes, surgiu na obra foucaultiana para caracterizar o modo como o poder passou a operar no final do século XIX e início do século XX, num deslocamento do governo dos indivíduos para o governo das populações (FOUCUALT, 2008a).

Por biopolítica compreendemos o modo como os fenômenos próprios à vida (natalidade, mortalidade, fecundidade, sexualidade etc.) são integrados a um conjunto de práticas de gestão calculista da população a partir da articulação e da comunicação de um domínio de saberes entre si – como a estatística, a demografia, a economia política, a medicina social (dentre outros) –, com objetivo de fazer coincidir a otimização da vida com a otimização das forças produtivas do corpo populacional (BENEVIDES, 2017, p 3).

No entanto para a otimização da vida, como modo de fazer viver a população, atentam Benevides e Carvalho (2015), para o surgimento de um novo tipo de saber acerca do gerenciamento das populações, que opera por meio da economia política. Para Foucault (2008b.) aparece como campo de intervenção de técnicas de governo, isolando a economia ―como domínio específico de realidade e a economia política ao mesmo tempo como ciência e como técnica de intervenção do governo nesse campo de realidade‖ (p. 143).

Essas práticas de operação de uma biopolítica tem ênfase na proteção da vida por meio da gestão da saúde e das práticas sanitaristas, da administração das práticas sexuais e de natalidade, dos costumes e das relações consigo mesmo que foram firmando-se e aperfeiçoando-se em quanto forma de governar, constituindo-se assim numa forma específica de exercer o poder: a governamentalidade (REVEL, 2005).

Ao contrário das sociedades de soberania que operavam a partir de uma lógica de poder que se encarregava de gerir a morte dos ―desviados‖ que desafiavam o soberano ou impingiam sobre o território por ele governado, o biopoder trata de gerir a vida. Isso se deu, na Europa, no contexto do século XVIII (FOUCAULT, 1999b), com o surgimento de tecnologias políticas que exerciam o controle sobre os corpos. Essas tecnologias ajudaram a forjar o funcionamento das sociedades ocidentais modernas, inclusive a brasileira, e de sua maquina estruturante por meio das instituições, das quais a escola é de elevado patamar de importância.

Foucault (1999b, p. 302), segue dizendo que o biopoder ―se incumbiu da vida em geral, com o polo do corpo e o polo da população‖. Assim, enquanto o poder disciplinar, a partir do modelo do panóptico (FOUCAULT, 2010d) encarrega-se da docilização do corpo- organismo, atuando no indivíduo e disciplinando-o, a biopolítica, que atua em consonância com o poder disciplinar, incide no corpo-espécie, objetivando os modos de vida, desta vez da população. Esse deslocamento no contexto do poder foi possível, segundo Foucault (1999b), pelo surgimento de um movimento marcadamente característicos do século XIX, e que já mencionamos acima, que foi a engenharia de uma nova tecnologia de poder que buscava fazer viver e deixar morrer, diferente do poder soberano que fazia morrer e deixava viver (ibid).

Entretanto, o poder que opera na trama de uma biopolítica, ―não será exercido por imposição, não terá a obediência como finalidade e, indo um pouco além, somente poderá ser exercido mediante cautelosas e constantes preocupações com seus excessos‖ (BENEVIDES; CARVALHO, 2015, p. 364).

Uma das engrenagens principais de exercício da biopolítica e operação de um biopoder, são as políticas sociais, associadas ao modelo capitalista, desde sua versão mais radical, passando pelos moldes do neoliberalismo, que estruturaram suas bases a partir de uma biopolítica (BONEFELD, 2013). Embora saibamos que haja variações quando consideramos os lugares e os tempos em que elas operam, apresentam-se como potentes nos processos de socialização e subjetivação dos indivíduos modernos (REVEL, 2013). No entanto, não são determinantes em sua totalidade e, tão pouco, unilaterais (PATTON, 2013). Podemos ver, por exemplo, um movimento que vai à contramão do que dissemos acima, na medida em que no

neoliberalismo atual, com o esvaziamento do Estado, parece haver uma busca pelo esvaziamento também das políticas sociais, o que teria que haver uma reconfiguração das práticas de biopolítica. É o que nos parece figurar no cenário que estamos vivendo atualmente no Brasil.

Mas como pensar a questão de uma biopolítica e de um biopoder para um estudo com foco na educação se, em sua gênese, esses termos não foram tratados diretamente em relação com esta?

De fato, objetivamente falando, ele [Foucault] não tomou a educação – como o fez, por exemplo, com a medicina social (a medicalização da vida, a instalação de um dispositivo da sexualidade), a polícia, a previdência social e o racismo biológico de Estado, dentre outros – como um dos mecanismos estratégicos privilegiados para o exercício de biopoderes e de biopolíticas nas sociedades ocidentais modernas. (COSTA, 2009a, p. 15)

O que fazemos, entretanto, é o legítimo exercício de utilizarmos tais ferramentas, considerando que tratamos aqui de uma educação formal, legitimada pela produção científica sobre o aprender, o currículo e os tempos necessários para os processos educativos. Essa produção científica aloca-se em uma instituição com ampla influência de atuação, desde a constituição do Estado Nacional, e sendo esta instituição o locus privilegiado de disseminação e experimentação de saberes científicos legítimos, além de operar, em seu interior, um movimento pedagógico acerca da institucionalização da verdade, objeto de políticas públicas e regulamentação jurídico-educacional - entendemos que a educação é lugar fecundo para a concretude de uma biopolítica, e as instituições escolares, no sua fisiologia institucional, a engrenagem potente para esse empreendimento. Trataremos melhor dessa questão mais adiante.

Gostaríamos, entretanto, neste movimento de dobras e redobras, de apresentar um contraponto para o qual precisamos atentar, uma vez que, por estarmos em plena fluidez das constituições engenhosas de poder-contra poder, não sabemos que inventividades e reconfigurações esse pode assumir. Notemos como, atualmente, parece que a educação, ou melhor, a escola e os professores, estão no centro de uma ação que busca criminalizá-los, tentando a retirada inclusive de disciplina do currículo, sobretudo no que toca as humanidades. Talvez o que já se desponte sejam formas diferentes de conceber a vida, engendradas nas fissuras do cenário educativo, apontando também para as possíveis resistências no interior das escolas.

Voltemos então um pouco para as práticas de biopolítica. Partindo do pressuposto que as pessoas que frequentam o tradicional ambiente da escola constituem-se enquanto população (e nesse contexto encontramos localizadamente a população jovem), estudada e

monitorada cada vez mais, estatisticamente, e padronizadamente, onde as condutas são preditas e legitimadas, entendemos que a população escolar é alvo de uma biopolítica. Sofre certo processo de homogeneização por meio de uma curricularização, avaliações padronizadas e expectativas gerais da sociedade que dão vida a ecos de discursos de um poder disciplinar e de um biopoder, o que vai à via do governo de suas condutas (COSTA, 2009b), balizadas no jogo da verdade da qual as escolas autoproclamam, a partir de uma evocação funcionalista (PATTO, 1984), como zeladoras e guardiãs.

Aqui gostaríamos de fazer outro arremate. Esperamos que não fique um tanto quanto alinhavado esta parte do texto, mas consideramos necessário. Notemos que hoje há uma crescente defesa pelo homeschooling, termo em inglês para ―educação domiciliar‖, que segundo (ANDRADE, 2017), estaria na esfera das liberdades individuais fundamentais, também na atmosfera neoliberal. Embora não queiramos entrar no mérito da questão, gostaríamos apenas de nos posicionar dizendo que compreendemos que, embora esse movimento que vem fortalecendo-se, vai na contramão do processo de homogeneização da escola que mencionamos acima, e um consequente esvaziamento do seu sentido público, isso parece ainda não ser uma realidade próxima da escola pública no Brasil, onde boa parte dos pais não teriam condições de cumprir com as exigências de um estudo domiciliar (tempo, grau de instrução...).

Seguido, compreendemos que na racionalidade governamental a economia neoliberal se torna um domínio específico da realidade e cria-se a ideia de naturalidade das práticas de governo (FOUCAULT, 2008a) em um movimento que se coloca como atento às necessidades da população, de onde emanaria uma suposta fluidez de sua natureza, características, regularidade, tendências e funcionamento (BENEVIDES; CARVALHO, 2015, p. 364). É importante salientar que no processo engenhoso de uma biopolítica, os atos de governo de uma população, em seu contexto de penetrabilidade, dá-se por meio do desejo. Nesse contexto, cabe a indagação que Benevides e Carvalho (2015) nos trazem: ―Se uma população só age movida pelo desejo e se o governo nada pode contra o desejo, como o governo governa o desejo sem governar contra o desejo?‖ Os autores indicam que a alternativa para tal indagação fora o surgimento do que Foucault (2008a) chamou de homo oeconomicus. Conceito fundamental em nosso trabalho uma vez que vemos a lógica da escola-empresa permeando e configurando as realidades educacionais fomentadas por políticas públicas. Para os autores, o surgimento do homo oeconomicus

marca uma espécie de reversão no que tange às relações entre governo e subjetividade – pois, se no contexto do liberalismo, era necessário governar porque era necessário isolar um espaço neutro para a livre manifestação das características e

potencialidades de cada um (de modo que a desigualdade social seria justificada como um reflexo das diferenças individuais), no contexto do neoliberalismo, desaparece a utopia desse espaço neutro. A desigualdade é primeira, fundamental e não poderá ser neutralizada para que emerjam as potencialidades de cada um (idem. p. 365).

Foi a partir de meados dos anos 1950 quem nos Estados Unidos, Theodore W. Schultz funda a disciplina ―Economia da Educação‖ e passa a ver o campo educacional e os processos de conhecimento atrelados aos ganhos na produtividade a partir dos fatores humanos (SCHULTZ, 1963). Schultz faz um deslocamento da economia do produto para os fatores humanos, sendo necessário para o ganho econômico a qualificação destes por meio da educação, que permitiram o aumento na produtividade econômica e, consequentemente, do aumento nas taxas de lucro.

Essas compreensões deram origem ao que se chamou de ―Teoria do Capital Humano‖ (SCHULTZ, 1971), fomentando uma postura tecnicista dos processos educacionais e da organização das políticas públicas e do cotidiano das escolas. Os discursos sobre a escola como fundamental para o desenvolvimento econômico de um país, e até mesmo para a melhoria de vida da população que seria mais bem assalariada, ganharam força e produziam sentido prático e potência de governamentalidade.

Também fora construída a lógica de valorização do indivíduo por meio da educação. Ela agora era possibilidade de ascensão social e, ao investir na educação (investimento com toda a compreensão neoliberal – força, concentração, energia, dinheiro), o indivíduo passava a valorizar-se, na mesma lógica de valorização do capital. Assim, a educação passa a ter um valor econômico.

No Brasil, esse movimento chegou por volta dos anos 70, e está marcado pelo acordo MEC-USEID (ARAPIRACA, 1979), que falaremos mais adiante.