• Nenhum resultado encontrado

A estratégia dos EUA frente à presença de poderes externos na região durante o governo Obama

Gráfico 7: Importação de sistemas de armas pelos países da América do Sul

3.3 Os EUA, a distribuição de poder global e a América do Sul durante o governo de Barack Obama

3.3.2 A estratégia dos EUA frente à presença de poderes externos na região durante o governo Obama

Na década de 2010, a influência da China na região já era uma dinâmica consolidada – com forte impacto nas economias sul-americanas. Embora a partir de 2013 o comércio entre a potência asiática e a América Latina tenha diminuído em razão da menor demanda chinesa por commodities e da consequente diminuição em seu preço, a potência asiática já havia conquistado importante espaço (CEPAL, 2018). Cabe destacar o primeiro Fórum Celac-China, realizado em 17 de julho de 2014, que criava uma dimensão multilateral à presença regional do país. Ao mesmo tempo, a Rússia continuava a vender armas, especialmente à Venezuela, e a ampliar a cooperação energética com a região (Gráfico 9).

Os dados do SIPRI mostram que, durante os governos Obama, a venda de armas russas para a região cresceu de forma considerável. A Rússia superou a Europa como maior fornecedora de sistemas de armas entre 2012 e 2013 (Gráfico 9). As vendas russas continuavam a ser mais expressivas em relação à Venezuela, porém Colômbia, Brasil e Argentina também compraram sistemas de armas russos. A maior parte das armas compradas pelo Brasil eram europeias e, nos casos de Colômbia e Argentina, estadunidenses (Gráfico 10).

No que se refere à postura dos EUA frente a esse cenário, o governo buscou não atribuir alto perfil ao tema, afastando-se de uma posição abertamente intervencionista. Durante discurso na OEA em 2013, o então Secretário de Estado, John Kerry (2013-2017), declarou que a Doutrina Monroe havia terminado. Essa narrativa atribuía uma face benigna à estratégia dos EUA frente às conexões entre líderes latino-americanos e potências de outras latitudes. De acordo com o Secretário de Estado:

0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 1000 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

Gráfico 9: Importação de sistemas de armas pela América do Sul (2009-2016)

EUA Russia China OTAN (Menos EUA) Outros

Gráfico 9 - Produzido pela autora com base na base de dados de transferência de armas do SIPRI. Foram incluídos todos os países da América do Sul, com a exceção do Suriname e Guiana, para os quais não havia dados disponíveis. O SIPRI contabiliza apenas a transferência de sistemas de armas (major conventional weapons), não incluindo, portanto, armas leves.

A doutrina […] [Monroe] afirmou nossa autoridade para intervir e nos opormos à influência das potências europeias na América Latina. E, ao longo da história da nossa nação, sucessivos presidentes fizeram uma escolha semelhante e reforçaram-na. Hoje, no entanto, fazemos uma escolha diferente. A era da Doutrina Monroe acabou. [...] A relação que procuramos e que temos trabalhado arduamente para fomentar não é sobre uma declaração dos Estados Unidos sobre como e quando intervir nos assuntos de outros estados americanos. É sobre todos os nossos países se verem como iguais, compartilhando responsabilidades e cooperando em questões de segurança (KERRY, 2013, tradução nossa).

Como explorado no segundo capítulo, a Doutrina declarada em 1823 era uma forma de a potência Ocidental apoiar as independências no Hemisfério ao mesmo tempo em que construía sua hegemonia regional, limitando os vínculos entre os países latino-americanos e europeus. Assim, a narrativa apresentada por Kerry sugere que os EUA estariam preparados para lidar com um Hemisfério crescentemente pós-hegemônico, renunciando à busca de hegemonia de momentos anteriores.

Por outro lado, cabe ressaltar que os diálogos EUA-China sobre América Latina permaneceram nos primeiros anos do governo Obama, porém foram descontinuados ao logo do período (informação oral51). Além disso, os discursos anuais do Comandante do

SOUTHCOM52 ao Senado evidenciam uma outra face e são um indício do aumento da

preocupação dos EUA com a presença de atores extra hemisféricos na América Latina. Desde 2010, em todos os anos, a China foi destacada como como um fator que impactava no cenário estratégico regional e como um desafio à influência e à posição dos EUA como “parceiro de escolha” em Defesa. Usualmente Irã e Rússia também apareciam como desafios (Tabela 2).

Na visão do SOUTHCOM, a presença de atores extra regionais era um indício de que os EUA deveriam ampliar o engajamento com a região, sob o risco de perder seu status de hegemonia regional (U.S. SOUTHERN COMMAND, 2013, 2014). Os comandantes do SOUTHCOM chegaram a alertar sobre a insuficiência dos recursos repassados ao Comando e seu impacto na capacidade de projeção de poder dos EUA. Como destacado em 2014:

O aumento da influência regional dos chamados “atores externos”, como China e Rússia, tem despertado muita atenção. Em última análise, devemos lembrar que o engajamento não é um jogo de soma zero. Os relacionamentos em expansão da Rússia e da China não são necessariamente às nossas custas. No entanto, se quisermos manter nossas parcerias neste hemisfério e manter uma influência mínima, devemos permanecer engajados. Os cortes orçamentários estão tendo um efeito direto e

51 Informação obtida em entrevista com Thommas Shannon realizada na cidade de Washington D.C. em 22 de

fevereiro de 2019.

52 A noção da presença de atores extra regionais como um desafio aos EUA não estava presente apenas nas

declarações dos Comandantes do SOUTHCOM. Em 2009, Hillary Clinton, então Secretária de Estado, declarou que “particularmente na América Latina, se você olhar para os ganhos que o Irã e a China estão fazendo, é bem perturbador. Quero dizer, eles estão construindo conexões econômicas e políticas muito fortes com muitos desses líderes. Eu não acho que é do nosso interesse”. A Secretária destacou ainda a necessidade de construir melhores relações com os países do Hemisfério como forma de conter a presença chinesa e russa (CLINTON, 2009).

prejudicial em nossas atividades de cooperação em segurança, a principal maneira de nos engajarmos e promovermos a cooperação em defesa na região. O efeito cumulativo de nosso comprometimento reduzido é um declínio relativo, mas acelerado, de confiança em nossa confiabilidade e compromisso (U.S. SOUTHERN COMMAND, 2014).

Eram apontados como pontos de preocupação: 1) o aumento da cooperação em temas militares e 2) a proximidade entre tais países e governos sul-americanos críticos aos EUA, especialmente Venezuela, Bolívia e Equador. A presença de China e Rússia era vista como um sustentáculo a tais governos e, portanto, em detrimento da influência dos EUA na região. Especificamente, em relação a China, havia preocupação com transferência de tecnologias, venda de armas e engajamento militar, destacando-se a primeira viagem à América Latina do navio-hospital chinês, a Arca da Paz, em 2011. A parceria espacial sino-brasileira através do programa de cooperação para o lançamento de satélites binacionais para observação da terra também era citada. Os temas de preocupação em relação à presença russa eram semelhantes, destacando-se a venda de armas e o tour de navios pelo Caribe, com paradas na Venezuela, Nicarágua e Cuba (U.S. SOUTHERN COMMAND, 2011, 2014). A presença iraniana era vista, por um lado, como uma estratégia do país persa para amenizar os efeitos de sanções impostas pelos EUA e, por outro, como relacionada ao extremismo religioso e ao financiamento do Hezbollah. Em dezembro de 2012, o Congresso aprovou um ato legislativo com o objetivo de conter a presença iraniana no Hemisfério Ocidental, determinando que

O governo dos EUA deverá utilizar uma estratégia abrangente, envolvendo todo o governo para combater a crescente presença e atividade hostil do Irã no Hemisfério Ocidental, trabalhando em conjunto com aliados e parceiros na região para dissuadir ameaças aos interesses dos Estados Unidos provenientes do Governo do Irã, do Corpo dos Guardas da Revolução Islâmica Iraniana (IRGC), da Força Qods do IRGC e do Hezbollah (CONGRESS, 2012).

Determinava ainda que o Departamento de Estado deveria submeter ao Congresso um relatório sobre as ameaças que o Irã apresentava às Américas e propor uma estratégia em relação a esse tema. Percebe-se, nesse sentido, que a questão se tornou relevante para o Congresso, inclusive em maior grau que para o Executivo (CONGRESS, 2012). A questão se tornou mais midiática, relacionando-se também com os interesses do lobby israelense na Câmara e no Senado.

De um ponto de vista de longo prazo e pensando-se na possibilidade de oferecerem modelos e parcerias alternativas à região, a Rússia e a China destacam-se como desafios maiores aos EUA. O sucesso do modelo de desenvolvimento chinês e os empréstimos fornecidos pela China à países da região proporcionavam subsídios para a adoção de políticas econômicas que se afastam do neoliberalismo (KAPLAN, 2016). A Rússia apresentava-se

como uma alternativa nas áreas de energia e defesa, proporcionando uma alternativa à compra de armas com condicionalidades impostas pelos EUA.

As audiências dos Comandantes do SOUTHCOM sugerem que a forma como a presença estrangeira na América Latina é vista pelos EUA depende essencialmente de quais são os atores extra regionais e quais são as características de seu relacionamento com os EUA no plano mais geral. Como destacado em 2011:

Temos uma longa história de cooperação regional em segurança com as forças armadas de países como o Reino Unido, Holanda, França e Espanha, e também trabalhamos com o Canadá em muitas questões relacionadas à segurança hemisférica. Além disso, saudamos atividades de outros países quando conduzem à segurança e à estabilidade. Contudo, [...] os objetivos para tais atividades são difíceis de discernir. Por exemplo, a China se envolveu com militares latino-americanos através de intercâmbios de pessoal e vendas de armas de alto nível [...] A Rússia também encontrou mercados para vendas de armas na América Latina e no Caribe [...] [há] casos positivos de vendas de armas e equipamentos russos para melhorar a capacidade da região de combater o crime organizado transnacional. Em outros casos, porém, essas vendas têm o potencial de prejudicar a estabilidade regional [...] (U.S. SOUTHERN COMMAND, 2011, tradução livre).

Muitas vezes me perguntam se vejo o engajamento desses “atores externos” como uma ameaça direta aos Estados Unidos. De modo geral, vejo potencial para uma parceria maior com a China em áreas como assistência humanitária e resposta a desastres. No entanto, gostaria que os chineses enfatizassem o respeito aos direitos humanos - como fazemos – em seus esforços gerais de engajamento na região. O governo dos EUA continua incentivando a China a enfrentar os desafios compartilhados em segurança de forma positiva, tomando medidas concretas para combater o enorme tráfico ilícito de produtos farmacêuticos falsificados e precursores químicos usados para a produção de metanfetaminas e heroína na América Central e no México. Embora a cooperação antidrogas russa possa contribuir potencialmente para a segurança regional, o aumento súbito de seu alcance militar merece uma atenção maior, já que os motivos da Rússia não são claros. Dada a sua história, a região é sensível a qualquer elemento de militarização, e por isso é importante que a Rússia e a China promovam sua cooperação em defesa de maneira responsável e transparente, ajudando a manter a estabilidade hemisférica e os ganhos democráticos conquistados após tanto esforço (U.S. SOUTHERN COMMAND, 2014, tradução livre).

Há elementos para afirmar que a reação a atuação de atores hemisféricos na região decorre das diferenças nas relações biliterais de tais países com a potência americana. Durante os governos Bush e Obama, a relação China-EUA era institucionalizada por meio de mecanismos diplomáticos formais, em um complexo contexto marcado por interdependência, cooperação e rivalidade. As relações EUA-China eram estruturantes do sistema internacional e preservá-las era um objetivo de ambos os países. A China promovia uma atuação substantiva, porém de baixo perfil, evitando antagonizar os EUA. A região era importante para a estratégia regional chinesa, mas não era vital, sendo subordinada ao objetivo de manter boas relações com a potência ocidental (LI, 2007).

A Rússia considerava sua estratégia de aproximação da América Latina como parte da promoção de um mundo multipolar, o que encontrava ressonância no discurso diplomático de diversos países da região (CICCARILLO, 2016). Não apenas Venezuela, Equador e Bolívia destacavam a favorabilidade de um mundo multipolar, mas também Brasil e Argentina. Nesse sentido, havia uma visão e interesses comuns entre ambas as partes, que não se adequava a persistência de um mundo marcado pela primazia estadunidense. A dimensão geopolítica é muito mais aparente nas relações Rússia-AL, sendo vista pelo Kremlin como uma forma de balancear a presença dos EUA em sua vizinhança (CICCARILLO, 2016). Tratava-se, no entanto, de interesses em ambas as direções, uma vez que os países da região procuravam a Rússia. Os representantes russos viam a sua presença na América Latina como parte de uma visão de um mundo em transformação, crescentemente marcado por descentralização de poder e, portanto, superando a liderança dos EUA.