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A conjuntura nacional: os governos Lula e a ascensão de uma coalizão política

Gráfico 7: Importação de sistemas de armas pelos países da América do Sul

Capítulo 4: As relações Brasil-EUA durante os governos do PT (2003-2016): autonomia heterodoxa e resignação

4.1 A conjuntura nacional: os governos Lula e a ascensão de uma coalizão política

Em 27 de outubro de 2002, o metalúrgico e líder sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil. Lula já havia se candidatado à presidência em três vezes anteriores e prometia promover reformas progressistas, de forma a favorecer a classe trabalhadora e os mais pobres. A campanha de 2002, no entanto, foi marcada por mudança e amenização das promessas do Partido dos Trabalhadores (PT). Lula anunciava uma gestão “paz e amor”, implicando a intenção de não confrontar o capital em seu desígnio de promover mudanças sociais. Foi a primeira vitória de um partido de centro-esquerda após o processo de redemocratização e representou o início de um ciclo que duraria até 2016, quando sua sucessora, Dilma Rousseff, sofreu um processo de impeachment/golpe53 e foi afastada do cargo.

O período dos governos do PT foi bastante heterogêneo, havendo mudanças significativas que correspondem a transformações da conjuntura nacional e global. Contudo, importante continuidade, que permeia os doze anos de governo do PT, foi a intenção de promover uma política conciliatória. Singer (2012) identifica que o projeto político,

53A interpretação sobre os eventos de 2016 segue contestada. Por um lado, o afastamento de Dilma Rousseff, do

ponto de vista formal, seguiu todos os ritos necessários a um processo de impeachment. Por outro lado, não houve crime de responsabilidade, que seria a única justificativa legal para um processo de impeachment. Rousseff perdeu apoio pelas políticas públicas que adotou, pelas dificuldades econômicas e de manter uma base aliada suficientemente forte no Congresso.

especialmente como levado a cabo a partir de 2006, tinha como objetivo promover mudanças sociais sem contestar a ordem. Buscava integrar e melhorar as condições de vida do subproletariado54, a numerosa população trabalhadora “superempobrecida”, cujas raízes

remontam ao histórico de escravidão, ao mesmo tempo em que os benefícios ao capital eram mantidos. Nas palavras do autor:

Lula aproveitou a onda de expansão mundial e optou por caminho intermediário ao neoliberalismo da década anterior - que tinha agravado para próximo do insuportável a contradição fundamental brasileira- e ao reformismo forte que fora o programa do PT até as vésperas da campanha de 2002. O subproletariado [...] deu-lhe suporte para avançar, acelerando o crescimento com redução da desigualdade no segundo mandato, e, assim, garantindo a vitória de Dilma em 2010 e a continuidade do projeto [...] (SINGER, 2012, p. 21).

A estratégia de conciliação teve início nas eleições de 2002, marcadas por um cenário instável do ponto de vista econômico. O mercado financeiro via a ascensão de Lula como um risco, pois poderia levar à adoção de políticas econômicas heterodoxas e divergentes do modelo econômico neoliberal dominante em escala mundial. Durante o período eleitoral, houve fuga de capitais, depreciação do real e aumento exponencial da inflação. Esse cenário foi um dos impulsores da guinada ao centro. Lula respondeu ao mercado financeiro com a “Carta ao Povo brasileiro”, um texto divulgado em junho de 2002, no qual o então candidato prometia manter a política macroeconômica adotada durante o governo de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, comprometendo-se com políticas econômicas ortodoxas (SILVA, 2002). A estratégia eleitoral rendeu frutos e Lula foi eleito em outubro de 2002. Apesar da euforia gerada pela vitória de um líder popular, o governo foi desmobilizador, buscando promover mudanças lentas e desde cima, sem recorrer a mobilizações de rua e de movimentos populares (SINGER, 2012). Do ponto de vista da correlação de forças no Congresso, o PT não se tornou uma força hegemônica e nunca obteve, sozinho, a maioria das cadeiras na Câmara dos Deputados ou no Senado. Assim, precisou formar coalizões com partidos de centro e centro-direita para garantir governabilidade e conseguir aprovar legislação, o que era um constrangimento à passagem de reformas sociais progressistas e um incentivo às políticas de conciliação. Destaca-se, por exemplo, que as vice-presidências foram ocupadas pelo Partido Liberal (PL) e pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB), nos governos Lula, e pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), nos governos Rousseff.

54 Citando Paul Singer, André Singer (2012) defende que a configuração de classes brasileiras é específica em

razão da importância de fração de classe denominada de “subproletariado”. Trata-se de relevante segmento do proletariado que é superempobrecido permanentemente.

No entanto, Lula também precisava responder à sua base eleitoral. A estratégia de conciliação não significou imobilidade e, especialmente após os primeiros anos de governo, havia margem de manobra e houve acenos à esquerda e aos mais pobres. Os governos Lula podem ser divididos em duas fases: na primeira, foi adotada uma política econômica mais austera e, na segunda, teve início uma política social mais intensa e houve intensificação do papel do Estado na economia. Em ambas, havia o intuito de promover reformas de forma lenta e sem radicalismo.

Durante a primeira fase, de 2003 a 2005, houve manutenção das premissas de política econômica herdadas de seu antecessor, com manutenção do tripé macroeconômico, composto pelo regime de metas de inflação, superávit primário e taxa de câmbio flutuante. Foi um período marcado por baixo investimento público, juros altos e ferrenha austeridade, com superávits primários acima da meta (CARVALHO, 2018; SINGER, 2012). Nessa primeira fase, destacam- se como figuras de relevo José Dirceu, ministro da Casa Civil, e Antônio Palocci, ministro da Fazenda, responsáveis por levar o partido para o centro, promover o pragmatismo e a política econômica ortodoxa.

Nesses primeiros anos, havia a intenção de diminuir o risco país e ganhar a confiança do capital nacional e internacional. Houve manutenção da estabilidade econômica, porém o crescimento econômico foi hesitante (BRESSER-PEREIRA, 2016; CARVALHO, 2018). Mesmo nessa primeira fase, houve implementação de iniciativas identificadas com a esquerda. Pode-se citar a criação de um programa de transferência de renda para os mais pobres, o Bolsa Família, e a adoção de uma política exterior de vertente soberanista, marcada pelo discurso de priorização da América Latina e do mundo em desenvolvimento.

Contudo, a manutenção de uma política econômica ortodoxa e de uma estratégia conciliatória não foram capazes de evitar o surgimento de forças opostas e críticas ao PT. A primeira onda de rejeição ao partido de centro-esquerda surgiu com os escândalos de corrupção que emergiram em 2005 e ficaram conhecidos pela alcunha de mensalão. Naquele momento, líderes do partido eram acusados de pagarem mensalmente a deputados para que votassem de acordo com as intenções da presidência.

Os escândalos de corrupção levaram à renúncia de ministros de alto perfil, incluindo José Dirceu, em junho de 2005, e Antônio Palocci, em março de 2006. Em substituição, Dilma Rousseff assumiu a Casa Civil e Guido Mantega o Ministério da Fazenda. Tais escolhas, especialmente Mantega, contribuíam para levar o governo mais à esquerda, embora o pragmatismo fosse mantido e não tenham sido promovidas mudanças bruscas.

No final de 2005, tendo em vista os escândalos e a proximidade de novas eleições, o governo precisava reconectar-se com sua base, o que foi feito pela intensificação da agenda social e pelo início de mudanças na política econômica. Em novembro daquele ano, foi anunciada a decisão do governo brasileiro de pagar a totalidade do saldo devedor ao FMI, o que foi feito envolto em um discurso nacionalista, ressaltando-se a volta do controle nacional sobre a política econômica.

No ano eleitoral de 2006, iniciou-se a segunda fase, marcada pelo início uma política sustentada de aumento do salário mínimo, adicionada à ampliação do acesso ao crédito e aos programas de transferência de renda. A partir daquele ano, também houve aumento dos investimentos públicos e redução da taxa de juros. Do ponto de vista econômico, as políticas de transferência de renda e o aumento dos salários significavam a criação de mercado consumidor interno, o que impulsionava o crescimento do PIB (BRESSER-PEREIRA, 2016; CARVALHO, 2018; SINGER, 2012). Durante os cinco anos da segunda fase (2005-2010), o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média de 5,9 por cento ao ano.

Carvalho (2018) também identifica como um fator impulsionador do crescimento econômico o aumento dos investimentos públicos entre 2006 e 2010 – destinados especialmente à infraestrutura física e social, englobando áreas como energia, saneamento, habitação, rodovias e aeroportos – muitos dos quais no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), criado em 2007. Tais investimentos públicos foram mantidos e ampliados no momento imediatamente posterior à crise financeira global de 2008, o que permitiu a recuperação da economia brasileira mais rapidamente que das potências mundiais. Outro elemento que explica o crescimento econômico brasileiro foi o aumento da demanda chinesa por matéria-prima. Em tais anos, houve um crescimento significativo no preço internacional de produtos minerais e agrícolas exportados pelo Brasil, o que ficou conhecido como o boom das commodities (CARVALHO, 2018; SINGER, 2012). Uma vez que beneficiou o crescimento do país, o contexto externo foi favorável à adoção de uma política de mudança social com conciliação, na qual os mais pobres e mais ricos conseguiam beneficiar-se ao mesmo tempo.

De acordo com Boito (2012), durante os governos Lula, foi formada uma frente política “que foi a base ampla e heterogênea de sustentação da política de crescimento econômico e de transferência de renda” (BOITO, 2012, p. 3). Essa articulação congregava frações de classes diversas. Faziam parte da mesma: setores da burguesia interna – especialmente a agrária e a industrial – trabalhadores urbanos e parte da massa marginalizada, atraída pelos programas de transferência de renda. Tratando-se de uma frente policlassista, era também uma frente instável (BOITO JR, 2012). Cabe ressaltar que, quando prevaleceu um cenário econômico favorável, a

instabilidade da frente política foi neutralizada e as políticas de conciliação tiveram relativo sucesso – garantindo a Lula sua reeleição e a sucessão presidencial em 2010. Assim, o governo Lula correspondeu à ascensão de uma coalizão politicamente predominante em âmbito nacional, que agregava frações da burguesia e das classes populares.

O capital financeiro nacional e internacional não fazia parte da coalizão politicamente predominante, porém não era confrontado e tinha grande parte de suas demandas atendidas. Nas palavras de Bresser-Pereira (2016, p.353), Lula entendia que “não é possível governar o capitalismo sem os capitalistas”. Isso materializava-se no Banco Central, ocupado nos oito anos de governo Lula por economistas ortodoxos, vinculados ao mercado financeiro internacional.

Desde a campanha eleitoral de 2002, a formação de relações com o mercado financeiro e com a potência hegemônica foram construídas, sendo que Dirceu viajou aos EUA com o intuito de levar a mensagem de comprometimento do PT com a ortodoxia econômica. Depois das eleições, em novembro de 2002, os líderes do Partido dos Trabalhadores, incluindo o próprio Lula, encontraram-se com o então Secretário Assistente para América Latina, Otto Reich (EMBASSY BRAZIL, 2002). Havia disposição de descontruir ideias pré-concebidas e percepção mútua sobre a necessidade de se construírem relações de cooperação. Lula afirmava que a aproximação faria com que os governantes dos EUA deixassem de perceber o PT de forma errônea e prometia que o Brasil estava disposto a cooperar e adensar a agenda bilateral, porém defendendo os interesses nacionais. Reich, por sua vez, afirmou que o governo dos EUA não tinha receio da agenda social do PT e que estariam dispostos a apoiar o compromisso de acabar com a fome no país (EMBASSY BRAZIL, 2002).

Relatório da Embaixada dos EUA concluía que “Lula e os líderes do PT estão claramente ansiosos para trabalhar conosco e essa visita avançou em tranquilizá-los de que o sentimento é mútuo” (EMBASSY BRAZIL, 2002, tradução livre). No mês seguinte, Lula embarcou para Washington D.C., com o objetivo de encontrar-se com o presidente George W. Bush – ocasião na qual os dois líderes construíram fluidas relações de trabalho (SPEKTOR, 2014). A política de conciliação, portanto, tinha também uma face externa, representada na continuidade da cooperação com a potência hegemônica.

A amenização da plataforma eleitoral e o pragmatismo do PT lograram que os EUA não se opusessem ao governo Lula. A embaixada dos EUA apoiava a política econômica ortodoxa, considerada saudável, e parte da agenda social. Por outro lado, via o aprofundamento das reformas neoliberais como o caminho para o crescimento da economia brasileira. Os diplomatas dos EUA sediados no Brasil acreditavam ser necessário promover as reformas tributária e fiscal, garantir legalmente independência do Banco Central, dar continuidade e aprofundar a disciplina

fiscal e promover liberalização comercial, com destaque para acordos com os EUA (EMBASSY BRAZIL, 2005a, 2006a). Nesse ponto, não havia convergência com o governo Lula, que não pretendia aprovar tais medidas, que desagradariam sua base eleitoral e o desgastariam.

O governo Lula buscou articular-se e conciliar-se também com as Forças Armadas. Desde o período eleitoral, havia pontos de convergência entre a retórica de Lula e dos militares, destacando-se, por exemplo, as promessas de maiores investimentos, de aumentos dos salários, de retomada do projeto nuclear e de reaparelhamento das Forças Armadas. As ideias relacionadas à modernização do equipamento das Forças Armadas foram discutidas desde o início do governo, porém apenas foram colocadas em prática no segundo mandato. Tais demandas eram apresentadas não apenas pelos militares, mas também pelas empresas que compõem a indústria de defesa. Dagnino (2010, p. 9) argumenta que, ao decorrer dos dois governos Lula, formou-se uma articulação de pressão política, que buscava a revitalização da indústria de defesa55 nacional. Era formada pelos “[...] militares, os empresários, os jornalistas

e a comunidade de pesquisa” (DAGNINO, 2010, p.9). As demandas de tal grupo, no entanto, seriam colocadas em compasso de espera durante o primeiro mandato de Lula, marcado pela rígida austeridade fiscal.

As relações com os militares não foram fluídas em todos os aspectos e houve pontos de tensão. O primeiro ministro da Defesa de Lula, o diplomata José Viegas Filho, caiu em razão de desentendimentos com oficiais do Exército. Havia tensões com os militares referentes às pensões, salários, indicação para missões de paz e compra de equipamentos. O estopim foi um episódio marcado pela divulgação de um controverso comunicado redigido pela Secretaria de Comunicação do Exército, sem a aprovação de Viegas (LIMA, 2015). Na nota, os militares defendiam-se de acusações de violações dos direitos humanos referentes ao período do regime burocrático-autoritário, relacionadas ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ocorrido em 1975. O Exército afirmava que o regime havia sido necessário e benéfico ao país.

A publicação da nota demonstrava a insubordinação dos militares, porém não houve nenhuma iniciativa de punição proveniente da Presidência. Tal cenário mostrou a falta de respaldo da presidência ao ministro, o que tornou sua situação insustentável (LIMA, 2015). Telegrama da Embaixada dos EUA aponta que os representantes da potência no Brasil haviam

55 O autor define indústria de defesa como “empresas privadas e públicas que produzem material de emprego

militar [...] em especial o empregado pelas FAs” (DAGNINO, 2010, p. 15). Trata-se de um termo mais amplo que indústria militar e de armamentos uma vez que inclui toda uma cadeia e itens utilizado por militares – por exemplo, as vestimentas.

estabelecido boas relações de trabalho com Viegas, porém não consideravam sua queda como problemática do ponto de vista das relações bilaterais ou da condução civil da Defesa. Apesar disso, na visão da embaixada, o ministério continuava “pequeno e anêmico” comparado ao tamanho das forças que o mesmo tinha que liderar (EMBASSY BRAZIL, 2004a).

Após Viegas, o Ministério foi ocupado pelo vice-presidente, José Alencar (out 2005 – mar 2006), e posteriormente por Waldir Pires (mar 2006 – jul 2007), político vinculado ao PT. Ambos fizeram gestões de baixo perfil, sem grandes inovações e marcadas pela continuidade das demandas por maiores investimentos (LIMA, 2015). A saída de Pires do Ministério da Defesa também foi conturbada, sendo antecedida de um acidente aéreo que levou a uma crise da aviação civil, uma vez que os controladores de voo, responsabilizados pelo episódio, rebelaram-se. Tais funcionários eram militares e, portanto, subordinados à Defesa e sem direito à greve. O comandante da Aeronáutica e Lula foram favoráveis a considerar as manifestações como motim, enquanto Pires colocava-se ao lado dos grevistas, o que prejudicou sua autoridade, levando a sua queda após um segundo acidente aéreo.

Maiores inovações ocorreram com a nomeação de Nelson Jobim, em julho de 2007. Em sua gestão, o Ministério da Defesa foi fortalecido, a partir da promulgação de legislação específica e do forte respaldo político recebido pelo ministro (LIMA, 2015)56. Além disso, foi

divulgada a Estratégia Nacional de Defesa (2008), que prometia uma postura de maior protagonismo internacional brasileiro, com a revitalização da indústria de defesa e a retomada de projetos em três áreas consideradas estratégicas: nuclear, espacial e cibernética. Portanto, o aumento dos investimentos em Defesa, a retomada de projetos estratégicos das Forças Armadas e o aumento do salário dos militares apenas ocorreram após as mudanças na política econômica, no segundo mandato de Lula, quando houve incremento do investimento público. Assim, de certa forma, vantagens do ciclo econômico favorável foram transmitidas aos militares.

Ao contrário dos campos econômicos e da defesa, a mudança na Política Exterior teve início já nos primeiros dias da presidência. O cargo de ministro das Relações Exteriores foi exercido pelo diplomata de carreira Celso Amorim, cuja gestão foi marcada pela pró-atividade, por uma agenda autonomista e pela ênfase retórica na cooperação com os países do terceiro mundo, em uma postura descrita por ele como “altiva e ativa”. O governo buscava combinar a busca de autonomia com relações bilaterais positivas com os EUA, não havendo

56 De acordo com Lima (2015, p. 79) “Com base no Decreto n.7.276 e na Lei Complementar n. 136, ambos de

agosto de 2010, foi reforçado o papel do Ministro na cadeia de comando, criado o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA), reorganizadas secretarias e centralizada a política de compras de material de defesa [...]”.

rompimento. Houve relativo êxito nesse objetivo, porém existiam desencontros e pontos de desacordo. Relatório da Embaixada dos EUA evidencia que essa orientação estava fortemente ligada à liderança do MRE e que “sem maiores mudanças na orientação e em cargos de liderança no ministério das Relações Exteriores, a viabilidade de uma inclinação em direção aos EUA e o afastamento das prioridades sul-sul [...] mostram-se duvidosas” (EMBASSY BRAZIL, 2006c, tradução livre).

A mudança na Política Exterior, evidenciada desde o primeiro ano do governo Lula, respondia também à base eleitoral do Partido dos Trabalhadores. Com pouca margem de manobra na política econômica, Lula fez uso da política exterior como uma forma de trazer resultados e responder a sua base, já que a ênfase na soberania e na América do Sul eram demandas históricas do PT (HURRELL, 2010). Hurrell (2010) percebe que, ao decorrer do governo Lula houve uma erosão dos consensos entre as elites políticas sobre a política exterior brasileira. No período, ocorreu um aumento da discussão interna sobre a orientação de política exterior e havia demanda, por parte da oposição, de reaproximação dos países centrais e de intensificação do clientelismo.

Conclui-se que os governos Lula significaram uma mudança na correlação de forças políticas internas no Brasil. Durante seus governos, consolidou-se a formação de uma coalizão política que congregava segmentos da burguesia interna, dos trabalhadores formais e do subproletariado, que se beneficiou dos programas de transferência de renda. Os militares também se beneficiaram de uma retórica soberanista e da maior atenção aos projetos de reaparelhamento do material de defesa. A coalizão política policlassista era estabilizada pelo crescimento econômico, que garantia benefícios a todos. Ciente das reações negativas que poderia gerar, Lula não confrontou o capital e buscou o apoio da burguesia financeira. Inicialmente, a mudança na correlação de forças políticas não gerou mudanças na política econômica, porém, ela tornou-se ligeiramente mais heterodoxa no segundo mandato. As mudanças em política externa, por outro lado, evidenciaram-se desde o primeiro ano.