• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 Assimetria, Subordinação e Autonomia nas Relações Internacionais

1.5 Segurança e Militarização no Terceiro Mundo

Os estudos sobre segurança internacional no terceiro mundo argumentam que os países periféricos possuem dinâmicas de segurança essencialmente diferentes das que prevalecem nos países centrais. Tradicionalmente, os estudos clássicos de segurança internacional privilegiaram o estudo das relações entre grandes potências, com a consequente formação de teorias que não se adequam às especificidades locais (ACHARYA, 1997; AYOOB, 1991). A formação dos Estados periféricos é diferente em relação aos países centrais pois o aparato estatal periférico constituiu-se a partir de intervenção externa, domínio e do colonialismo, de forma que as fronteiras foram determinadas por disputas imperiais. Economicamente, tais países modernizaram-se pelo consumo, sendo que a produção de produtos manufaturados ocorria alhures.

As principais ameaças percebidas pelos Estados periféricos são específicas. Tais ameaças são de caráter regional ou interno, revertendo a lógica das potências centrais, cuja preocupação central refere-se às disputas de poder relativo no plano global (ACHARYA, 1997; AYOOB, 1991; ROUQUIÉ, 1984; WENDT; BARNETT, 1993). As diferenças de poder em âmbito mundial não influenciam significativamente as considerações de segurança de potências

regionais; em outras palavras, o vizinho com equidade de capacidades tende a ser visto como uma ameaça maior que a potência global. As dinâmicas regionais de tensão e conflito entre Estados, contudo, sofrem ingerências dos países centrais, seja por meio da transferência de armas, de alinhamentos geopolíticos ou apoio a uma das partes beligerantes (AYOOB, 1991). As ameaças internas percebidas são diversas, compreendendo o crime organizado, rebeliões de trabalhadores urbanos ou camponeses, presença dos grupos indígenas autóctones que resistem ao avanço capitalista, entre outras possibilidades. A percepção de inimigos internos reflete a estrutura social dessas sociedades, que são pouco integradas socialmente e caracterizadas por intensa desigualdade econômica, o que gera condições materiais para a intensificação dos conflitos sociais. Em muitos casos, são sociedades que contam com um Exército politicamente relevante e apto para intervir em prol do status quo (ROUQUIÉ, 1984). Por outro lado, há uma divisão internacional do trabalho também do ponto de vista militar, já que a produção de armas depende de uma base industrial. Contemporaneamente, alguns Estados periféricos, como o Brasil, industrializaram-se e possuem relevante indústria de armamentos, entretanto, tal situação é marcada pela transferência de tecnologia na direção Norte-Sul. A transferência tecnológica tende a ser controlada pelo centro, motivada por considerações político-estratégicas e limitada às tecnologias já ultrapassadas. A transferência de tecnologias e armamentos implica também na exportação de uma concepção estratégica e implica na organização militar.

Ao analisar a militarização periférica, entendida como acumulação de capacidades para a violência organizada, Wendt e Barnett (1993) notam sua semelhança em relação aos países centrais. Em sua visão, a militarização periférica mimetiza aquela dos países centrais em sua forma, apesar da menor disponibilidade de capital e de reduzido desenvolvimento tecnológico. Como apontado por Rouquié (1984, p. 96), os exércitos periféricos são semelhantes aos europeus apenas na forma, pois na ausência de indústria pesada local, as Forças Armadas periféricas dependem da importação de armamento.

Wendt e Barnett (1993) argumentam que as Forças Armadas do Terceiro Mundo são caras e não são compatíveis com a situação econômica. Os autores apontam que uma alternativa a essa situação seria o desenvolvimento de forças armadas intensivas em trabalho, no modelo de guerrilhas, o que historicamente foi considerado como uma opção pelas elites locais apenas de forma excepcional. A militarização do terceiro mundo tornou-se mais intensiva em capital do que seria esperado, baseada na importação de produtos e tecnologia, assim como na profissionalização a partir dos modelos centrais.

Essa situação é decorrente da estrutura hierárquica do sistema internacional e envolve questões de âmbito cultural, econômico e político (WENDT, BARNETT, 1993). A estrutura da economia-mundo capitalista gerou economias locais periféricas voltadas para fora, marcadas pela penetração de capital externo e pela modernização através do consumo. O rompimento do pacto colonial não significou modificação da estrutura econômica, e foram constituídas alianças entre as elites locais, o capital internacional e as elites das potências centrais. Nesse contexto, as burocracias estatais foram construídas em associação com os países centrais, refletindo também seus interesses. As elites locais, ao apoiarem as potências e aceitarem sua liderança, geram uma relação de clientelismo. Por outro lado, as elites passam a ser apoiadas e empoderadas pelos países centrais e logram manter-se no poder sem que haja políticas de distribuição de renda. Assim, os governos dos Estados periféricos possuem baixa legitimidade interna. A exclusão das massas e a consequente contestação do status quo interno faz com que as mobilizações populares sejam vistas como ameaças pelas burguesias.

Os países centrais transferem armas, aumentando o poder das elites e das Forças Armadas no plano interno, permitindo uma estratégia de contenção militar das demandas por mudanças da estrutura social. Para os países centrais, há tanto incentivo para vender armas às periferias, pois as empresas produtoras demandam mercado, quanto constrangimentos, pois a transferência de tecnologias potencialmente impacta na balança mundial de poder.

Culturalmente, tem peso a imagem do exército moderno e eficiente como aquele que é detentor das armas de maior tecnologia agregada (WENDT, BARNETT, 1993). A criação de um Exército moderno e tecnológico, semelhante ao dos países desenvolvidos tende a ser vista pelas elites militares periféricas como um compensador à falta de autonomia e como uma forma de entrar na modernidade. A transposição de um modelo de exército do centro para a periferia ocorre a partir da profissionalização e da importação de tecnologia. A construção dos exércitos é feita a partir de conexões com os países centrais, que treinam continuamente os militares de países periféricos. Já a tecnologia militar é valorizada como um símbolo de progresso, mesmo que não sirva aos interesses específicos da sociedade. Em um contexto de impossibilidade de produzir equipamentos militares com tecnologia de ponta, os Estados do Terceiro Mundo tendem a optar pelo caminho da militarização dependente, modernizando-se pelo consumo e não desenvolvendo capacidades produtivas. Nesse contexto, as Forças Armadas aproximam-se dos países centrais tornando-se elemento chave de dominação. Os problemas políticos no Terceiro Mundo tendem a ser resolvidos através do uso da força militar, sem a promoção de reformas necessárias à integração das massas e à construção de um Estado de bem-estar social (WENDT, BARNETT, 1993).

Tais dinâmicas significam que os desenvolvimentos históricos foram diferentes na periferia em relação ao centro. A estabilidade internacional durante a Guerra Fria foi uma situação específica do Norte, sendo que nos países periféricos o período foi de intensa instabilidade. A contenção da União Soviética traduziu-se em contrarrevolução e guerras civis. Na África, proliferaram os conflitos internos e na América Latina, a deposição de governos reformistas que implementavam políticas exteriores independentes (AYOOB, 1991). No contexto latino- americano, as Forças Armadas tiveram papel importante na contrarrevolução, atuando em prol do status quo, com proximidade aos grupos de extrema direita e aos EUA.

Contudo, cabe ressaltar que as relações entre países periféricos e centrais foram permeadas por momentos de questionamento ao domínio central e de busca de maior autonomia da periferia, inclusive através de investimentos nas indústrias bélicas. O treinamento externo não eliminou o nacionalismo inerente às Forças Armadas nacionais e, por vezes, os governos militares foram relevantemente nacionalistas e buscaram aumentar graus de autonomia. A oposição brasileira ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) é um exemplo claro nesse sentido: o país possuía um programa nuclear não apenas em razão de tensões com o vizinho, porém também porque havia a percepção de um oligopólio do poder mundial, prejudicial ao país.

As alianças e o clientelismo internacional significam ganhos mútuos para as elites periféricas e centrais. Não obstante, não impede o surgimento de divergências, uma vez que a distribuição de poder e recursos é desigual e os países semiperiféricos tendem a buscar maior protagonismo internacional e questionar a sua posição de poder. Os países semiperiféricos buscam matizar a assimetria internacional não apenas pela transferência de tecnologia, mas também por tentativas de produção de armas endogenamente, especialmente aquelas mais potentes, como as nucleares.

Além disso, as ameaças de caráter transnacional também são relevantes para as grandes potências, as quais percebem a instabilidade regional e o fluxo de pessoas da periferia em direção ao centro como fonte de insegurança. Durante a Guerra Fria, as percepções de ameaças de caráter clássico – especialmente a URSS – e transnacional – o comunismo internacional – fundiam-se, sendo a primeira predominante nas percepções dos países centrais e a segunda nos da periferia. No período atual, o cenário é mais complexo e não há convergência entre ameaças transnacionais – terrorismo e crime organizado – e clássicas – atualmente, Rússia e China na percepção dos EUA.

No caso da América do Sul, durante a Guerra Fria, a influência dos Estados Unidos consolidou-se, com tal país dominando a assistência militar e econômica. Especialmente a partir

da revolução cubana, em 1959, as forças armadas latino-americanas foram treinadas nos EUA para combater o comunismo, em um contexto de sua transformação em forças de ordem interna. Na visão de Fitch (1979), o programa de assistência militar dos Estados Unidos à região proporcionou maior profissionalização e capacidade gerencial aos militares, tornando-os mais poderosos nas dinâmicas de poder internas e em sua capacidade de gestão. Tais programas também instituíam um modelo de Forças Armadas modernas, o que gerava, entre os militares, demandas para a modernização dos equipamentos através de compras de material bélico.

A partir dos anos 1980, as dinâmicas regionais de segurança foram afetadas pela difusão internacional do neoliberalismo, modelo econômico que se estabeleceu na América Latina a partir de pressões exercidas pelo centro (CRUZ, 2007). Esse paradigma, que exige diminuição do Estado do ponto de vista econômico, também demanda maior controle sobre os fluxos de pessoas, gerando um Estado mais forte do ponto de vista do aparato repressivo. Nesse sentido, os EUA ampliaram o processo de internacionalização de suas definições nacionais de crime, especialmente pela criação de regimes internacionais. No caso das drogas, um regime proibicionista de âmbito global foi estabelecido entre as décadas de 1960 e 1980 (ANDREAS; NADELMANN, 2006)

Assim, ampliou-se a demanda internacional por maior controle de fluxos ilegais – de drogas psicoativas– e o crime organizado transnacional passou a ser concebido pelos EUA como uma ameaça a sua segurança nacional. Tais ameaças somaram-se ao “comunismo” e ao “terrorismo” como questões internas a serem combatidas pelos países periféricos, com o auxílio dos países centrais. Os EUA lançaram sua “guerra às drogas”, com caráter internacional amplificado pela internacionalização da Drug Administration Agency (DEA) e pela política de certificação, que condiciona assistência internacional ao combate dos narcóticos.

No pós-Guerra Fria, os EUA passaram a reconhecer uma pluralidade de “novas ameaças” presentes no Hemisfério Ocidental, que abarcam temas relativos ao controle do crime, migrações e terrorismo (PEREIRA, 2015; RODRIGUES, 2012; SAINT-PIERRE, 2011). Após o ataque às Torres Gêmeas do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, o terrorismo tornou-se prioritário como ameaça a ser combatida pela potência mundial. Assim, gradualmente, o crime organizado e o terrorismo substituíram o comunismo como a ameaça que deveria ser combatida na periferia com assistência externa, replicando a lógica de Forças Armadas voltadas para dentro.