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Vulnerabilidade e o finalismo aprofundado ou mitigado

4. O CONSUMIDOR NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

4.6 Vulnerabilidade e o finalismo aprofundado ou mitigado

Por muito tempo, o ponto controvertido entre as teorias finalistas e maximalistas se tornava mais sensível nos casos de aquisição de bens e serviços por profissionais no âmbito de seu empreendimento. Neste sentido, o debate cingia-se à interpretação do termo “destinatário final”, inobstante o fundamento da lei estar pautado na questão da “vulnerabilidade”.

Dentro dos debates entre a extensão da aplicação das normas consumeristas, muito se falou em “destinação fática” e “destinação econômica”, enquanto o conceito de vulnerabilidade era posto de lado. Integrando as duas teorias, o princípio da vulnerabilidade passou a se tornar vetor interpretativo para determinar o sentido e alcance do conceito dos consumidores.

111 TARTUCE, Flávio. Manual de direito do consumidor. Direito material e processual. 3. ed. rev., atual.

e ampl. São Paulo: Método, 2014.p. 78.

112 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. Código comentado e jurisprudência. 10. ed.

Dentro desse cenário, vale traçar um panorama acerca dos aspectos conceituais puros do princípio da vulnerabilidade e sua extensão para alcance das relações envolvendo profissionais vestidos nessa qualidade.

Pode-se depreender que a primeira justificativa para o surgimento da tutela do consumidor – e que sem ela a tutela não se justificaria –, está assentada no reconhecimento de sua vulnerabilidade nas relações de consumo, tratando-se de “espinha dorsal do movimento, sua inspiração central, base de toda a sua filosofia, pois, se, a contrario sensu, admite-se que o consumidor está cônscio de seus direitos e deveres, informado e educado para o consumo, atuando de igual para igual em relação ao fornecedor, então a tutela não se justificaria”.113

Reportando-se à Resolução n.º 39/248 da ONU, analisada no capítulo anterior, João Batista de Almeida afirma que já restou consolidado que os consumidores se deparam com situações de desequilíbrio em termos econômicos, nível educacional e poder aquisitivo, de modo que “chega-se a conclusão de que o consumidor não está educado para o consumo, e que, em razão disso, é lesado por todos os modos e maneiras, diuturnamente”.114

Acerca do critério legal vigente, podemos verificar que a Constituição Federal prescreveu a edição do Código de Defesa do Consumidor, invariavelmente porque reconhece a situação de vulnerabilidade do consumidor. Não passa despercebido o fato de que o conceito de vulnerabilidade é uma característica pré-jurídica ou um fenômeno natural, tendo assumido posição de destaque ao ser positivado no ordenamento jurídico.115

Sendo o consumidor reconhecidamente vulnerável, o art. 4.º, inciso I do Código de Defesa do Consumidor positiva o princípio então previsto na Política Nacional das Relações de Consumidor, como prestígio ao princípio da dignidade humana e da igualdade.

113 ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 7. ed. rev. e atual. São Paulo:

Saraiva, 2009. p. 22.

114 Idem, ibidem, p. 23.

115 MORAES, Paulo Valério Dal Pai. A vulnerabilidade tributária do consumidor. Revista de Direito do

Nota importante faz o jurista Fabio Schwarts ao tratar da defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, quando contraria as vozes especialmente vindas da classe de fornecedores no sentido de inferir que o Código seria um retrocesso, posto que na realidade implementa os direitos abertamente abrangidos na Carta Magna:

Após quase um quarto de século da edição do Código, a atividade econômica não restou nem de longe abalada. Ao revés, o norte traçado pela lei consumerista, no sentido de se garantir como direito básico do consumidor a oferta de produtos com qualidade, acabou por implementar – e ainda continua – o aperfeiçoamento do comércio de produtos e serviços no país, contribuindo sobremaneira para o desenvolvimento de uma atividade econômica sustentável.116

Encontra-se enfatizado no princípio da vulnerabilidade seu aspecto material, posto que trata-se de uma realidade – material – inafastável, “indicando a possibilidade de algo ou alguém ser ofendido, maculado, melindrado ou lesado em algum tipo de relacionamento subjetivo ou mesmo com objetos, situações ou coisas”.117

A importância do princípio da vulnerabilidade está, desta forma, no seu conteúdo eminentemente material e pré-jurídico, elementos estes que, não estando embasados em conceitos abstratos e meramente formais, indicam com clareza solar os melhores caminhos pelos quais a humanidade poderá se orientar, caso, efetivamente, deseje paz e harmonia de vida.

Explorando melhor os dois elementos caracterizadores acima apontados, diríamos que a vulnerabilidade é um conceito de relação, indicando uma circunstância em que um dos polos do relacionamento se encontra com potência superior ao outro polo, estando, portanto, com possibilidade de maculá-lo, ofendê-lo, melindrá-lo.118

Ainda sobre a distinção entre polos, a noção de consumidor decorre da vulnerabilidade desse sujeito, que não se coaduna com a habitualidade e com os mesmos meios no mercado, em face do fornecedor de um determinado bem ou serviço,

116 SCHWARTZ, Fabio. A defesa do consumidor como princípio da ordem econômica – Pressuposto

inarredável para a atuação dos órgãos públicos e imprescindível para o desenvolvimento sustentado do país. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, n. 94, p. 20, 2014.

117 MORAES, Paulo Valério Dal Pai. A vulnerabilidade tributária do consumidor. Revista de Direito do

Consumidor, São Paulo: RT, n. 51, p. 198, jul.-set. 2004.

que o explora empreendedoramente. Assim, os consumidores não detêm de meios de produção, sujeitando-se ao poder daqueles que o detém ou o controlam.119

Para Claudia Lima Marques, existem quatro tipos de vulnerabilidade (técnica, jurídica/técnica, fática e a informacional). Na vulnerabilidade técnica, o consumidor não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem. Na vulnerabilidade jurídica, existe a falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia. Nesse caso, a vulnerabilidade das pessoas jurídicas seria “inversamente presumida”, pois detêm de conhecimentos mínimos para desenvolver suas atividades ou podem contratar profissionais antes de obrigar-se. Na vulnerabilidade fática, há desproporção de forças intelectuais e econômicas entre o fornecedor e o consumidor. Na vulnerabilidade informacional, verifica-se a presunção de ausência de informação inerente às relações de consumo.120

Feita a análise conceitual, verifica-se que aplicação mitigada da teoria finalista afasta o rigor excessivo do critério subjetivo em situações de demonstrada vulnerabilidade, especialmente para fins de reequilibrar as relações entre fornecedores

e consumidores empresários (profissionais), tornando tal conceito um critério legal para a ampliação da definição do consumidor.

Assim que, especialmente nos casos submetidos à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, na forma de controle de constitucionalidade e uniformização da interpretação das leis, surgiu o que muitos designam como “finalismo aprofundado ou mitigado”.121

Precursora da nomenclatura, Claudia Lima Marques ao estudar os impactos da entrada em vigor do Código Civil de 2002 e a mudança vislumbrada nos julgamentos realizados pelo Superior Tribunal de Justiça afirma:

119 ODY, Lisiane Feiten Wingert. Consumidor e noção de vulnerabilidade nos países do Mercosul.

Revista do Direito do Consumidor, São Paulo: RT. n. 64, p. 87, 2007.

120 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011. p. 323-326.

Desde a entrada em vigor do CC/2002, parece-me crescer uma tendência nova na jurisprudência, concentrada na noção de consumidor final imediato (Endverbraucher) e da vulnerabilidade (art. 4.º, I), que poderíamos denominar finalismo aprofundado. Observando-se o conjunto de decisões desde 2003, parece-me que o STJ apresenta-se efetivamente mais “finalista” e executando uma interpretação do campo de aplicação e das normas do CDC de forma mais subjetiva quanto ao consumidor, porém mais finalista e objetiva quanto à atividade ou ao papel do agente na sociedade de consumo. É uma interpretação finalista mais aprofundada e madura, que deve ser saudada.

[...]

De um lado, a maioria maximalista e objetiva restringiu seu ímpeto, de outro os finalistas aumentaram seu subjetivismo, mas relativizaram o finalismo, permitindo o tratamento de casos difíceis de forma mais diferenciada. Em casos difíceis envolvendo pequenas empresas que utilizam insumos não diretos para a sua produção, isto é, não em sua área de expertise, ou com uma utilização mista, principalmente na área de serviços, provada a vulnerabilidade, concluiu-se pela destinação final de consumo prevalente.

[...]

Logo, presume-se que seja vulnerável sempre que atue na posição (social e estruturalmente desequilibrada) de consumidora, como destinatária final (Endverbraucher) de qualquer produto ou serviço, seja essencial, supérfluo, valioso ou de bagatela.122

Nessa linha, entende-se que, uma vez constatada a aquisição de insumos para produção e cuja aplicação não tenha relação direta com o seu objetivo social ou tenha utilização mista, seja possível a aplicação do art. 2.º do CDC, desde que provada a vulnerabilidade. Assim que, parece que referida teoria promove a compatibilização do art. 2.º com a realidade, já que não à toa inseriu na legislação a aplicação das normas protecionistas também às pessoas jurídicas. Caso contrário, não haveria razão do termo ter sido inserido no correlato dispositivo legal. No entanto, o produto/serviço deve ser destinado a insumos de produção, sem relação com a atividade principal da pessoa jurídica e destacada a vulnerabilidade na relação como divisor de águas.123

Vale mencionar que no julgamento do Recurso Especial n.º 476.428/SC,124 o Superior Tribunal de Justiça apresentou de modo expresso a teoria do finalismo

122 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011. p. 350-358.

123 NUNES MARCATO, Tercio Túlio. A aplicação do CDC aos contratos de compra e venda de imóvel

entre pessoas jurídicas. Revista Síntese – Direito Imobiliário, São Paulo: Síntese, p. 52-69, 2011.

mitigado. Uma empresa do ramo hoteleiro propôs ação de indenização em face de empresa distribuidora de gás, em razão da impossibilidade física de usufruir até o fim o produto, seja pela natureza do produto, seja pela característica do recipiente fornecido pela distribuidora. Alegou que o produto sempre remanescia nos cilindros de gás. Em razão de sua vulnerabilidade técnica, a empresa hoteleira foi considerada consumidora:

Direito do Consumidor. Recurso especial. Conceito de consumidor. Critério subjetivo ou finalista. Mitigação. Pessoa Jurídica. Excepcionalidade. Vulnerabilidade. Constatação na hipótese dos autos. Prática abusiva. Oferta inadequada. Característica, quantidade e composição do produto. Equiparação (art. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício oculto. – A relação jurídica qualificada por ser “de consumo” não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus polos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. – Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. – São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas. – Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide (inovação recursal). Recurso especial não conhecido.

Ao discorrer sobre a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos Contratos de Compra e venda de Imóvel entre Pessoas Jurídicas, anota Tercio Túlio Nunes Marcato:

Portanto, conclui-se que a compra e venda de imóvel entre pessoas jurídicas pode ser albergada pela legislação consumerista, adotando- se, para tanto, a teoria finalista aprofundada, na qual entende que há necessidade do bem adquirido não integrar a formação dos bens de produção da empresa-consumidora. Nesse contexto, a vulnerabilidade é presumível, por lhe faltar o conhecimento técnico. Ela é vulnerável tecnicamente, porque não faz parte da sua expertise a compra e venda de imóvel.125

125 MARCATO, Tercio Túlio Nunes. A aplicação do CDC aos Contratos de Compra e Venda de Imóvel.

Ao divagar sobre o que seria essa “terceira” corrente, Marcos Maselli Gôuvea cita como exemplo a interpretação sistemática entre a expressão destinatário final e a noção de fundo de comércio, o qual engloba todo o ornamento dos produtos adquiridos mas que, a contrário sensu, não engloba “automóveis para conduzir seus diretores, computadores que emitem contracheques etc.” circunscrevendo, portanto, a tutela do consumidor nas hipóteses em que a empresa não age na qualidade de empresa, ou seja, quando adquire produtos e serviços que não compõem o fundo de fornecimento.126

O alargamento do conceito pode ser verificado em outros ordenamentos jurídicos. Introduzindo aspectos relativos à defesa jurídica dos débiles (frágeis), Roberto M. Lopes Cabana aponta traços do direito romano na intervenção do legislador em favor de uma das partes, como algo muito mais sensível que a intervenção em favor dos mais fracos, mostrando-se imponente a distinção:

O direito romano dava relevância ao frágil favor debitoris, uma regra considerada como “uma disposição residual, devendo ser entendida no sentido da protecção da parte mais fraca no contrato”. Apenas “se no contrato não há visivelmente um mais fraco, a interpretação deve acolher as contraprestações como equivalentes”.127

A respeito da evolução da interpretação jurisprudencial sobre o conceito de consumidor, Bruno Miragem aponta três estágios: o primeiro, expansionista, tendo o Código de Defesa do Consumidor como lei de regulação geral, sendo admitido o consumidor como destinatário fático do produto ou serviço, acolhido o empresário. O segundo, restritivo, privilegiando a teoria finalista. O terceiro, em que se destaca o critério da vulnerabilidade para a identificação do consumidor.128

126 GOUVÊA, Marcos Maselli. O conceito de consumidor e a questão da empresa como “destinatário

final”. Revista do Direito do Consumidor, São Paulo: RT, n. 23-24, p. 191-192, jul.-dez. 1997.

127 CABANA, Roberto M. Lopez. Defensa jurídica de los más débiles. Revista do Consumidor, São

Paulo: RT, n. 28, p. 7, out.-dez. 1998 (Tradução livre).

128 MIRAGEM, Bruno. Aplicação do CDC na proteção contratual do consumidor-empresário: concreção

do conceito de vulnerabilidade como critério de equiparação legal. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, n. 62, p. 260, 2007.