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Aspectos político-criminais da permissão do uso de Ayahuasca com finalidades religiosas.

CONSUMO DE DROGAS ILÍCITAS.

4.1.2 Aspectos político-criminais da permissão do uso de Ayahuasca com finalidades religiosas.

Paralelamente ao processo de criminalização de drogas mais populares- como derivados do ópio, do chá da coca a heroína, e maconha – surge no Brasil uma outra forma de repressão ao uso do chá conhecido como daime, mas também chamado de vegetal, hoasca e ayahuasca. A bebida resulta do processo de infusão e fermentação de substâncias como pelo cipó Banisteriopsis caapi (popularmente chamado de jagube, mariri etc) e pela folha

Psychotria viridis (conhecida como chacrona, rainha etc.).

Historicamente, o uso do chá de daime era feito por grupos religiosos, chamados de religiões ayahuasqueiras, que surgiram na região Norte do Brasil a partir da década de 1930: primeiro grupo a professar essa religião foi liderado por Raimundo Irineu Serra no Acre; nesse mesmo estado, em 1945, criou-se uma outra “vertente” denominada Barquinha sob o comando de Daniel Pereira Mattos; por fim, em 1961, José Gabriel da Costa funda a União do Vegetal (UDV) que tem sede em Rondônia na cidade Porto Velho. Esses três grupos são considerados as origens principais da religião ayahuasca.

259 Quanto a este aspecto, é válido destacar que, nos termos do artigo 3, item 1, da Convenção de Viena, o

legislador nacional assumiu a obrigação de tipificar condutas que correspondem a atos preparatórios para o crime de tráfico. Observe-se a redação o inciso II da letra “c” do aludido dispositivo: “a posse de equipamentos ou materiais ou substâncias, enumeradas no Quadro I e no Quadro II, tendo conhecimento prévio de que são utilizados, ou serão utilizados, no cultivo, produção ou fabricação ilícitos de entorpecentes ou substâncias psicotrópicas.”

Interessante destacar que o surgimento da religião do daime coincide com o período do ciclo da borracha. Ao investigar os fatos históricos, antropólogos costumam associar a ausência do Estado no tocante à assistência daquela população isolada ao surgimento da religião ayahuasca que “parecia permitir que esses religiosos enfrentassem mais eficazmente as deficiências da capital acreana, que nesses anos trinta e quarenta não apresentavam condições de sanar as necessidades da população que para lá migrava, com serviços de habitação, saneamento e saúde escassos”260.

No campo penal, apesar de não haver proibição legal ao uso do daime, como substância ilícita, constata-se que desde o início da referida prática, havia a identificação da religião ao crime de curandeirismo e charlatanismo. De tal sorte, os praticantes das religiões nascentes eram estigmatizados e frequentemente apontados como “macumbeiros”, o que era reforçado pelo preconceito com os participantes que eram pobres e, em sua maioria, negros.261

Atualmente, a discussão sobre o uso do daime é centrada na sua classificação como droga ilícita, visão essa que se consolida a partir da década de 70, com a notável influência pela política de combate às drogas:

Um ano depois de se instalar no Acre, em 1974, a Polícia Federal já manifesta interesse em investigar os grupos religiosos ayahuasqueiros locais, convocando os dirigentes de vários desses grupos para depoimentos informais [...] contudo, estas novas investidas da Polícia Federal, na década de setenta, se distinguem daquelas do passado porque o objetivo não era mais reprimir crenças de macumba e feitiçaria ou, então, combater práticas terapêuticas populares que se enquadrassem na categoria de atos de charlatanismo e curandeirismo. O interesse principal dos representantes da lei passava a ser a bebida consumida em todos esses cultos [...] as informações solicitadas diziam respeito aos efeitos do chá, a suas conseqüências, sua composição etc262.

A análise da composição do chá indicou a presença de N-Dimetiltriptamina (DMT), substância ilícita incluída na lista da Convenção de Viena de 1971. Em virtude disso, o uso do daime foi proibido em 1985 até 1987, quando houve a liberação para fins religiosos e ritualísticos. A polêmica é acesa em 1995, quando resolução do CONFEN proíbe uso do chá por menores de 18 anos de idade e pessoas que apresentassem transtornos mentais.

Segundo a Resolução 5/2004 do CONAD o uso do chá, no uso religioso da ayahuasca, deveria ser permitido como forma de proteger o direito constitucional ao exercício do culto e à decisão individual. Nesse viés, o indivíduo deve ser informado amplamente por

260 GOULART, Sandra Lucia. Estigmas de grupos ayahuasqueiros. In: LABATE, Beatriz Caiuby et al (org).

Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: Edufba, 2008, pp. 251 -288, pp. 257-258.

261 GOULART. Op. cit., p.260-261. 262 GOULART. Op. cit. p. 264.

profissionais das diversas áreas do conhecimento humano, pelos órgãos públicos e pela experiência comum sobre as conseqüências do consumo reiterado da substância. Por fim, o instrumento normativo dispõe que:

A participação no uso religioso da ayahuasca, de crianças e mulheres grávidas, deve permanecer como objeto de recomendação aos pais, no adequado exercício do poder familiar (art. 1.634 do Código Civil), e às grávidas, de que serão sempre responsáveis pela medida de tal participação, atendendo, permanentemente, à preservação do desenvolvimento e da estruturação da personalidade do menor e do nascituro.263

Isso quer dizer que as restrições subjetivas foram afastadas pelas Autoridades Administrativas competentes como forma de viabilizar o direito ao livre exercício do culto, dando maior amplitude a expressão “para fins religiosos”. Contudo, ainda não está claro a questão do “turismo do daime”, pois como é sabido, existem curiosos que participam desses rituais com finalidades recreativas e não religiosas, uma vez que a idéia de religião pressupõe a reiteração de atos, tanto que, na linguagem cotidiana, se refere a um religioso como fiel.

Nessa hipótese, o uso profano do daime pressupõe o fornecimento do mesmo a pessoa que não participe regularmente das reuniões religiosas, conduta que poderá ser encarada como tráfico de drogas. Essa preocupação foi recentemente expressa na última resolução 1/2010 do CONAD264 que se preocupou em estabelecer a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca e implementar o estudo e a pesquisa sobre o uso terapêutico da Ayahuasca em caráter experimental nos termos do relatório final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho (GMT).

O relatório, anexado a nova Resolução do CONAD, proíbe a comercialização da ayahuasca, dispondo que “o plantio, o preparo e administração com o fim de auferir lucro é incompatível com o uso religioso” e, por conseguinte, seria considerado ato passível de punição nos termos da Lei 11.343/2006. Ademais, o turismo do daime deve ser igualmente considerado como tráfico ilícito na medida em que se configura como atividade econômica que visa o lucro e não possui finalidades religiosas. Nesses termos o relatório especifica que

Turismo, como atividade comercial, deve ser evitado pelas entidades, que por se constituírem em instituições religiosas, não devem se orientar pela obtenção de lucro, principalmente decorrente da exploração dos efeitos da bebida. A Constituição Federal garante o livre exercício dos cultos religiosos, que tem como conseqüência o direito à propagação da fé através do intercâmbio legitimo de seus membros. Neste sentido todos têm direito de professar a sua fé livremente e de promover eventos dentro dos limites legais estabelecidos. O que se quer evitar é que uma prática religiosa responsável, séria, legitimamente reconhecida pelo Estado, venha a se transformar, por

263 BRASIL. Resolução n° 5 CONAD, de 04 de novembro de 2004. Disponível em:

http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/327030.pdf

264BRASIL. Resolução 01 de 25 de janeiro de 2010 CONAD, Disponível em:

força do uso descomprometido com princípios éticos, em mercantilismo de substância psicoativa, enriquecendo pessoas ou grupos, que encontram no argumento da fé apenas o escudo para práticas inadequadas265.

Convém mencionar que todas as conclusões tomadas pelo referido Grupo não conflitam com as obrigações internacionais firmadas pelo Brasil, posto que o INCB (International Narcotics Control Board), da Organização das Nações Unidas, decidiu que a aludida bebida e as espécies vegetais nelas contidas não são objetos de controle internacional.

De forma conclusiva, percebe-se que, nos momentos em que a ingerência internacional não se justifica, os poderes públicos nacionais apresentaram medidas sensivelmente adequadas, trazendo a possibilidade de debate entre as instituições oficiais e a sociedade civil, especialmente os grupos religiosos afetados. Isso demonstra que a norma jurídica foi construída com a participação de seus destinatários, o que é elogiável pela observância de um processo de legitimação democrático.

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