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DELITOS INSERIDOS NA LEI N.º 11.343/2006.

3.1 O papel do Bem jurídico na Dogmática Penal.

Seria impossível discutir a função do bem jurídico para o desenvolvimento da dogmática penal sem questionar qual é a função do Direito penal, eis que o objeto da tutela da norma penal é um pressuposto para o estudo dogmático. Essa temática, na atualidade, tem ganhado espaço em virtude, principalmente, das mudanças sociais, políticas, econômicas e jurídicas ocorridas na Idade Contemporânea, principalmente no que concerne às novas funções assumidas pelo Direito Penal.

A discussão sobre as tarefas atribuídas ao Direito Penal toma especial importância nas sociedades periféricas sul-americanas que são marcadas por problemas sociais gerados pelo crescimento descontrolado e desorganizado da população e pelo processo de exclusão social. Sob uma perspectiva sociológica, é possível sustentar que os indivíduos, atualmente, se encaram como “pessoas anônimas” o que provoca um processo semelhante à despersonificação, caracterizado pela compreensão de que o outro coincide apenas com o seu papel social e, ignorando-se sua visão como pessoa169.

Esse processo comum às sociedades de risco importa na imposição de um forjado consenso imposto pela maioria, o que se externa como uma homogeneização simbólica de interesses170. Ignorando as necessidades dos indivíduos excluídos, as sociedades periféricas

169BERNAL, José Fernando Botero. El derecho penal para las sociedades periféricas americanas: uma propuesta para América del siglo XXI. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 16, n.º 72, São Paulo:

Revista dos Tribunais, pp. 53-86, maio-julho de 2008, pp. 54-55.

170 Esse termo é originalmente utilizado por Niklas Luhmann em contexto próprio de sua filosofia. Contudo, será

acabam por sofrer com a violência social que possui inegável ligação com a extrema pobreza da população marginalizada.

Eis o desafio: o Direito penal contemporâneo deve lidar com a expansão das pautas de condutas a serem regularizadas, bem como deve considerar padrões internacionais de proteção aos direitos humanos, ao mesmo tempo em que se impõe a adoção de um modelo punitivista em relação à repressão de certos delitos. Toda essa complexidade deve ser interpretada em conformidade com a Constituição Federal, cujas normas servem não somente como critérios de validade, como também indicam os objetivos a serem visados pelo modelo penal a ser adotado no Estado Democrático de Direito.

Muitos temem a ampliação do âmbito de intervenção do Direito Penal porque poderia provocar uma tendência de flexibilização de garantias processuais e de critérios de imputação penal como forma de priorizar a segurança pública e a coletividade em detrimento do infrator171.

Dito isto, é necessário dizer que o presente trabalho tem como objetivo enfocar apenas a questão dos critérios de imputação que levam a tipificação de delitos de perigo abstrato previstos na lei 11.343/2006 e, para isso, se utilizará de argumentação norteada pela noção de bem jurídico penal e pelo princípio da ofensividade.

Portanto, dedicar-se-á, inicialmente, à análise e ao contraste de diversas concepções acerca do bem jurídico para servir de alicerce, posteriormente, para a discussão sobre a problemática envolvendo a saúde pública como um bem jurídico coletivo na Lei 11.343/2006. 3.1.2 Discussões acerca do objeto da tutela penal: valores éticos ou bem jurídicos?

No meio acadêmico, não há consenso acerca do objeto da tutela penal, havendo diversas concepções que têm em comum o objetivo de delimitar a ação do legislador penal e definir qual é a função do direito penal dentro da sociedade.

Alerta-se que a discussão sobre o bem jurídico não é recente, tendo surgido, pela primeira vez, em meados do século XIX com a doutrina de Birnbaum, segundo a qual o crime seria uma ofensa a um bem externado através de um direito subjetivo. Após essa guinada,

direito representam, na verdade, os interesses das classes detentoras do poder econômico, que invariavelmente possui influência sobre as escolhas políticas no Brasil. A crítica acerca da homogeneização dos interesses é compreendida sob um viés democrático, ou seja, num Estado democrático de direito deve-se contemplar não apenas os interesses dominantes, como também, proteger os direitos de minorias ou maiorias oprimidas e excluídas do debate político.

171 ARANA, Raúl Pariona. El Derecho Penal “Moderno”: sobre la necesaria legitimidad de las intervenciones penales. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 15, n.º 68, São Paulo, n.º 68, pp. 113-139, setembro-

alguns autores passaram a trabalhar com duas propostas: a primeira trataria o bem jurídico como um direito público subjetivo; para a segunda teoria, desenvolvida por Binding, o bem jurídico seria criado pelo legislador que deveria avaliar a existência de um interesse social importante, para então tutelar sua violação.

De acordo com Prado, dentre as funções mais importante atribuídas ao bem jurídico estão as seguintes funções172: garantir ou limitar o direito de punir; servir como critério interpretativo dos tipos penais; contribuir para a individualização da pena como parâmetro a ser observado na aplicação do princípio da proporcionalidade entre a lesão ou ameaça ao bem jurídico e a pena; e, finalmente, o bem jurídico serve como elemento classificatório dos tipos penais da parte especial do Código Penal.

Preocupado com a diferenciação entre valor e bem material, Bettiol afirmava que o bem jurídico era o valor ético tutelado pela norma e, por isso, não poderia ser considerado como um bem material173.

Como toda instituição de controle social, o Direito penal reflete as necessidades e valores vigentes em uma sociedade num certo momento histórico. Nesse viés, a análise do processo de seleção dos bens jurídicos tutelados é útil para demonstrar se os interesses protegidos correspondem às necessidades atuais da sociedade.

Portanto, a ciência penal deve ser pautada em torno de diretrizes que possibilitem uma “racional concretização e individualização dos interesses merecedores de proteção”174.

Nesse passo, constata-se que a pena aplicada à conduta criminosa representa não somente uma reação estatal à violação da Ordem Jurídica, mas principalmente demonstra que o bem jurídico protegido pela norma penal é aquele considerado relevante e valioso. Por esse motivo, é comum encontrar autores que tentam fixar uma relação entre bem jurídico e a sanção penal.

Ensina Zaffaroni que é possível identificar duas concepções acerca do objeto do direito penal: de um lado, tem-se aqueles que sustentam ser a segurança jurídica o objetivo do direito penal e, de outro, estão os doutrinadores representantes do movimento da defesa social. Conforme os primeiros, defensores da segurança jurídica, a principal função da pena é a retribuição do mal causado pela conduta praticada pelo delinqüente. Embora, atualmente, reconheçam que essa não é a única função da pena, defendem a ênfase na função instrumental

172 PRADO, Luiz Regis. Bem Jurídico-penal e Constituição. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, 51. 173 PRADO. Op. cit., p. 39.

do direito penal. Já, de acordo com os representantes da Defesa Social175, a pena deveria servir para evitar que o agente do crime voltasse a delinqüir, adquirindo um efeito prioritariamente simbólico. Atualmente, a maioria da doutrina compatibiliza a prevenção geral, consistente na retribuição, e a prevenção especial, subdividida como reeducação e ressocialização.176

Nesse passo, constata-se que a pena aplicada à conduta criminosa representa não somente uma reação estatal à violação da Ordem Jurídica, mas principalmente demonstra que o bem jurídico protegido pela norma penal é aquele considerado relevante e valioso.

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