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4. O CONSUMIDOR NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

4.4 A teoria finalista

Para os adeptos da teoria finalista,89 o conceito de consumidor é a somatória entre elemento subjetivo e teleológico, sendo indispensável a destinação fática e econômica (finalidade com que o produto ou serviço é adquirido), para fins de estabelecer a proteção aos vulneráveis no sentido mais restrito.

Sobre os referidos elementos, verifica-se na doutrina estrangeira um conceito atemporal: (i) somente uma compreensão subjetiva do fenômeno do consumo centrada sobre a pessoa do consumidor e sobre as condições nas quais ele realiza seu papel no centro do ciclo de produção permitem revelar as oposições que atravessam o campo do consumo, identificar as fraquezas e necessidades do grupo social e econômico representado pelo consumidor e; (ii) o fenômeno do consumo se apresenta como uma

88 Claudia Lima Marques afirma: “A jurisprudência observou as duas correntes – finalista e maximalista

–, denominando a primeira de ‘corrente subjetiva’ (ou finalista), pois foca na destinação final fática e econômica pelo sujeito-consumidor, e a segunda de ‘corrente objetiva’ (ou maximalista), pois se concentra no ato de consumo ao retirar o sujeito, pouco importante se utiliza no processo produtivo ou não o produto ou o serviço, como destinatário final fático deste. Daí por que hoje, mais do que correntes doutrinárias, e tendo em vista a sua elaboração na doutrina nestes 20 anos de CDC, assim sua bela e refletida absorção pela prática, podemos falar em teorias finalista e maximalista” (MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011. p. 307).

89 Principalmente Antonio Herman Benjamim, Alcides Tomasetti Jr., Eros Grau e Adalberto

Pasqualotto, conforme nota indicada por Claudia Lima Marques. A Autora também é adepta da referida teoria: “Em resumo, concordamos com a interpretação finalista das normas do CDC. A regra do art. 2.º deve ser interpretada de acordo com o sistema de tutela especial do Código e conforme a finalidade da norma, que vem determinada de maneira clara pelo art. 4.º do CDC. Só uma interpretação teleológica da norma do art. 2.º permitirá definir quem são os consumidores do sistema do CDC. Mas, além dos consumidores stricto sensu, conhece o CDC os consumidores equiparados, os quais, por determinação legal, merecem a proteção especial de suas regras. Trata-se de um sistema tutelar que prevê exceções em seu campo de aplicação sempre que a pessoa física ou jurídica preencher as qualidades objetivas de seu conceito e as qualidades subjetivas (vulnerabilidade), mesmo que não preencha a de destinatário final econômico do produto ou serviço” (Contratos no Código de

Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

destruição “técnica” dos bens ou serviços, ao passo que o consumidor aparece como destinatário final, destruindo um bem em sua substância para utilizá-lo.90

A corrente doutrinária adepta da teoria finalista afirma que a definição do consumidor é a base que sustenta a tutela especial concedida aos consumidores. Essa tutela só existe porque o consumidor é parte vulnerável na relação, conforme afirma o próprio codex consumerista em seu art. 4.º, inciso I. Para tanto, a expressão “destinatário final” é interpretada de forma restritiva à luz dos limites previstos nos arts. 4.º e 6.º e apresenta-se imponente a delimitação de quem merece a tutela e quem é o consumidor.

Sobre a interpretação teleológica da norma e comentando sobre as bases da teoria finalista, acerva Claudia Lima Marques:

Destinatário final é aquele destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa jurídica ou física. Logo, segundo esta interpretação teleológica, não basta ser destinatário fático do produto, retirá-lo da cadeia de produção, levá-lo para o escritório ou residência: é necessário ser destinatário final econômico do bem, não adquiri-lo para revenda, não adquiri-lo para uso profissional, pois o bem seria novamente um instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu. Neste caso, não haveria a exigida “destinação final” do produto ou do serviço.91

Assim, essa interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire/utiliza o produto/serviço para uso próprio/de sua família, excluindo a figura do profissional, posto que a finalidade da norma (codex consumerista) seria tutelar de maneira especial o grupo da sociedade mais vulnerável. Essa restrição traria um nível mais alto de proteção àqueles que realmente necessitam da tutela especial, posto que a jurisprudência se consolidaria sobre os casos em que a parte realmente mais fraca da relação busca o reequilíbrio, e não sobre os casos em que os profissionais consumidores almejam tutela além daquelas já concedidas pelo direito comercial.92

90 BOURGOIGNIE, Thierry. O conceito jurídico de consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São

Paulo: RT, p. 16 e 25, 1992.

91 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011. p. 305.

Nessa linha de raciocínio, a interpretação teleológica almeja não só que haja a retirada da cadeia de produção sendo dada destinação final de caráter econômico, mas também uma aquisição sem revenda ou uso profissional pois, caso contrário, como dita a doutrina, o bem seria novamente instrumento de produção cujo preço será incluído no preço final do profissional que o adquiriu.93

Assim, verifica-se nesta linha de argumentação, a vedação da utilização do bem como insumo de produção, pois neste caso não há retirada do bem do processo econômico. Ao contrário, o insumo irá compor o bem (produto ou serviço) aumentando- lhe o valor, o qual invariavelmente será repassado ao consumidor.

Tendo em vista que o codex consumerista foi claro ao dispor sobre a possibilidade de a pessoa jurídica ser considerada consumidora, a doutrina finalista começa a diferenciar quando o produto ou serviço é utilizado como insumo. Assim, sendo o produto utilizado como matéria-prima e parte do processo produtivo, a pessoa jurídica não seria considerada consumidora.94

93 Neste sentido, no julgamento do Recurso Especial n.º 701.370, o Superior Tribunal de Justiça negou a

qualidade de consumidor à pessoa jurídica revendedora de veículos, porque destinatária intermediária, sob o argumento disposto na seguinte ementa: Recurso especial – Competência – Ação de revisão contratual – Empresa revendedora de veículos – Destinatária intermediária – Relação de consumo – Não configuração – Cláusula eletiva de foro – Validade – Dissídio jurisprudencial – Súmula 83/STJ. 1. Conforme orientação adotada por esta Corte, a aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. Por outro lado, a questão da hipossuficiência da empresa recorrente em momento algum foi considerada pelas instâncias ordinárias, não sendo lídimo cogitar-se a respeito nesta seara recursal, sob pena de indevida supressão de instância. 2. Assim sendo, na esteira da jurisprudência deste Tribunal, a competência fixada pela cláusula de eleição de foro deve ser observada. Incidência da Súmula 83/STJ. 3. Recurso não conhecido (REsp 701.370/PR, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 4.ª Turma, j. 16.08.2005, DJ 05.09.2005, p. 430).

O mesmo se aplica nos casos em que o produtor rural é consumidor de insumos agrícolas:

Agravo regimental no agravo em recurso especial. Produtor rural. Compra e venda de insumos agrícolas. Revisão de contrato. Código de defesa do consumidor. Não aplicação. Destinação final inexistente. Inversão do ônus da prova. Impossibilidade. Precedentes. 1. Esta Corte Superior consolidou o entendimento no sentido de que no contrato de compra e venda de insumos agrícolas, o produtor rural não pode ser considerado destinatário final, razão pela qual, nesses casos, não incide o Código de Defesa do Consumidor. 2. Ausente a relação de consumo, torna-se inaplicável a inversão do ônus da prova prevista no inciso VIII do art. 6.º, do CDC, a qual, mesmo nas relações de consumo, não é automática ou compulsória, pois depende de criteriosa análise do julgador a fim de preservar o contraditório e oferecer à parte contrária oportunidade de provar fatos que afastem o alegado contra si. Precedentes. 3. Agravo regimental não provido, com aplicação de multa (AgRg no AREsp 86.914/GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 21.06.2012, DJe 28.06.2012).

94 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 10. ed.

Vale anotar que, na I Jornada de Direito Comercial, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em outubro de 2012, foi aprovado enunciado doutrinário no sentido de que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor nos contratos entre empresários que tenham por objetivo o suprimento de insumos para as suas atividades de produção, comércio ou prestação de serviços (Enunciado 20).95

De qualquer modo, verifica-se que a Lei n.º 8.078/1990, foi enfática ao distinguir o consumidor final do intermediário, ao levantar que somente a aquisição para uso próprio, individual, familiar ou de terceiros será considerada como consumo, ficando à margem a aquisição de bens/serviços para utilização na atividade-fim da empresa.96

O conceito de consumidor adotado pelo codex na visão dos autores do anteprojeto foi exclusivamente de caráter econômico, tendo como base o personagem que adquire do mercado produtos ou serviços na qualidade de destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial.97

Ademais, aqueles que vislumbram com mais ênfase a proteção consumerista do não profissional, entendem que, em razão da construção do “movimento consumerista” ter acompanhado o sindicalista, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, em que se reivindicarem melhores condições de trabalho e melhoria na qualidade de vida pela sintonia “poder aquisitivo e mais e melhores aquisições de bens e serviços”, o conceito de vulnerabilidade está consagrado na figura do consumidor. Assim, por essa razão, a pessoa jurídica arranharia este conceito, na medida que dispõe de força suficiente para sua defesa, enquanto o consumidor fica desprotegido e imobilizado pelos altos custos e morosidade da justiça comum. Nessa

95 TARTUCE, Flávio. Manual de direito do consumidor. Direito material e processual. 3. ed. rev., atual.

e ampl. São Paulo: Método, 2014. p. 77.

96 ZANELLATO, Marco Antonio. Considerações sobre o conceito jurídico de consumidor. Revista do

Consumidor, São Paulo: RT, n. 45, p. 173, jan.-mar. 2003.

97 FILOMENO, José Geraldo Brito. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de Defesa do

Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev., atual. e ref. Rio de Janeiro:

linha de raciocínio, considera-se como consumidora apenas a pessoa jurídica que, vulnerável, utiliza produto ou serviço para fins não profissionais.98

Assim que, analisando a doutrina finalista sob o enfoque da necessidade de se dar uma destinação econômica ao produto ou serviço, percebe-se que, em princípio, praticamente se inviabiliza o reconhecimento da pessoa jurídica como consumidora. Isso porque, em menor ou maior escala, os produtos e serviços adquiridos são, ainda que indiretamente, utilizados na atividade lucrativa.99

Nessa linha, Toshio Mukai afirma:

A pessoa jurídica só é considerada consumidor pela Lei, quando adquirir ou utilizar produto ou serviços como destinatário final, não, assim, quando o faça na condição de empresário de intermediação ou mesmo como insumos ou matérias-primas para transformação ou aperfeiçoamento com fins lucrativos (com o fim de integrá-los em processo de produção, transformação, comercialização ou prestação a terceiros).100

Conforme afirma José Reinaldo de Lima Lopes, o enfoque do art. 2.º, caput, pode fazer perder um elemento essencial, que no fundo é o que justifica a existência da própria disciplina da relação de consumo: a subordinação do consumidor. Vejamos:

“É certo”, continua, “que uma pessoa jurídica pode ser consumidora em relação a outra; mas tal condição depende de dois elementos que não foram adequadamente explicitados neste particular artigo do Código”.[...]

Em primeiro lugar, o fato de que os bens adquiridos devem ser bens de consumo e não bens de capital. Em segundo lugar, que haja entre fornecedor e consumidor um desequilíbrio que favoreça o primeiro. Em outras palavras, o Código de Defesa do Consumidor não veio para revogar o Código Comercial ou o Código Civil no que diz respeito a relações jurídicas entre partes iguais, do ponto de vista econômico. Uma grande empresa oligopolista não pode valer-se do Código de Defesa do Consumidor da mesma forma que um microempresário. Este critério, cuja explicitação na lei é insuficiente, é, no entanto, o

98 FILOMENO, José Geraldo Brito. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de Defesa do

Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. rev., atual. e ref. Rio de Janeiro:

Forense, 2011. v. I, p. 28.

99 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 10. ed.

rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodvim, 2013. p. 30.

100 MUKAI, Toshio. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991. p.

único que dá sentido a todo o texto. Sem ele, teríamos um sem sentido jurídico.101

Entende Arnold Wald que o “consumidor protegido pela lei é, pois, a pessoa que, para as suas necessidades pessoais, não profissionais, contrata o fornecimento de bens e/ou serviços não os repassando a terceiros nem os utilizando como instrumento de produção”.102 Isso porque a “lei veio para trazer guarida aos economicamente frágeis, e não para resolver litígios concernentes às inflamadas relações comerciais”.103

Assim, pode-se extrair a ideia de que, para os finalistas, o agigantamento do universo de aplicação do codex consumerista acarretaria no desprestígio do fim especial visado pelo legislador, reforçando, em contrapartida, a tutela dos profissionais que, quando eventualmente atuassem como consumidores, possuiriam privilégios especiais excedentes aos já existentes na legislação civil.

Em notas mais brandas, afirma Vidal Serrano Nunes Junior:

Destaca-se, contudo, que nada obsta que uma pessoa jurídica figure –

com justiça – em uma relação de consumo no polo hipossuficiente. Por exemplo, uma empresa adquire equipamentos de proteção para seus empregados, ou ainda cortadores de grama para manter higienizados seus campos. Em ambos os casos, produtos totalmente desvinculados de sua atividade produtiva, não consistindo os bens como aqueles de capital. Obviamente, a empresa não ficará à míngua de proteção, pode não ter a malfadada inferioridade econômica, mas certamente não tem o domínio situacional e da informação técnica.104

Claudia Lima Marques concorda que a rigidez dos finalistas foi evoluindo para uma postura mais branda, mas sempre teleológica, para conceber a possibilidade do judiciário, reconhecendo a vulnerabilidade de uma pequena empresa ou profissional, que adquiriu, por exemplo, um produto fora do seu campo de especialidade, interpretar

101 Responsabilidade civil do fabricante e a defesa do consumidor. Revista dos Tribunais, 1992. p. 78-79. 102 WALD, Arnoldo. O direito do consumidor e suas repercussões em relação às instituições financeiras.

Revista dos Tribunais São Paulo: RT, n. 666, p. 13, abr. 1991.

103 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Código de Defesa do Consumidor interpretado: doutrina e

jurisprudência. 6. ed. São Paulo: Verbatim, 2014. p. 39.

o art. 2.º de acordo com o fim da norma, isto é, a proteção do mais fraco na relação de consumo, para estender a aplicação do codex consumerista também a estes profissionais.105