• Nenhum resultado encontrado

5 OS MAPAS DO PROCESSO: UMA PROPOSIÇÃO DE PRODUÇÃO

5.2 Nas pegadas dos Discursos Oficiais que demarcam as vivências no

5.2.1 Discurso oficial e os arranjos neoliberais

Debruçarmo-nos sobre os discursos oficiais, entendidos aqui como aqueles que, por seu caráter legal, ou por sua oficialidade no contexto da escola investigada, é uma forma de colocar lente sobre pistas que, para nós, são fundamentais na configuração do mapa que aqui pretendemos construir.

É importante salientar que tomamos neste momento de produção de dados, documentos escolares oficiais (desde normas da escola a matrizes didáticas), práticas construídas e perpetuadas no cotidiano da escola, bem como as observações, fotografias e entrevistas realizadas no processo de entendimento do contexto ali encontrado.

A isso chamamos de discursos oficiais: os escritos, os falados, os reverberados, o que é sempre lembrado, o que se permite ser esquecido. Dessa forma entendemos que tais discursos trazem ares de oficialidades e criam um ambiente onde a verdade é instituída, vivida e propagada. A escola (enquanto lugar de materialização do saber e de organização social), que no projeto iluminista e funcionalista de sociedade, atualizada para os dias de hoje no relatório

da Unesco (1998), é uma das instituições a quem se atribui o poder de salvar o homem corrompido, ou aquela que pode preservá-lo do mal (VASCONCELOS, 1996), opera como dispositivo de subjetivação. Assim o que se trata aqui, é das investidas sobre os jovens, por meio das retóricas advindas das engrenagens escolares, construídas a partir do modelo empresarial adaptado para a educação, e de como estes são potentes, ou não, no caminho de subjetivação dos jovens, mas que, de um jeito ou de outro, configuram o cotidiano escolar.

Iniciamos por apresentar os fundamentos do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, que expressa sua ―concepção de homem, sociedade, conhecimento, educação, cultura, cidadania, ensino, aprendizagem e avaliação articulada à dimensão político-pedagógica de produzir uma concepção de educação profissionalizante (...)‖ (PPP, 2017, p. 1)44. O PPP traz uma mistura de construção da cidadania, formação crítica, possibilidade de construção livre do que se quer, e atendimento às mudanças econômicas. Uma mistura bastante própria das características deste lugar que se tornou a Escola Profissional de Ensino Médio no Ceará.

Fundamentados sobre certas ―concepções epistemológicas e filosóficas que balizam a proposta pedagógica da Escola‖ (PPP, 2017, p. 3), os objetivos educacionais são:

✓ Oferecer à comunidade ensino de qualidade que contribua para o desenvolvimento da autonomia responsável, do senso crítico e da criatividade para o exercício da cidadania;

✓ Formar jovens autônomos, participativos, solidários e criativos comprometidos com sua formação ética, cidadã e profissional para o mundo do trabalho e pleno exercício da cidadania;

✓ Preparar profissionais aptos a atuarem com excelência no mercado de trabalho, agirem criticamente no contexto socioeconômico e/ou darem continuidade aos demais níveis de estudo;

✓ Aplicação da filosofia da Tecnologia Empresarial Sócio-Educacional - TESE em todo pensamento de funcionamento de gestão do projeto escolar;

✓ Oportunizar e dar condições, no Ensino Médio Integrado para que todos os sujeitos desenvolvam suas capacidades para a formação plena.

✓ Oportunizar a formação técnica de nível médio nas formas concomitante e subsequente mediante demanda da SEDUC CE.

✓ Orientar o sujeito para gestar e construir seu projeto de vida de forma responsável durante o seu percurso formativo;

✓ Proporcionar aos estudantes instrumentos para a aprendizagem de valores e conhecimentos por meio de estimulação frequente;

✓ Garantir a replicação de experiências de aprendizagens bem sucedidas para a promoção duradora de processos de ensino-aprendizagem eficientes;

✓ Ensinar com vistas à aprendizagem e aos conhecimentos historicamente produzidos e socialmente válidos (PPP, 2017, p. 3-4).

Na construção destes objetivos encontramos alguns conceitos centrais que, nos parece representar uma mistura entre os ideais de sociedade moderna (republicana, iluminista) e das configurações neoliberais. No que toca o caráter filosófico do discurso neoliberal e seu aparato enunciativo presente no PPP, tomado aqui a partir do contexto próprio das Escolas

44

Profissionais, vemos: autonomia responsável, senso crítico, criatividade, cidadania, participação, solidariedade, excelência. São esses os conceitos principais que configuram, tanto os objetivos do PPP, como o cenário onde os jovens habitam e se inventam, compondo assim a cartilha central do ―Jovem de Futuro‖45

, que deve encontra neles os balizadores para a experiência de si (LARROSA, 2011).

Seguindo as configurações e exigências do modelo do capitalismo atual, o que vemos expresso nos objetivos, são desenhos discursivos que buscam fomentar, no contexto da escola,

a criatividade, a liberdade, a autonomia e a autenticidade, mas também suas derivações em termos de singularidade, sensibilidade às diferenças, pró-atividade, consciência ecológica, positividade, senso de oportunidade, habilidade comunicativa, capacidade interrelacional, espírito visionário etc. (BENEVIDES, 2017, p. 6).

Situar essa compreensão, para este percurso, é fundamental, uma vez que, ―cada fase do capitalismo vai desenvolver uma biopolítica particular‖ (GROS, 2010, p. 1), o que nos permite historicizar os movimentos legais que configuram o território das vivências dos jovens das Escolas Profissionais.

Fazendo memória à herança da experiência de Pernambuco (já falada por nós anteriormente), o PPP (2017) apresenta seus princípios fundantes, que se pretendem balizadores de toda ação educativa. São eles: Protagonismo, Formação Continuada, Atitude Empresarial, Corresponsabilidade e Replicabilidade.

Tais fundamentos são a expressão daquilo que Laval (2004) vai indicar como a sujeição da escola a um modelo econômico. Na verdade, uma captura da escola para que opere nessa frequência. Isso, no plano de uma biopolítica, não se trata de algo neutro, ingênuo ou desinteressado, mas como uma engenharia neoliberal para a governabilidade. Essa nova configuração das escolas deixa em segundo plano os ideais da escola republicana de formação para a cidadania, e se reconfigura a partir da cultura de mercado (LAVAL, 2004). Embora encontremos referências a uma escola cidadã, aos princípios democráticos e à educação como direito público, o que vemos, tanto nos documentos oficiais, como no cotidiano escolar, é que tais evocações são em função de um perfil confiável de trabalhador, responsável, proativo, criativo e honesto. Os valores são uma espécie de marca para os jovens daquela escola em um movimento de construção do melhor perfil para o mercado.

Vejamos como isso é percebido também pelos jovens:

Aluno 02- Eu acho que o que é mais exigido aqui na escola é proatividade. Que você tem que ajudar o outro, que você tem que tá presente. Tem que fazer alguma coisa. Você não pode simplesmente ficar estático, parar um pouco, pensar em si. Pesquisador46- Vejam como isso é da ordem da construção do meu eu: eu tenho

45

Novo modelo de gestão oficial das Escolas Profissionais do Ceará. Falaremos dele mais à frente.

46

que ser proativo. E se eu não quiser ser proativo?

Aluno 02- Pois é. Eu penso assim: tem dias que eu não quero ser proativo. Pra mim é mais dias. Mas tem gente que simplesmente não quer ser proativo com outras pessoas, ou simplesmente não querem. Tem dia que eu amanheço e que eu não quero falar com ninguém, que eu não quero me olhar no espelho, e eu não quero falar com ninguém. E eu acho que isso não devia ser cobrado. Se relacionar com as pessoas não devia ser cobrado. Devia ser uma coisa particular mesmo (GRUPO DE PROBLEMATIZAÇÃO, 03.10.2019).

As Escolas Profissionais do Ceará trazem em seus fundamentos, as perspectivas empresariais para a gestão do currículo, das vivências e das pessoas. Nelas, a educação fora pensada como um negócio. Isso nos remete ao primeiro dia em que fomos à escola para solicitar permissão para realização da pesquisa junto aos pais. Era 18 de fevereiro de 2016, por volta das 19h. Os pais dos alunos novatos haviam sido convocados para a reunião de apresentação da escola. Estávamos ansiosos por perceber esse universo mais de perto, e nos arriscamos fazer o primeiro diário de campo. Um diário subversivo. Sem autorização ainda do comitê de ética. Um diário talvez dos mais importantes. A subversão é muito importante.

Os professores foram chamados para se apresentar aos pais. Algo bastante incomum para nós ocorreu na forma como eles se apresentavam. No entanto para eles parecia ser corriqueiro falar assim: a maioria deles, ao dizer o que faziam na escola (se coordenavam ou lecionavam e o que lecionavam) se apresentava dizendo: meu nome é fulano e ―meu negócio‖ aqui é professor de matemática nas turmas de primeiro ano; ―meu negócio‖ aqui é professor de português nas turmas... Tudo aqui parece ser um negócio. Me inquieta saber como os professores foram levados a terem esta linguagem que não era/é comum. Um dos coordenadores se apresentou dizendo seu nome e que seu ―negócio‖ na escola era a base comum, o que faz com que ele seja o responsável pelos vestibulares e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). (DIÁRIO DE CAMPO, 18.02.2016)

Na hora foi inevitável! Perguntamo-nos: o que é isso? Como assim ―meu negócio‖? Pareceu, à primeira ―ouvida‖, uma gíria, uma brincadeira. Mas não. Era apenas nosso estranhamento frente ao vocabulário corriqueiro da escola, que produzira um deslocamento ou tentava de resistir àquilo que era tão excêntrico. No decorrer da reunião fomos entendendo que os professores eram uma espécie de empreendedores de um negócio educacional, e que, para nós, em uma análise imediata, sentida no momento, parecia ser o aluno o real produto final, e não a aula ou o currículo. Após o termino da reunião fomos conversar com o diretor, de maneia um tanto quanto informal. Foi então que indagamos acerca desse modo de falar do fazer pedagógico da escola: ―esse jeito de falar a gente herdou da TESE, todos os professores tinham que tratar as aulas como um negócio mesmo, que tinha um produto e tinha que dá resultado, e falar delas como um negócio era uma forma de não perder isso de vista e se apropriar disso‖ (DIRETOR DA ESCOLA, 18.02.2016).

Cada professor, um negócio. Cada um com metas específicas e bem traçadas. Cada um trazendo para si a responsabilidade de gerir, criar, planejar, inovar, cuidar de sua própria conduta. Ficamos imaginando: como isso se dá na prática cotidiana? Como os alunos são

trazidos para este universo? Como eles sentem, se permitem em meio as capturas? Será que resistem?

Hoje, mais de três anos depois, acompanhando os processos corriqueiros da escola, percebemos que essa linguagem não é mais usual, mas as práticas, as vivências, o espírito, as posturas, as formas de se relacionar com o currículo, com o tempo pedagógico e com os alunos, continuam como antes, como um negócio.

Aos poucos nos fomos dando conta que isso, nada mais era, do que o jogo do empresariamento da sociedade, mencionado por Foucault (2008a), que estende para o tecido social, materializado nas instituições que não a empresa (dentre elas podemos destacar as escolas, universidades e a polícia), ―regras próprias e características do funcionamento da empresa: estímulo à concorrência, sistemas de premiação, processos de vigilância entre pares etc.‖ (BENEVIDES, 2017, p. 5).

Os movimentos criados pelo novo modelo capitalista parecem seduzir e gerar um anseio por novos valores educacionais, fincados na promessa de que assim, a educação terá um sentido prático e que os alunos terão novo gosto por este lugar que é a escola. No entanto, isso pela busca de uma vinculação da educação a um

―economismo‖ aparentemente simplista cujo axioma principal é que as instituições, em geral, e as escolas, em particular, só têm sentido dentro do serviço que elas devem prestar às empresas e à economia. O ―homem flexível‖ e o ―trabalhador autônomo‖ constituem, assim, as referências do novo ideal pedagógico (LAVAL, 2004, p. 3)

Passando, assim, a operar com engenharias de produção e fomento do que Foucault (2008) chamou de homo oeconomicus que ―é o homem governável porque é o homem cognoscível, e é o homem cognoscível porque é o homem governável‖ (BENEVIDES; CARVALHO, 2015, p. 365).