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Capítulo 1 Assimetria, Subordinação e Autonomia nas Relações Internacionais

1.6 Assimetria nas Relações Internacionais: Sintetizando

Consolidando as questões apresentadas anteriormente, entende-se que o sistema internacional é marcado pela coexistência de relações anárquicas – que prevalecem nas relações entre grandes potências – e hierárquicas – presentes nas relações centro-periferia. A estratificação do sistema internacional é caracterizada por uma divisão internacional do trabalho, na qual os produtos com maior tecnologia agregada são desenvolvidos no centro e importados ou produzidos por subsidiárias de empresas dos países centrais nas periferias e semiperiferias. A produção endógena é limitada pelo monopólio tecnológico exercido pelo centro, pelas transferências de tecnologia, compra de maquinário e pagamento de royalts.

Por outro lado, não é apenas a divisão internacional de trabalho e a concentração de capacidade militar no centro que importa. Há também a internacionalização da cultura central, que passa a influenciar os países periféricos. Nesse processo, paradigmas acadêmicos e doutrinas militares são exportadas para a periferia. O controle internacional é estabelecido com um misto de consenso e imposição, importam ideias e poder material. A hegemonia é caracterizada por uma dimensão material, econômica e militar, e outra ideacional, referente a expansão de uma visão de mundo, a formulação de interesses particulares como sendo universais (COX, 1981). Por outro lado, as hegemonias tendem a gerar resistência, especialmente na periferia do sistema internacional (WALLERSTEIN, 1984), onde o seu componente ideacional tende a ser relativamente mais fraco.

A hierarquia no sistema internacional é marcada pelo exercício de políticas imperiais por parte das grandes potências, que buscam dominação e controle das políticas internas e externas dos países periféricos. No sistema internacional contemporâneo, os EUA tendem a internacionalizar sua legislação, influenciando as leis e os sistemas jurídicos de outros Estados, assim como fomentando a adesão a paradigmas econômicos. No campo militar, ao menos na América Latina, os EUA buscaram generalizar concepções de ameaça e influenciar as Forças Armadas de forma que elas não questionem a correlação de força em termos hemisféricos e mundiais.

As dinâmicas de relacionamento centro-periferia também se apresentam no campo da produção de materiais de defesa. Os armamentos de maior tecnologia agregada são produzidos no centro e exportados para a periferia. Por vezes, há transferência de tecnologias no sentido centro-periferia, que pode ser utilizado pelos países periféricos para aumentar sua posição de poder relativa no sistema internacional. No entanto, tais processos referem-se essencialmente a tecnologias relativamente ultrapassadas, são regulamentados de forma rígida, garantindo o

controle central e são acompanhados de exportação de doutrina e organização militar. A definição das “ameaças” não está desconectada das relações centro-periferia, sendo que os países centrais buscam controlar fluxos de pessoas, produtos e ideologias, externalizando paradigmas de controle sobre as populações. Assim, nas relações com o centro, o aparelho repressivo do Estado periférico é afetado e condicionado.

De tal modo, são formadas relações de clientelismo no sistema internacional, entendidas como relações de cooperação entre atores com recursos desiguais, por meio das quais grupos políticos internos em ambos os países se beneficiam. O clientelismo expressa-se em alianças regionais, acordos de cooperação militar, assistência e treinamento, ajuda ao desenvolvimento, bases militares e presença de tropas. O cliente cede apoio em temas centrais e o patrão espera aquiescência em temas diplomáticos e de política interna (CARNEY, 1989; SYLVAN; MAJESKI, 2009).

Entretanto, há que se ressaltar a inexistências de interesses coincidentes entre países centrais e semiperiféricos em todos os aspectos, pois há ambições e interesses de grupos internos que são limitados pelo clientelismo. A partir de Wallerstein (1984) entendemos que é esperada certa ambiguidade nas relações entre centro e semiperiferia. Os países que se encontram em tal posição podem servir como mediadores do domínio central, porém também podem questionar sua posição na ordem internacional, demandando maior participação e reforma das regras e instituições internacionais.

As Forças Armadas brasileiras, por exemplo, apesar do treinamento e das transferências de armamento a partir do centro, mantém interesse em aumentar o poder nacional e o prestígio internacional, de formas nem sempre condizentes com os interesses da potência hegemônica. As frações de classe da burguesia local necessitam de transferências de tecnologias e maquinário, ao mesmo tempo que buscam proteção estatal e apoios às exportações, contribuindo para a diversificação de parcerias e adoção de paradigmas econômicos divergentes dos centrais.

Portanto, as relações entre centro e semiperiferia tendem a ser marcadas por ambiguidades, sendo que a situação de subordinação é aceita apenas parcialmente por frações das burguesias semiperiféricas. Estas não são unas ou homogêneas e existem grupos políticos e econômicos nos países periféricos que possuem demandas contraditórias aos interesses centrais, gerando contestação à hegemonia. Nesses casos, as potências dominantes agem de forma a manter no poder as forças locais favoráveis ao domínio, buscando interferir nas dinâmicas internas por meio de assistência internacional, financiamento de campanhas

eleitorais, apoio e reconhecimento a golpes de estado, além de coerção e sanções abertas e encobertas.

Entretanto, há momentos históricos nos quais as coalizões políticas favorecidas pela potência dominante não conseguem chegar ao comando do poder político nos países clientes periféricos e semiperiféricos. Por vezes, o poder político em tais países é liderado por alianças policlassistas – formadas por frações da burguesia e do proletariado – que privilegiam a busca de autonomia em relação ao centro, questionando o clientelismo e a posição de subordinação. O início do século XXI correspondeu a um desses momentos históricos nos quais as coalizões politicamente predominantes na América do Sul questionavam a liderança estadunidense, em um momento político que ficou conhecido como um “giro à esquerda” ou “onda rosa”.

As contradições latentes entre os interesses dos governos de centro-esquerda e os interesses centrais geraram estratégias de política exterior cujo objetivo principal era aumentar a autonomia. Tais políticas contém orientações econômicas que buscam fortalecer as economias periféricas, diminuindo a dependência. Nesse sentido, as tensões com o centro não são totais, pois não há rompimento com as estruturas de dominação internas – no plano econômico ou político – são questionamentos parciais, como apontado por Ianni (1974). Ademais, a política externa de vertente autonomista não será necessariamente confrontativa e pode condizer com a manutenção de relações cordiais com as potências centrais. Nesse sentido, um dos problemas da interpretação de Escudé (1995) é entender que há apenas duas opções para os países periféricos: obediência ou rebeldia, quando há um gradiente mais amplo de políticas possíveis.

Assim, entede-se aqui a busca de autonomia como uma estratégia de Política Exterior que, como apontado por Puig (1984), pode ocorrer de duas formas: a autonomia heterodoxa e a secessionista. No primeiro caso, há aceitação da liderança da potência em termos estratégicos, com resistências à adoção do modelo econômico hegemônico e busca de diversificação de parcerias. No caso da segunda, há desafio global à potência dominante, inclusive aos seus interesses centrais. Outra possibilidade é a dependência nacional, quando há uma racionalização da posição de subordinação, com o objetivo de tirar o maior proveito. Entendemos que tanto a autonomia heterodoxa quanto a dependência nacional são existentes em relações de clientelismo, embora, no primeiro caso haja maior questionamento e menor profundidade da cooperação. Assim, há diversas intensidades possíveis de clientelismo: há aquelas relações assimétricas marcadas por cooperação mais ampla e outras nas quais a cooperação é limitada a temas vitais às grandes potências.

Nos casos de Brasil e Argentina, historicamente, os países oscilaram entre posições de autonomia heterodoxa, secessionista e de dependência nacional. No Brasil, as posições de

política exterior foram relativamente mais constantes, com períodos longos de “dependência nacional” no início do século XX e de “autonomia heterodoxa” na segunda metade do século. No caso argentino, as mudanças foram mais bruscas e o país promoveu uma postura de autonomia secessionista em suas relações com os EUA durante a segunda guerra mundial. Como apontado por Escudé (1986, 1995), tal situação não favoreceu o desenvolvimento nacional, uma vez que importantes sanções foram aplicadas ao país platino, contribuindo para sua instabilidade política e crises econômicas. No próximo capítulo, analisaremos a bibliografia sobre as relações interamericanas e traçaremos um breve histórico de seus desenvolvimentos.

Capítulo 2: Relações Interamericanas em perspectiva histórica: Brasil, Argentina e