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Capítulo 1 Assimetria, Subordinação e Autonomia nas Relações Internacionais

1.4 Economia-Mundo e as Teorias da Dependência

A análise do sistema-mundo desenvolvida por Immanuel Wallerstein traz insights importantes ao tema dessa tese na medida em revela as relações econômicas internacionais que são a base do Estado nação e de sua posição no sistema internacional. Wallerstein define a economia-mundo como uma “rede de processos produtivos interligados” que se relacionam através de um mercado e constituem uma divisão do trabalho global (WALLERSTEIN, 1984, p. 2). Tendo se originado na Europa e passado por um processo de expansão iniciado no século XVI, atualmente, essa rede compreende todo o globo. Na visão de Wallerstein, a economia- mundo é integrada e orgânica, mas contém contradições e origina movimentos anti-sistêmicos que eventualmente levarão a sua desintegração. Nesse sistema, as decisões de produção são tomadas por agentes econômicos fragmentados e guiados pelo princípio de acumulação de capital.

De forma paralela à estrutura econômica, existe uma “polarização política entre Estados fortes em áreas centrais e Estados fracos em áreas periféricas” (WALLERSTEIN, 1984, p. 5, tradução livre). Na visão de Wallerstein, os Estados são constrangidos e instrumentalizados por forças sociais internas, pelas regras internacionais e pela fragmentação da força militar. Os Estados possuem capacidades desiguais, tanto para controlar fluxos de capital e de aplicar sua vontade a grupos internos, quanto para fazer valer sua vontade além de suas fronteiras (WALLERSTEIN, 1984, p. 29). Assim, certas unidades possuem maior autonomia que outras. A estrutura estratificada torna possível a existência de trocas desiguais entre produtores localizados em diferentes Estados, com a transferência de mais-valia no sentido periferia- centro. Por outro lado, entre os Estados fortes, há uma estrutura de disputa por poder e, em algumas conjunturas históricas, há formação de hegemonias, quando um Estado possui vantagens financeiras, comerciais e produtivas e busca expandir sua cultura. Contudo, na visão de Wallerstein (1984), as hegemonias são precárias, pois são sempre contestadas.

Além dos Estados centrais e periféricos, Wallerstein (1984) identifica Estados semiperiféricos, os quais conjugam processos próprios do centro e da periferia. Tais Estados posicionam-se de forma ambígua, em momentos servem como intermediários do domínio sobre

Estados mais fracos e, em outros períodos, podem buscar elevar-se a Estados centrais, o que contradiz com os interesses das potências dominantes.

A análise de Wallerstein é relevante para entender as dinâmicas sistêmicas da produção internacional. Contudo, menor ênfase é dedicada a como se constituem empiricamente as relações entre estados periféricos e centrais. A Teoria da Dependência auxilia a entender como ocorrem as ligações entre as classes dominantes locais e internacionais. Desenvolvidos entre as décadas de 1960 e 1970 e mais preocupados em entender e superar o subdesenvolvimento regional do que com explicar ou aconselhar rumos específicos para a Política Exterior, os estudos da Teoria da Dependência7 tiveram papel essencial no entendimento das relações

desiguais entre centro e periferia do sistema internacional. Nas análises da dependência, o subdesenvolvimento é entendido como decorrente de características do capitalismo e de sua estrutura internacional, e não de características próprias de certos Estados.

Em comum, tais estudos negavam que o subdesenvolvimento seria uma fase histórica, a ser superada pelos países periféricos a partir da adoção das políticas recomendadas pelos países centrais. De acordo com essa perspectiva, o subdesenvolvimento é resultante do capitalismo central e de sua expansão, que gera uma divisão internacional do trabalho benéfica para os dominantes (GUNDER FRANK, 1966; SANTOS, 2011). Portanto, é uma situação característica de sociedades periféricas que mantém relações de mercado com os países industriais (CARDOSO; FALETTO, 1977). Assim, não se trata de uma questão de etapa, mas de posição no sistema internacional, de um capitalismo com características específicas, decorrentes da dependência (IANNI, 1974, p. 127).

O primeiro antecedente da teoria foi o ensaio de Gunder Frank (1966) que definia a estrutura internacional como formada por uma matriz de metrópoles, satélites e subsatélites. Estes últimos seriam regiões no interior dos países dependentes, exploradas pelas elites dominantes no âmbito nacional. A referida estrutura é caracterizada pela transferência de mais valia dos subsatélites para os satélites e desses para as metrópoles. O autor argumenta que a difusão de valores, capital e instituições desde o centro não traz desenvolvimento, pois o dinamismo econômico vindo de fora é conjuntural, sendo refém de mudanças no mercado de commmodities, e eventualmente levando à decadência dos satélites. O desenvolvimento seria possível, assim, apenas em isolamento ao centro do sistema capitalista. Gunder Frank (1966)

7 A referida teoria foi um empreendimento colaborativo, desenvolvido por um grupo de sociólogos e

economistas, em sua maioria exilados brasileiros. Entre eles, cabe destacar Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, entre outros. Usamos o termo Teoria da Dependência por conveniência, sendo que é por essa denominação que a escola ficou conhecida. Bresser-Pereira (2010) argumenta que se trata mais de uma interpretação de que de uma teoria.

ressalta que os momentos de maior desenvolvimento na América Latina corresponderam a períodos de crise ou guerra no centro e que houve retrocessos após a recuperação e contraofensiva dos países centrais.

Para Theotônio dos Santos (2011), o afastamento em relação ao centro não seria suficiente para romper com a dependência, pois esta condiciona as estruturas internas. Em sua concepção, a expansão do capitalismo central cria economias servis, voltadas para fora e condicionadas pela situação de dependência. O investimento externo mantém a estrutura voltada para fora, aumentando o poder das oligarquias comercial e exportadora. Assim, a condição de dependência mantém-se em razão de que as elites da periferia se beneficiam de seu compromisso com as elites centrais. A situação de dependência influencia a orientação da produção, a acumulação de capital e a estrutura social e política (SANTOS, 2011, p. 370). De acordo com Santos (2011), as classes dominantes nos países periféricos são específicas, porque são “dominadores dependentes”. Romper com a situação de subdesenvolvimento implicaria, portanto, modificar a estrutura social-produtiva interna de forma revolucionária.

Theotônio dos Santos (2011) identifica três fases históricas distintas em relação à dependência: 1) a comercial, marcada pela existência de colônias formais; 2) a comercial/financeira, marcada pela industrialização do centro e pela exportação de produtos agropecuários pela periferia; 3) a tecnológico industrial, marcada pelo monopólio tecnológico exercido pelo centro. Portanto, a industrialização na América do Sul não gerou uma superação da dependência, mas foi a expressão da nova forma adquirida pelo fenômeno. Essa nova etapa de dependência caracteriza-se pelos investimentos externos diretos e por uma industrialização condicionada pelo monopólio tecnológico e financeiro central. A produção industrial nos países dependentes é condicionada pela compra, em dólares, de maquinaria produzida externamente e pelo pagamento de royalts a produtos patenteados. Tais compras são condicionadas pelo mercado financeiro internacional e a falta de divisas torna-se uma limitação recorrente. Nesse contexto, os setores tradicionais, agropecuários, continuam a existir, sendo importantes para o financiamento da indústria, e mantendo sua influência política.

Cardoso e Falleto (1977) analisam a situação de dependência em uma outra perspectiva, estando mais preocupados com suas facetas políticas e com a posição das elites internas dos países subdesenvolvidos. Os autores destacam a ambiguidade das sociedades latino- americanas, marcadas pela independência política e dependência econômica. Nos países periféricos, apesar de relativa autonomia de decisão sobre a produção, os preços são impostos pelo mercado externo.

Os autores identificam três fases no que se refere a dependência. Na primeira fase, durante o século XIX, as relações da Inglaterra com as periferias eram baseadas nas necessidades de matérias-primas e mercado consumidor. A segunda fase consolidou-se após a crise da bolsa de Nova York, em 1929, quando a mudança econômica possibilitou a formação da aliança desenvolvimentista. A estratégia popular-desenvolvimentista tinha como base a aliança contraditória entre as massas e os setores industriais dominantes, além da participação ativa do Estado. Contudo, as condições mundiais na década de 1950 levaram ao colapso dessa aliança de classe. A partir de mudanças no mercado internacional, a dependência entrou em sua terceira fase, marcada pelo investimento externo direto do centro em direção à periferia, que promovia sua industrialização (CARDOSO; FALETTO, 1977).

Os autores apontam que essa industrialização proveniente de fora trazia diversificação produtiva e uma economia voltada ao mercado interno. Nessa forma de dependência, as decisões produtivas são tomadas pelas empresas matrizes, apartadas das condições locais, mas há desenvolvimento parcial, pois há tendência de reinvestimento e consumo interno. De acordo com os autores “a situação atual de desenvolvimento dependente […] supera a oposição tradicional entre os termos desenvolvimento e dependência, permitindo incrementar o desenvolvimento e manter, redefinindo-os, os laços de dependência” (CARDOSO, FALETTO, 1977, p. 65, tradução livre). Assim, ao postular a possibilidade de desenvolvimento em uma situação de dependência, Cardoso e Faletto (1977) distanciam-se da outra corrente da teoria da dependência. Para ambos os autores, seria possível negociar a condição de dependência e, não necessariamente, rompê-la. Contudo, os autores omitem a importância do monopólio tecnológico exercido pelo centro, que onera a industrialização local, encarecida tanto pela necessidade de compra de maquinário quanto pela necessidade de pagamento de royalts.

A Teoria da Dependência contribui ao estudo dessa tese ao ressaltar a estrutura econômica desfavorável aos países dependentes e a funcionalidade dessa situação às classes dominantes desses mesmos países. Contudo, a concepção da vertente estrutural da teoria da dependência não permite apreender as diversidades que existem entre as classes dominantes periféricas. As burguesias dos países periféricos não são unas e as alianças com o centro têm repercussões desiguais para diferentes frações de classe.

Além disso, não é toda a burguesia que controla o governo em um determinado momento histórico, porém frações da burguesia, por vezes em aliança com partes das classes subalternas. A formação de um governo envolve coalizões políticas, alianças entre grupos sociais com vistas ao controle do poder estatal (MARTINS, 1977). Assim, ao longo da história latino-americana, conforme mudavam as alianças políticas que controlavam o poder político,

houve momentos de busca de autonomia e de afastamento em relação ao centro. Mesmo que na maior parte não tenha havido rompimento com os países centrais, houve um outro posicionar- se frente ao sistema internacional.

De acordo com Martins (1977), as coalizões politicamente predominantes diferem-se do bloco no poder, ou seja, das classes e frações de classe dominantes no plano econômico. A coalizão politicamente predominante abarca os setores econômicos “a favor de cujos interesses são definidos os principais rumos seguidos pela política governamental” (MARTINS, 1977, p. 189). Tais alianças podem ter uma base policlassistas, envolvendo frações da burguesia e das classes populares e não abarcam, necessariamente, todos os integrantes do bloco no poder – ou seja, dos grupos predominantes no plano econômico.

No Brasil, existiam duas coalizões políticas em disputa, a nacional-populista e a internacional-modernizadora, que congregavam frações de burguesia – em alianças, respectivamente, com setores proletários e com o capital internacional. A primeira tinha como objetivo principal o desenvolvimento nacional autônomo, já a segunda a integração ao sistema ocidental e o crescimento econômico associado à potência dominante. Assim, no caso brasileiro, ao chegarem ao poder, tais coalizões informavam políticas exteriores e associações internacionais divergentes (MARTINS, 1977).

A aliança nacional-populista tinha por base alianças entre setores da burguesia urbana e o proletariado industrial. Tratava-se de uma aliança que colocava tais setores sociais em oposição à fração da burguesia importadora e produtora de bens destinados ao mercado mundial. Assim forjaram-se os movimentos nacional-populares, os quais “definiam um coletivo que pretendia abranger – e por momentos conseguiu – desde as classes subordinadas até boa parte de uma burguesia urbana que parecia capaz de jogar um papel dinâmico no desenvolvimento ” (O’DONNELL, 1996 p. 23, tradução nossa). Contudo, tais alianças eram frágeis e foram desmontadas pela conjugação entre crise econômica e ascensão de setores populares, o que gerou a percepção, entre o conjunto das burguesias, de risco revolucionário. Portanto, as alianças entre frações da burguesia e setores populares não são naturais e não correspondem a todos os interesses daquelas, embora possam ser funcionais para frações das burguesias locais em determinados momentos.

O foco da Teoria da Dependência são as características econômicas estruturais e sua capacidade de explicar o comportamento de Estados em conjunturas específicas é mais limitado (CARNEY, 1989), especialmente quando se trata de analisar as nuances entre momentos de maior adequação e de afastamento do centro. Esses estudos também não têm como foco entender como as alianças de classe entre países centrais e periféricos impactam na dimensão

militar, e nas visões de mundo dos militares, e como o contexto geopolítico importa na reprodução do subdesenvolvimento.

Nesse sentido, Ianni (1974) argumenta sobre a necessidade de desenvolver uma concepção integrada da dependência, definindo-a simultaneamente como política e econômica. De acordo com o autor, a dependência tem origem na divisão internacional do trabalho, contudo, influi nas instituições políticas, militares, culturais e educacionais do país dependente. O autor apresenta o conceito de dependência estrutural, definida como a situação na qual o país menos desenvolvido é levado a adotar decisões de política econômica originárias em um país desenvolvido. Contudo,

a dependência estrutural não se circunscreve à esfera das relações econômicas. Ao contrário, ela necessariamente transborda para as relações e instituições políticas. Mais que isso, ela somente se consolida e desenvolve por intermédio de relações, instituições e ideologias políticas (IANNI, 1974, p.166)

Assim, para o autor, a dependência não impacta apenas nas instituições econômicas, mas nas culturais, religiosas, educacionais e militares. No próximo tópico aborda-se como tais questões são tratadas do ponto de vista da segurança internacional e como a situação periférica incide sobre as instituições militares nos países dependentes.