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Gráfico 7: Importação de sistemas de armas pelos países da América do Sul

Capítulo 4: As relações Brasil-EUA durante os governos do PT (2003-2016): autonomia heterodoxa e resignação

4.3 Política Exterior e Relações com os EUA nos governos Lula

Durante os governos Lula, a Política Exterior Brasileira tendeu a enfatizar a defesa da soberania nacional e o estabelecimento de parcerias com países em desenvolvimento (ALMEIDA, 2004; BRANDS, 2010; MARES,TRINKUNAS, 2016; VIGEVANI; CEPALUNI, 2007). Ganharam espaço os arranjos com Índia, China, África do Sul e Rússia, articulados nos fóruns IBAS e BRICS, houve renovada atenção às relações com a África, com o Oriente Médio, e com a América do Sul. O regionalismo sul-americano foi pensado como uma forma de construir um polo de poder que impactasse na transição para uma ordem internacional multipolar (BANDEIRA, 2009; LIMA, 2013). Tais movimentos indicavam o retorno a uma

política exterior de ethos terceiro-mundista, na qual as relações com os países em desenvolvimento ganhavam destaque.

Vigevani e Cepaluni (2007) definem essa estratégia como “autonomia pela diversificação”60 argumentando que as parcerias com países em desenvolvimento objetivavam

aumentar o poder de negociação e alcançar maiores margens de manobra no sistema internacional. Brands (2010) acrescenta que o desígnio era acelerar e reforçar a transição de poder em âmbito mundial, em direção a um sistema multipolar. Mares e Trinkunas (2016) avaliam que se buscava maior influência na formulação das regras que regem a ordem internacional. Embora o objetivo de ascensão tenha raízes históricas e não havia sido abandonado após a redemocratização e o fim da Guerra Fria, o governo Lula diferenciava-se pela maior ambição (MARES; TRINKUNAS, 2016).

A ação brasileira era afirmativa e propositiva, reformista da ordem mundial, demandando poder decisório nos regimes internacionais. O Brasil questionava a governança das instituições financeiras e de segurança – FMI, Banco Mundial e Conselho de Segurança da ONU – demandando maior espaço para os países emergentes no processo de tomada de decisões (HURRELL, 2010). Embora houvesse adesão a certos valores da ordem liberal, como democracia, direitos humanos e não-proliferação, o Brasil expressava divergências em relação às formas de expansão de tais princípios e opunha-se ao uso da força para impor a democracia e os valores liberais. A diplomacia brasileira atribuía importante prioridade ao conceito de soberania e enfatizava as dimensões econômicas, institucionais e as especificidades locais como questões relevantes para a solução de conflitos internos (HIRST, 2014). Também havia maior reticência em relação à liberalização comercial e priorização dos organismos multilaterais – especialmente a Organização Mundial do Comércio (OMC) – em detrimento de acordos bilaterais ou inter-regionais de comércio. Havia uma postura relativamente conservadora e conformada com o sistema internacional em comparação aos outros emergentes – China, Índia e Rússia – e a demanda de reconhecimento enquanto potência emergente não significava contestação ou confrontação, mas atuação ativa (HURRELL, 2010; NARLIKAR, 2010).

A Política Exterior Brasileira expressava maior ambição, havia busca de protagonismo e prestígio e opção por enfatizar as relações com o Sul Global, especialmente a América do Sul e os países emergentes. Todavia, tal postura não refletia um consenso interno. A assertividade da atuação internacional brasileira levou ao surgimento de críticas e à percepção de que o

60 Os autores contrastam a “autonomia pela diversificação” à “autonomia pela participação”, que predominou

durante os governos FHC. A autonomia pela participação significava adesão aos regimes internacionais e atuação ativa no sentido de influenciá-los.

governo estaria sendo pouco pragmático e gerando uma partidarização da política exterior (BUENO, 2010; LAFER, 2009; RICUPERO, 2010). Os críticos do governo pontuavam os seguintes problemas: i) o excessivo voluntarismo expressado no discurso de Lula, que se imaginava capaz de contribuir com a paz no Oriente Médio e com a solução de problemas globais ii) a falta de resultados econômico-comerciais e iii) o risco de assumir excessivos custos decorrentes de uma posição de liderança. Para tais autores, a política exterior deveria ser uma política de Estado, institucional, marcada pela liderança do Itamaraty e erigida “acima das disputas internas e à serviço da nação” (RICUPERO, 2010, p.51).

No entanto, tais críticas não são livres de coloração partidária. Dois dos três autores citados, Rubens Ricupero e Celso Lafer, participaram de governos do PSDB e, portanto, tratam- se de análises situadas e interessadas. O discurso crítico à Política Exterior refletia e reforçava uma tendência prevista por Lima (2000), a qual apontava que a redemocratização gerararia maior debate interno em relação às estratégias internacionais do país. Como apontado pela autora, o Estado brasileiro é plural e a política exterior tem consequências distributivas, gerando custos e benefícios a setores econômicos diferentes, o que leva a interesses diversos e a debates significativos (LIMA, 2000). A política exterior de Lula calcava-se em sua base eleitoral, mas também em parte da burguesia local, que se beneficiou do financiamento estatal para se internacionalizar.

Não foi apenas no plano interno que as mudanças de Política Exterior promovidas por Lula causaram certa frustração. Embora não houvesse retórica ou atuação antiamericana, a crítica à estratificação do sistema internacional deixava Brasil e Estados Unidos em lados opostos. Os Estados Unidos buscavam manter sua primazia, enquanto o Brasil ambicionava promover mudança e desconcentração de poder. Além disso, o maior nacionalismo brasileiro e a preocupação com a soberania dificultavam a colaboração, uma vez que os termos propostos pelos EUA nem sempre eram aceitáveis para o Brasil. A administração Lula reiterava a desconfiança em relação aos EUA e uma visão estratégica que divergia da estadunidense ao defender o multilateralismo e buscar soluções negociadas para problemas de segurança internacional, criticando o uso da força (ESPACH, 2016).

Ciente da importância das relações com os EUA, havia um esforço por parte do governo brasileiro em buscar acomodação nas relações bilaterais. As relações interpessoais que se estabeleceram entre Bush e Lula eram marcadas por cordialidade e respeito mútuo, sendo comum a imagem de que ambos se entendiam e mantinham boas relações de trabalho (EMBASSY BRAZIL, 2005b; SPEKTOR, 2014). Russell e Tokatlian (2009) definem a estratégia brasileira como de “oposição limitada”: “uma política mista frente aos Estados

Unidos, na qual se combinam desacordos e colaboração, concertação e obstrução, deferência e resistência”, e na qual a cooperação regional é vista como uma forma de aumentar o poder de barganha frente à potência hemisférica (RUSSELL; TOKATLIAN, 2009, p. 271, tradução livre).

Essa orientação de política exterior foi percebida pela Embaixada dos EUA no Brasil como “hipersensibilidade” e como proveniente de uma visão de mundo antiquada, baseada na divisão do mundo entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento. Havia, por parte da embaixada, a identificação de desacordos importantes em termos de política exterior, apesar de temas de convergência e continuidade da cooperação em nível técnico:

Em política externa, o Brasil e os EUA frequentemente batem cabeças. Como o governo brasileiro vê o mundo através de uma obsoleta perspectiva “terceiro-mundo” “norte-sul”, nosso relacionamento bilateral - em uma série de questões - é muitas vezes difícil. Nós temos as mãos cheias tentando manter o diálogo com o Brasil multidimensional e sólido, capaz de resistir às frequentes - e às vezes pronunciadas - diferenças de opinião [...] A autoconfiança do Brasil mudou o tom de sua relação com os EUA, às vezes de maneiras favoráveis a nossas preferências, e outras vezes não [...] a hipersensibilidade em questões vistas como infringindo a soberania do Brasil pode sair do controle e ser vista como um sinal de imaturidade política (EMBASSY BRAZIL, 2005b, p. 1-2, tradução livre).

Embora as relações entre os EUA e o Brasil sejam amistosas, o USG [governo dos EUA] frequentemente encontra grandes dificuldades em obter a cooperação de formuladores de políticas em questões de interesse significativo para os Estados Unidos. O governo brasileiro, ansioso para afirmar sua própria influência, evita a cooperação com o USG – a menos que possa ser claramente caracterizada como um intercâmbio recíproco entre iguais. Em contraste, em questões percebidas como de natureza técnica - aplicação da lei, ciência e biocombustíveis - o governo brasileiro mostra-se entusiasmado para se engajar (EMBASSY BRAZIL, 2007, tradução livre). Internacionalmente, a cooperação EUA-Brasil é muitas vezes limitada pela falta de vontade do governo brasileiro de se manifestar contra as ações antidemocráticas no hemisfério (Venezuela e Cuba), em adotar medidas proativas para tratar de questões fundamentais como proliferação nuclear e contraterrorismo e em expandir sua liderança internacional de maneiras significativas. No entanto, as relações entre os militares são boas e crescentes, e os militares brasileiros, em sua maioria, compreendem os benefícios potenciais da parceria com os Estados Unidos [...]. No nível operacional, a cooperação em questões de aplicação da lei, como combate ao narcotráfico, segurança de contêineres e compartilhamento de inteligência, é excelente e está melhorando (EMBASSY BRAZIL, 2009a, tradução livre).

Como apontado nas citações, a renovada assertividade e sensibilidade brasileira em relação à soberania significava que as relações bilaterais eram permeadas por significativa ambivalência: em certos pontos, a relação bilateral não foi aprofundada e surgiram desacordos, mas também foram identificados temas de convergência, especialmente em questões mais técnicas, nos quais houve continuidade e aprofundamento da cooperação.

Do ponto de vista da política econômica interna, o Brasil atuava dentro de parâmetros liberais e aceitáveis para os EUA, adotando “políticas monetárias e fiscais prudentes”

(EMBASSY BRAZIL, 2009a). Em temas comerciais existiram desacordos61, especialmente na

OMC e nas negociações para a formação de uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). No que se refere à Rodada Doha da OMC, o Brasil liderou uma coalizão de países em desenvolvimento, nomeada de G-20, que demandava reforma da política de subsídios comerciais para a agricultura estabelecida pelos países centrais. Essa posição era contrária aos interesses dos EUA, que buscavam manter vantagens para seu setor agrícola. A divergência entre países desenvolvidos e em desenvolvimento acabou por travar as negociações (EMBASSY BRAZIL, 2005b).

No que se refere à ALCA, Bandeira (2009, p. 81) destaca que se tratava do “principal ponto das divergências” entre Brasil e Estados Unidos. O Partido dos Trabalhadores tinha uma postura contrária à iniciativa, concebendo-a como prejudicial à indústria brasileira e como uma forma de os Estados Unidos aumentarem seu poder sobre a região. Os dois principais líderes da diplomacia brasileira durante o governo Lula – Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – tinham uma percepção da ALCA como uma estratégia dos EUA para fortalecer sua hegemonia regional. Amorim a definiu como um “[...] projeto de inspiração neoliberal sob hegemonia americana” (AMORIM, 2013, p. 52). Já Guimarães destacou que “A ALCA [...] visa a construir um território econômico único, onde os Estados subdesenvolvidos não poderão ter [...] projetos nacionais de desenvolvimento” (GUIMARÃES, 2014, p. 24).

Apesar de tais assertivas contundentes, não houve grandes modificações entre os governos de Lula e FHC em relação ao tema, pois o Brasil tinha reservas ao projeto desde o início das negociações, em 1994. A embaixada dos EUA destacava que, apesar de não priorizar a ALCA, o governo Lula deu continuidade às negociações e afastou-se da retórica da campanha eleitoral, que denunciava o caráter imperialista da iniciativa (EMBASSY BRAZIL, 2005b). De toda forma, a diplomacia manteve uma postura negociadora dura, demandando o fim dos subsídios estadunidenses à agricultura e maior acesso ao mercado estadunidense para a agropecuária brasileira. Por fim, a proposta da ALCA foi abandonada em novembro de 2005, durante o encontro de Mar del Plata, na Argentina. Embora o Brasil tenha sido um dos mais duros negociadores, contribuindo para tal resultado, a diplomacia brasileira agiu de forma mais

61 As dificuldades nas relações com os EUA não eram uma novidade do governo Lula. Os atentados de 11 de

setembro de 2001 levaram a um importante desencontro entre os EUA e o Brasil, ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A adoção de uma política unilateral por Washington contrastava com a defesa brasileira de uma ordem internacional multilateral. A centralidade assumida pelo terrorismo na esfera internacional contrastava com a ênfase brasileira em questões de desenvolvimento (SILVA, 2013a). Em sue segundo mandato, Cardoso passou a criticar a “assimetria da globalização”, representando a retomada de uma postura mais reformista do Brasil no sistema internacional.

institucional e de baixo perfil, o que facilitou a retomada das relações bilaterais posteriormente, apesar da frustração do governo dos EUA.

Por outro lado, as mudanças na política exterior brasileira, incluindo a maior assertividade, também tiveram consequências favoráveis para as relações bilaterais. Como apontado por Pecequilo (2008), um dos resultados positivos foi a formação de um diálogo estratégico entre os dois países, que elevava a parceria e significava maior institucionalização da concertação em alto nível. Anunciado em 2005 e semelhante aos diálogos que os EUA possuem com China e Índia, o mecanismo pretendia promover maior comunicação e representava um reconhecimento do crescente peso político brasileiro. Com relação à institucionalização do diálogo, apesar de parte da literatura insistir na proeminência do Itamaraty (CERVO, 2008; RICUPERO, 2010), percebe-se a existência de contatos importantes entre diferentes agências brasileiras e a embaixada estadunidense. Os telegramas emitidos pela embaixada dos EUA mostram que os diplomatas buscavam manter importante comunicação com a Casa Civil, com o GSI, com o Ministério da Fazenda e com o Ministério da Defesa.

A existência de comunicação não impedia os pontos de desacordo que, em grande parte, decorriam da estratégia global do Brasil. A atuação brasileira no Oriente Médio e o esforço brasileiro por construir um fórum de diálogo América do Sul-Países Árabes, cuja primeira reunião aconteceu em 2005, causava apreensão entre os representantes dos EUA (EMBASSY BRAZIL, 2005c, 2005d). Ainda com relação ao Oriente Médio, cabe destacar a aproximação Brasil-Irã e a visita do então presidente, Mahmoud Ahmadinejad, a Brasília em novembro de 2009. Embora as relações Brasil-Irã desagradassem os EUA, o governo brasileiro argumentava que poderiam ser úteis caso o país do norte resolvesse entrar em negociações com o país persa (EMBASSY BRAZIL, 2009a).

Em 2010, um evento impactou de forma relevante as relações Brasil-Estados Unidos. Em 18 de maio, os governos brasileiro, turco e iraniano divulgaram a assinatura de um acordo tripartite referente ao programa nuclear do último, prometendo deslocar parte das atividades de enriquecimento de urânio para fora do território iraniano. Após o anúncio, o governo dos Estados Unidos expressou insatisfação com o movimento brasileiro-turco, considerando-o prejudicial à adoção de sanções ao Irã, que foram posteriormente debatidas e aprovadas no Conselho de Segurança da ONU. A posição brasileiro-turca, portanto, ia contra o objetivo

estadunidense de gerar consenso em torno de uma postura mais dura e da imposição de sanções ao Irã (informação oral)62.

Por outro lado, o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, argumenta que a atuação brasileira foi decorrente de sinais emitidos pelos próprios diplomatas estadunidenses e que o Brasil não esperava a reação adversa que o acordo gerou (AMORIM, 2015). Após o episódio, houve um esfriamento das relações bilaterais, que durou até a posse de Dilma Rousseff, em 2011 (informação oral)63. Cabe ressaltar que a fluidez das relações

interpessoais que marcou o período Lula-Bush diminuiu quando Obama assumiu o poder64.

No plano latino-americano, também é possível perceber tanto desencontros quanto pontos de cooperação entre Brasil e EUA. Durante o governo Lula, a política exterior brasileira foi marcada pela tentativa de exercer maior liderança e restringir a influência dos EUA na região. Essa situação não era necessariamente contrária aos interesses estadunidenses, que concordavam com a liderança regional brasileira dentro de certos parâmetros. Um ponto no qual o Brasil agiu de forma convergente às expectativas de Washington refere-se ao protagonismo brasileiro na Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). Essa foi uma demanda dos EUA e uma forma de liderança brasileira na América Latina convergente com os desígnios da potência (EMBASSY BRAZIL, 2004b). Ressalta-se que foi também uma decisão de política exterior que desagradou a própria base eleitoral mais à esquerda e os movimentos sociais ligados ao Partido dos Trabalhadores (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007).

No que se refere ao regionalismo sul-americano, a embaixada brasileira em Washington buscava apresentar a cooperação regional como convergente aos interesses dos EUA. Roberto Abdenur, embaixador do Brasil nos Estados Unidos (2004-2006), acreditava que o argumento de que a cooperação regional traria estabilidade para a América do Sul era de “especial significado para as relações Brasília-Washington” e os diplomatas brasileiros deveriam reforçá- lo (EMBAIXADA BRASILEIRA EM WASHINGTON, 2006a). Tratava-se de uma forma de apresentar o regionalismo de forma mais amena para os EUA, que também declaravam ter a

62 Informação obtida em entrevista com Thommas Shannon realizada na cidade de Washington D.C. em 22 de

fevereiro de 2019.

63 Idem.

64 Essa situação fica clara no livro “Teerã, Ramalá e Doha: Memórias da Política Externa Ativa e Altiva”, escrito

por Celso Amorim. Amorim (2015) transparece na redação do livro que havia percepção por sua parte e de Lula de uma postura paternalista de Obama. Essa percepção de maiores dificuldades nas relações interpessoais foi confirmada em entrevista com Thommas Shannon realizada na cidade de Washington D.C. em 22 de fevereiro de 2019. Telegrama da embaixada dos EUA 4 de agosto de 2009 define as relações Obama-Lula como cordiais e as relações Lula-Bush como excelentes.

promoção da estabilidade como um objetivo de política exterior para a região (EMBASSY BRAZIL, 2009a).

Maiores diferenças de perspectiva apareciam no que se refere aos governos de esquerda sul-americanos. O maior ponto de preocupação dos Estados Unidos era o presidente venezuelano Hugo Chávez. Relato de 2005 sobre conversa entre o então Ministro das Relações Exteriores brasileiro, Celso Amorim, e o embaixador estadunidense em Brasília, John J. Danilovich, mostra que havia interesse estadunidense em construir um mecanismo bilateral de consultas sobre a situação na Venezuela, buscando institucionalizar o diálogo sobre esse tema, produzir cooperação e troca de inteligência. Durante a reunião:

O embaixador esquematizou […] a crescente preocupação do governo norte- americano com a retórica e as ações de Chávez [...] ele pediu que o ministro Amorim considerasse a institucionalização de um engajamento político mais intenso entre o USG [o governo dos EUA] e o GOB [governo brasileiro] sobre Chávez, com a criação de um acordo dedicado ao compartilhamento de inteligência. […] Amorim disse que o GOB gostaria de intensificar seu diálogo político com os EUA sobre Chávez, mas não tem interesse em compartilhar informações (embora Amorim tenha admitindo que o governo brasileiro veria qualquer documento de inteligência que desejássemos fornecer unilateralmente). Descrevendo a relação do Brasil com a Venezuela como “sensível”, Amorim disse que o GOB precisava tomar cuidado para não dar passos (por exemplo, atividade de inteligência com USG) que poderiam minar sua credibilidade com Chávez e a capacidade do governo brasileiro de influenciá-lo positivamente (EMBASSY BRAZIL, 2005, tradução própria).

Os Estados Unidos esperavam posturas mais assertivas do Brasil em relação àquele governo. No entanto, a posição brasileira era um fator de frustração para os diplomatas estadunidenses, tendo em vista que o governo Lula percebia Chávez como um governo legítimo, o que não correspondia à visão dos representantes do Norte, que o viam como uma ameaça à região. Os representantes brasileiros buscavam destacar suas credenciais como um fator de amenização a Chávez. O relato de 2005 sobre conversa entre Amorim e Danilovich ilustra essa dinâmica:

Amorim deixou bem claro que o governo brasileiro não está comprando nossa categorização de Chávez como uma ameaça significativa para a região, que deve ser tratada de acordo. O governo brasileiro o vê como uma figura legítima e como democraticamente eleito (como também é Evo Morales, na opinião do governo) e o Brasil está comprometido em trabalhar com Chávez, aparentemente para melhorar seu comportamento mais extremo, envolvendo-o em relações econômicas e políticas interdependentes. O Brasil parece acreditar que esse é o melhor caminho para garantir a estabilidade regional (EMBASSY BRAZIL, 2005, tradução própria)65.

65 A percepção de Chávez como um líder legítimo não era compartilhada por toda a elite política brasileira.

Telegramas da Embaixada dos Estados Unidos mostram que legisladores e antigos membros de governos brasileiros aproximaram-se da embaixada para explicitar sua visão de Chávez como uma ameaça ou fonte de desestabilização à região. Entre estes destacam-se o senador Heráclito Fortes e o ex-presidente José Sarney (EMBASSY BRAZIL, 2007f, 2007g, 2008o).

O relato mostra que as administrações de Estados Unidos e Brasil possuíam percepções diferentes sobre os governos de esquerda que ganhavam espaço na região. O Brasil percebia os presidentes mais radicais como legítimos, o que não era compartilhado pelos Estados Unidos, que apontavam na necessidade de contenção. O Brasil apresentava soluções no sentido de amenizar as posturas mais radicais de Chávez de forma diplomática, através do diálogo e do capital político de Lula. Contudo, essa não era a solução preferida pelos Estados Unidos, que identificavam a necessidade de políticas mais duras, com a categorização do bolivarianismo como ameaça às Américas. Essa dinâmica mostra que os Estados Unidos percebiam o Brasil como um ator relevante na América do Sul e buscavam dividir a liderança dentro de