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O papel do diálogo das fontes e as restrições impostas pela ordem pública e

9. A CISG COMO MÁXIMA HARMONIZADORA DA LEI APLICÁVEL A

10.3 O papel do diálogo das fontes e as restrições impostas pela ordem pública e

Como visto anteriormente, a CISG corresponde ao conjunto de normas materiais uniforme sobre o contrato de compra e venda internacional de mercadorias e deve ser interpretada autonomamente em relação ao direito interno dos Estados que a adotaram, prevalecendo o seu texto sobre qualquer norma nacional em sentido diverso.

Por essa razão, as regras domésticas que regem a mesma matéria no tocante aos contratos de celebrados em esfera nacional ou que estejam excepcionalizados pelo texto convencional não devem ser utilizadas quando da análise de um negócio submetido à CISG.

Como visto no tópico anterior, o Direito Internacional Privado clássico sempre empregou o método conflitual no que se refere à determinação da lei aplicável para reger um contrato de caráter internacional. O método está inserido ao sistema tradicional das regras de conexão rígidas, que preveem a exclusão da aplicação das

normas de determinado país em detrimento das normas de outro. Na seara contratual, utiliza-se como balizador a adoção da lei local de celebração do contrato ou o local de sua execução.

No entanto, ao contrário da opção exclusionista, a teoria apontada por Erick Jayme em 1995254-255 prevê a possibilidade de aplicação de mais de uma fonte em determinada hipótese jurídica. Conhecida como “teoria do diálogo das fontes” urge o mecanismo de aceitar a convivência entre fontes de caráter distinto.

Na visão de Erick Jayme, o diálogo das fontes importa na utilização de fontes heterogêneas quando o juiz estiver diante de controvérsia envolvendo o conflito de leis sem a exclusão, a priori de uma ou outra lei, mas realizando a coordenação entre as regras envolvidas, com a finalidade de assegurar maior proteção à identidade cultural das partes.256

Para Claudia Lima Marques, a expressão “diálogo” refere-se ao fato de que há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes pela fonte prevalente (especialmente em matéria de convenções internacionais e leis-modelo) ou mesmo a opção por uma solução flexível aberta, de interpretação, ou a solução mais favorável ao mais fraco da relação.257

Como exemplo, Claudia Lima Marques cita o diálogo entre o CDC e a Convenção de Varsóvia:

Um bom exemplo é o transporte aéreo, em que havia lei especial (Código Brasileiro de Aeronáutica) e tratados especiais limitando as indenizações (em especial a Convenção de Varsóvia, que é de 1928). Assim, o Superior Tribunal de Justiça aplica o CDC em caso de transporte nacional prevalentemente em relação ao Código Brasileiro de Aeronáutica (diálogo de subsidiariedade) e aplica, em case de

254 A teoria baseada em um diálogo das fontes foi desenvolvida por Erick Jaime na conclusão de seu

Curso Geral na Academia de Direito Internacional da Haia, no verão de 1995.

255 JAYME, Erick. Identité culturalle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des

Cours, v. 251, p. 267, 1995.

256 JAYME, Erick. Identité culturalle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des

Cours, v. 251, p. 259, 1995.

257 MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do

transporte internacional aéreo, o sistema do transporte aéreo previsto no Tratado para determinar a responsabilidade (limitada) de danos materiais, mas aplica simultaneamente o CDC para uma reparação integral de danos morais, em caso de perda de bagagem.258

No entanto, a CISG apresenta algumas peculiaridades que merecem o apontamento. No caso do texto convencional, a sistemática do diálogo das fontes deverá ter como princípio norteador a preservação do caráter internacional do contrato de compra e venda.

Assim, quando estiver em jogo a aplicação da norma nacional ou outras regras do comércio, por exemplo, os princípios do Unidroit, no que se refere às matérias não reguladas diretamente pelo texto convencional, as fontes de direito devem ser examinadas conjuntamente, a fim de que prevaleça a regra que revele maior proximidade com o seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, na forma do que dispõe o art. 7.259-260

Como visto no tópico 9.1 supra, a CISG é incompleta para regulamentar todas as matérias advindas da modalidade contratual em questão, o que faz parte de sua própria consagração. Nesse sentido, para interpretação do texto convencional, devem ser levados em conta (i) a promoção da uniformidade, (ii) o seu caráter internacional e (iii) o respeito à boa-fé no comércio internacional:

O termo “uniformidade” consubstanciaria um dos propósitos da CISG: Criar regras materiais comuns para regular o contrato de compra e venda internacional. Sem prejuízo, “uniformidade” para os fins do

258 Como exemplo a autora cita os seguintes recursos apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça: REsp

196034/MG, 24.04.2011, AgRg no G 878.886/SP, 24.10.2008 e REsp 552.553, 12.12.2005 (MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: RT, 2012. p. 36).

259 “Artigo 7

(1) Na interpretação desta Convenção ter-se-ão em conta seu caráter internacional e a necessidade de promover a uniformidade de sua aplicação, bem como de assegurar o respeito à boa-fé no comércio internacional.

(2) As questões referentes às matérias reguladas por esta Convenção que não forem por ela expressamente resolvidas serão dirimidas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, à falta destes, de acordo com a lei aplicável segundo as regras de direito internacional privado.”

260 ARAÚJO, Nadia de; SPITZ, Lidia; TEIXEIRA, Bruno Barreto. In VENOSA, Sílvio de Salvo;

VILLAR GAGLIARDI, Rafael; ONO TERASHIMA, Eduardo (Org.). A Convenção de Viena sobre

contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas,

Artigo 7(1) da CISG tem um significado ainda maior, pois implica a implementação de um nível de similaridade no resultado da aplicação da regulamentação convencional, de modo que as regras possam sempre produzir o mesmo efeito, independentemente da jurisdição que irá aplicá-las.

O “caráter internacional” da Convenção, a seu turno, representa a ruptura proposta pela CISG entre o direito material doméstico da compra e venda e as regras previstas na Convenção. O histórico legislativo da CISG deixa bem claro que o objetivo do instituto é evitar uma interpretação da Convenção que seja influenciada por conceitos utilizados em sistemas legais do foro disputa.

Por fim, a decisão de privilegiar a “observância da boa-fé no comércio internacional” na interpretação da CISG, conforme disposto no Artigo 7, reflete um acordo entre os Estados que preferiam um dispositivo impondo, de forma direta, o dever de agir de boa-fé e aqueles que se opunham a qualquer menção explícita àquele princípio. Há consenso na doutrina que a função da boa-fé na CISG se limita somente a uma forma de interpretação da Convenção, diferentemente do que ocorre no direito brasileiro.261

Assim, quanto ao modelo proposto por Erick Jayme, no caso da CISG, a escolha da norma aplicável deve ser guiada a partir da necessidade de preservação de seus princípios fundamentais com intuito de minimizar os efeitos das práticas domésticas em prol da interpretação uniforme, de forma a preservar o caráter internacional da CISG.

Como visto ainda no referido tópico 9.1, o § 2.º do art. 7 fornece os instrumentos com os quais a CISG deve dialogar para que possa ser desenvolvida uma interpretação completa de seu texto. Referido dispositivo sugere que toda vez que se vislumbrar uma lacuna no texto convencional os operadores do direito deverão recorrer primeiro aos princípios que compõem a CISG e, caso não sejam suficientes, à lei aplicável segundo as regras de direito internacional privado, havendo uma hierarquia entre esses dois instrumentos na interpretação da CISG.262

O que se conclui de tal raciocínio é que, diante de uma situação de lacuna no texto convencional, o primeiro recurso não é a lei doméstica, e sim as regras

261 ARAÚJO, Nadia de; SPITZ, Lidia; TEIXEIRA, Bruno Barreto. In VENOSA, Sílvio de Salvo;

VILLAR GAGLIARDI, Rafael; ONO TERASHIMA, Eduardo (Org.). A Convenção de Viena sobre

contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas,

2015. p. 594-595.

262 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the

internacionais que deem uma solução à preservação dos princípios consagrados no art. 7(1). Um dos recursos anteriores à lei doméstica seria o acesso aos princípios da Unidroit, os quais referem-se a um conjunto de regras contratuais baseadas na prática do comércio internacional.263 O Unidroit codifica esses princípios264 originados no que se denomina lex mercatoria – princípios e práticas existentes desde os primórdios do comércio internacional e que, inclusive, serviram de base para a formação da própria CISG.265

Assim, diante da ausência de uma solução para determinada controvérsia, deve-se recorrer aos princípios do Unidroit para suprir a lacuna da CISG, fazendo materializar a proposta do diálogo das fontes no contexto estudado.

Portanto, caso os operadores do direito não estejam familiarizados com os princípios da lex mercatoria, é possível que, diante de uma lacuna no texto convencional, tentem recorrer de forma primária à legislação doméstica, o que arranha o objetivo do texto convencional.

Portanto, fazendo o cotejo com a controvérsia analisada no presente trabalho, verifica-se que operador do direito, caso aplique a teoria do diálogo das fontes para solução da controvérsia, deverá estar atento ao fato de que não deverá recorrer à legislação interna em um primeiro momento.

Na realidade, o que se verifica é uma quebra na teoria do diálogo das fontes, quando se trata da CISG e do CDC, posto que configuram normas alternativas e o texto convencional não permite que seja acessada a legislação doméstica como via primária.

263 WITZ, Wolfgang et al. International einheitliches kaufrecht: Praktiker-Kommentar und

Vertragsgestaltung zum CISG [Comentário sobre a CISG] vor Art. 14, Rn. 12 (2000); vide também Art. 9 da CISG, Art. 1.8 dos Princípios de Contratos Comerciais Internacionais do Unidroit (Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado), par. 346 do HGB [*], Peter Schlechtriem e outros, Kommentar zum Einheitlichen UN-Kaufrecht [Comentário sobre a CISG] Art. 9, Rn. 8 (3d ed. 2000).

264 Ver princípios traduzidos pelo Professor Lauro Gama em: <http://www.unidroit.org/

english/principles/contracts/principles2010/translations/blackletter2010-portuguese.pdf>. Acesso em: 1.º abr. 2015.

265 JUENGER, Friedrich K. The lex mercatoria and private internacional law. Lousiana Law Review, p.

Na dúvida entre a aplicação do CDC ou CISG diante de possível interseção entre as normas perante a confusão entre a figura do comprador e o escopo de aplicação do texto convencional, o operador deverá se basear primeiramente nos princípios expostos no próprio texto convencional inspirados nas boas práticas comerciais internacionais extraídas da lex mercatoria.

Portanto, conclui-se que a interpretação da CISG deve ser feita autonomamente, isto é, sem levar em consideração o que a lei doméstica versa sobre a matéria, observando o seu caráter internacional e a necessidade de se promover a uniformização. Logo, a interpretação do texto no âmbito da teoria do diálogo das fontes encontra restrições impostas pela ordem pública e pelas disposições interpretativas da própria CISG.