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5 ESTUDO SOBRE A VIABILIDADE DA PROPOSTA DE DESCRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA TÍPICA DESCRITA NO ART 28 DA LEI N.º 11.343/2006.

5.1 Expansão penal desarrazoada e demanda pela descriminalização de condutas.

5.1.2 Descriminalização sob a perspectiva da criminologia crítica

Na década de 60, houve um fortalecimento de uma opinião contrária ao movimento dominante de criminalização e expansão do direito penal, conhecida como criminologia crítica. Os defensores do aludido movimento pleiteavam, de um lado, a retração do âmbito de incidência da norma penal incriminadora e, de outro, entendiam que os instrumentos penais até então constituídos deveriam ser extintos.

Ambas as correntes criminológicas pretendiam realizar uma análise crítica do sistema penal a fim de elaborarem uma política criminal alternativa, partindo de um enfoque materialista, que tivesse como finalidade contemplar os interesses das classes sociais subordinadas295.

Interessante destacar o raciocínio utilizado por Alessandro Baratta no sentido de demonstrar a repercussão das lutas de classe na manutenção dos critérios de seletividade comuns ao sistema penal:

Enquanto a classe dominante está interessada na contenção do desvio em limites que não prejudiquem a funcionalidade do sistema econômico-social e os próprios interesses e, por conseqüência, na manutenção da própria hegemonia no processo seletivo de definição e perseguição da criminalidade, as classes subalternas, ao contrário, estão interessadas em uma luta radical contra os “comportamentos socialmente negativos”, isto é, na superação das condições próprias do sistema sócio-econômico capitalista [...]296

A corrente crítica conhecida como abolicionismo reflete justamente a insatisfação dos estudiosos com os instrumentos jurídicos e com as estruturas estatais integrantes do sistema penal. Segundo ensinavam, o direito penal se limitava a reproduzir relações de dominações

294 FERRAJOLI. Op. cit., p. 312-313.

295 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica ao direito. 3ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.

197.

próprias da sociedade capitalista, acrescentando que a pena seria marcada por sua extrema inutilidade na solução da violência social e do aumento de delitos.

Não seria novidade dizer que as pessoas que ingressam no sistema prisional, geralmente, pertencem às classes menos abastadas. O que realmente interessa para a criminologia crítica é a conclusão que se chega a partir desse dado: o enorme índice de presença da classe dominada nas cifras de criminalidade não quer dizer que somente os pobres que comentem crimes, mas sim que são eles os que mais facilmente se enquadram nos filtros do sistema penal. Para a manutenção da titularidade do poder político e social faz-se o uso de critérios de seleção que logrem afastar a incidência da norma penal àqueles que possuem maior capacidade econômica.

Obviamente, as condutas praticadas pelos membros de diferentes classes refletirão as suas necessidades específicas. Exemplificadamente, quando o indivíduo entende que não possui bens econômicos suficientes para atender a seus desejos, poderá ele cometer crimes contra o patrimônio. A depender de sua posição social, serão utilizados meios diferentes: aquele que não tem emprego irá praticar furtos, enquanto o detentor de cargo público, desvio de verbas ou peculato.

Baratta propõe que a criminologia considere as diferenças entre a criminalidade praticada pelos membros das classes subordinados e pelos integrantes das classes dominantes, pois enquanto a primeira forma de criminalidade reflete as contradições do próprio sistema social, a segunda relaciona-se a fenômenos referentes à acumulação e circulação de capital. Interessante dizer que o aludido autor associa os crimes tipicamente praticados pelos indivíduos das classes dominantes à criminalidade econômica que não pode ser reprimida através de uma política de substitutivos penais297.

Pretende-se instituir então uma política criminal alternativa que abarcasse as seguintes estratégias: em primeiro lugar, deveria haver uma separação entre as duas espécies de criminalidades acima mencionadas, como forma de entender os processos sociais confrontando as regras do sistema capitalista; depois, o direito penal passaria por reformas de base para criar mecanismos de combate à criminalidade econômica acompanhada de um processo de descriminalização de condutas desviantes comuns às classes dominadas; a terceira estratégia seria a reformulação do sistema carcerário298 a partir da análise realista de

297 BARATTA. Op. Cit., pp. 200 – 201.

298 Nesse ponto, o autor sugere as seguintes medidas: ampliação das formas de suspensão condicional da pena e

de liberdade condicional, introdução de novas formas de execução da pena em regime de semiliberdade, reavaliação do trabalho carcerários e, o mais importante, a abertura do cárcere à sociedade. Essa última medida teria por objetivo a limitação das conseqüências sociais causadas pela execução da pena que deveria ser o

suas reais funções; por fim, idealizam a ampliação da participação popular no processo de reforma do sistema penal299.

Nesse momento, convém destacar a proposta estreitamente vinculada ao tema, qual seja a descriminalização. Os defensores do movimento crítico professavam que as pautas para normas incriminadoras eram excessivas, sendo que alguns crimes nem sequer seriam compatíveis com a realidade. Em síntese, acreditavam que a estratégia de descriminalização contribuiria para “aliviar, em todos os sentidos, a pressão negativa do sistema punitivo sobre as classes subalternas, e os efeitos negativos dessa pressão para o destino dos indivíduos e para a unidade da classe operária”300.

Em um primeiro momento, a discussão ficou confinada nos meios acadêmicos, apenas se expandindo por meio da Criminologia de Práxis. Assim, foi sugerido que a solução para os principais problemas estruturais seria resolvida através de uma política de redução do direito penal301.

A principal crítica formulada pela nova corrente criminológica era dirigida principalmente à violência institucional. Dizia-se que a reação estatal contra os delitos praticados se restringia à esfera das agências oficiais de punitividade, principalmente à Polícia, que se caracteriza por sua atuação seletiva e desigual302.

De tal forma, questiona-se a efetividade do sistema repressivo estatal posto que não atingia a todos de modo isonômico. Em linhas gerais, o sistema repressivo instituía oficialmente a violência estatal sendo marcado por processos de seleção, etiquetamento e estigmatização.

Nessa esteira, a descriminalização seria justificada pela insuficiência do sistema penal e de suas estruturas institucionais diante da contenção dos conflitos penais. De tal sorte, “a crise do direito penal, a que se fez menção, aguçada pela crise administrativa da justiça penal, apresenta sintomas, ou mesmo reflexos, nas mais variadas realidades que contornam e não, necessariamente, atravessam o sistema de justiça.”303

Segundo a proposta abolicionista, o próprio conceito de desvio deveria ser substituído para livrar-se de qualquer conotação estigmatizante, recuperando o significado positivo, compatível com uma sociedade igualitária. Nesse sentido, o pluralismo ganha destaque na

instrumento adequado a reinserção social do egresso. (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica

ao direito. 3ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 201.)

299 BARATTA. Op.cit., pp. 200 – 204. 300 BARATTA. Op.cit., pp. 202.

301 CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 95. 302 CARVALHO. Op. cit, p. 96.

discussão, pois a sociedade igualitária pressupõe a aceitação ao que é diferente, pois ela “consente a maior contribuição criativa e crítica de cada homem à edificação e à riqueza comum de uma sociedade de „livres produtores‟, na qual os homens não são disciplinados como portadores de papéis, mas respeitados como portadores de capacidades e de necessidades positivas”304.

A descriminalização, nesse contexto, seria uma conseqüência lógica da mudança de paradigmas na acepção do desvio de condutas, sendo posterior a uma revolução nas bases do sistema penal e da sociedade. Essa transformação afetaria essencialmente a forma de organização social e, por isso, tornaria obsoleto o direito penal liberal.

O exato ponto de estrangulamento do abolicionismo penal é a contestação do sistema capitalista. Para essa corrente, o direito penal burguês é um agente reprodutor das desigualdades sociais e, por isso, todas as contradições geradas pela atividade estatal são conseqüências esperadas. O ideal a ser alcançado seria a igualdade material entre os seres humanos e, caso isso ocorra eventualmente, o direito penal como conhecemos será inócuo. A superação do sistema penal burguês inclui a formulação de um novo conceito de desvio e a criação de novas formas de controle geridas diretamente pela sociedade que “se reapropria do próprio desvio e administra diretamente seu controle.”305 Dentro dessa perspectiva, pode-se

dizer que a descriminalização aqui é vista como decorrência da mudança na acepção de delito, não aparecendo como uma reforma contingencial.

Conforme observa Ferrajoli, as correntes abolicionistas são viciadas pelo caráter utópico e, em última análise, propõe uma espécie de regressão na escala evolutiva306, na medida em que se objetiva a instalação de uma sociedade regida por suas próprias regras, sem a intervenção do Estado. Além disso, o autor italiano acusa as teorias abolicionistas de não trazerem soluções para os problemas levantados e tampouco de adentrarem em questões específicas sobre justificação e deslegitimação do direito penal, “confundindo em uma rejeição única modelos penais autoritários e modelos penais liberais”307. Apesar disso,

reconhece as contribuições dadas pela aludida corrente no tocante ao desenvolvimento teórico da criminologia crítica em razão de trazerem o ônus da justificação do direito penal para seus opositores308.

304 BARATTA. Op. Cit., p. 208. 305 BARATTA. Op. cit., p. 207.

306 A visão evolucionista não é admitida de forma expressa por Ferrajoli, muito embora seja esse o sentido

empregado na sua argumentação, segundo interpretação da autora.

307 FERRAJOLI. Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2006, p. 234.

Feitas as reflexões relevantes, torna-se necessário pormenorizar os conceitos e características do processo de descriminalização numa perspectiva dogmática e criminológica.

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