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A estratégia dos EUA frente à presença de poderes externos na região durante o governo Bush

Capítulo 3: A Política Exterior dos EUA para o Hemisfério Ocidental no período pós

3.2 Os EUA, a distribuição de poder global e a América do Sul durante o governo de George W Bush

3.2.2 A estratégia dos EUA frente à presença de poderes externos na região durante o governo Bush

Além das questões referentes às ameaças transnacionais, uma outra preocupação dos EUA no Hemisfério Ocidental referia-se às crescentes conexões entre potências extra- hemisféricas e a América Latina. Tal situação derivava do expressivo aumento do comércio da China com a região que ocorreu em seguida à entrada do país na OMC, em 2001, e foi impulsionado pela demanda chinesa por energia e matérias primas necessárias para sustentar seu crescimento econômico. Entre 2000 e 2013, o comércio entre sino-latino-americano aumentou em 22 vezes (CEPAL, 2018, p. 95). Houve também uma ampliação dos investimentos chineses na América Latina, seja por meio de investimento externo direto ou de

empréstimos realizados por seus policy banks, o Banco de Desenvolvimento Chinês e o Banco de Exportações e Importações da China (CEPAL, 2018). Esse processo foi acompanhado de aumento das visitas de alto nível de representantes chineses à América Latina – e em sentido inverso – ampliando os laços políticos e diplomáticos. No período, a China designou quatro países como parceiros estratégicos: Argentina, Brasil, Venezuela e México (LI, 2007).

Como era de se esperar, essa situação foi monitorada de perto e percebida com desconfiança por formuladores de políticas públicas nos EUA. Em 2005, o Senado do país realizou uma audiência sobre o tema intitulada “Desafio ou Oportunidade? O papel da China na América Latina”. A reunião foi presidida pelo Senador Norm Coleman (Republicano; Minnesota), o qual destacou temas como o aumento do comércio e dos investimentos chineses, o reconhecimento da China como economia de mercado, o reconhecimento de Taiwan e visitas de alto nível de representantes chineses à América Latina. O senador também apontou a assimetria dos vínculos chineses, mais fortes em relação à Brasil, Argentina e Venezuela e mais restritos em relação ao México.

Os temas militares também foram destacados por Coleman, que apontou o incremento dos contatos entre os militares, por meio do estabelecimento de programas de intercâmbio entre oficiais militares, visita de militares chineses de alta patente à região e pelo envio de capacetes azuis de origem chinesa ao Haiti, o que consistia na “primeira operação militar no Hemisfério Ocidental com tropas chinesas” (SUBCOMMITTEE ON WESTERN HEMISPHERE; PEACE CORPS AND NARCOTICS AFFAIRS., 2005, p. 2, tradução nossa).

Por outro lado, Coleman se perguntava sobre a existência de oportunidades que poderiam surgir do envolvimento chinês e sobre se os EUA poderiam influenciar a presença da potência asiática na região, tornando-a positiva para seus interesses. Em suas palavras: “Existem formas de engajar a China na América Latina? [...] a China pode atuar de forma construtiva? Existem oportunidades de trabalho conjunto entre os EUA, a China, e a América Latina […]?” (SUBCOMMITTEE ON WESTERN HEMISPHERE; PEACE CORPS AND NARCOTICS AFFAIRS., 2005, p. 3, tradução nossa) A resposta dos representantes do Executivo que participaram da audiência foi positiva.

O vice-secretário de estado assistente para região, Charles Shapiro, declarou que havia temas de complementariedade com a China e que os EUA buscariam cooperar com os chineses, ao mesmo tempo em que continuariam a monitorar a venda de armas e os contatos dos militares chineses com os latino-americanos. As declarações do Vice-Secretário de Defesa Assistente, Roger Pardo-Maurer, foram na mesma direção, destacando que havia áreas nas quais a cooperação era possível e que a China respondia às “sensibilidades” dos EUA no Hemisfério

Ocidental (SUBCOMMITTEE ON WESTERN HEMISPHERE; PEACE CORPS AND NARCOTICS AFFAIRS., 2005, p. 13)

Pardo-Maurer também destacava que a China não era vista como ameaça direta e que o país asiático não buscaria estabelecer presença militar permanente na região ou competir geopoliticamente com os EUA. Destacava, no entanto, os possíveis riscos decorrentes e a necessidade de monitorar as atividades chinesas. O professor da John Hopkins University, David Lampton, afirmou que “não existe competição militar sino-americana na América Latina agora e não existirá no futuro próximo” SUBCOMMITTEE ON WESTERN HEMISPHERE; PEACE CORPS AND NARCOTICS AFFAIRS., 2005, p. 37, tradução nossa).

As declarações dos funcionários dos Departamentos de Defesa e Estado não minimizavam a relevância dos contatos China-América Latina, porém de defendiam a existência de possibilidades de cooperação e maneiras de os EUA exercem sua influência. Os discursos enfatizavam um delicado equilíbrio, entre enfatizar que o governo monitorava a presença chinesa, mas não a tratava como uma ameaça.

No ano seguinte, em 14 de abril de 2006, ocorreu a primeira reunião de um sub-mecanismo de diálogo EUA–China sobre a presença do país asiático na América Latina. O diálogo reunia os representantes do Departamento de Estado e do Ministério das Relações Exteriores do Povo da República da China. O mecanismo foi criado como parte de um Diálogo Estratégico sobre as relações bilaterais China-EUA. Por meio dele, o governo dos EUA buscava conter as tendências competitivas com a potência emergente, abrangendo diversas dimensões da relação.

Com relação a América Latina, a criação do mecanismo visava aumentar a transparência e evitar erros de cálculo (PAZ, 2012). Do ponto de vista chinês, era importante ressaltar suas intenções pacíficas na América Latina e negar a existência de ambições geopolíticas (U. S. DEPARTMENT OF STATE. BUREAU OF WESTERN HEMISPHERE AFFAIRS., 2006). Do ponto de vista dos EUA, era funcional como forma de influenciar a atuação chinesa no Hemisfério Ocidental. Os interlocutores discutiram a possibilidade de projetos conjuntos EUA- China na América Latina (U. S. DEPARTMENT OF STATE. BUREAU OF WESTERN HEMISPHERE AFFAIRS., 2006, 2008).

Assim, naquele momento, a relação China-AL não era percebida pelos formuladores de política estadunidenses como ameaçadora. Os EUA entendiam que poderiam influenciar a China e que a potência buscaria estabilidade regional em razão de seus investimentos regionais. Nesse sentido, Paz destaca que “os Estados Unidos não atraíram a China para o diálogo com a intenção de interromper ou conter todas as iniciativas chinesas na região, mas de moldá-las”

(PAZ, 2012, p. 32, tradução nossa). Nesse sentido, a Revisão Quadrienal da Defesa Nacional de 2006 declarava que:

Além da Europa e da região Ásia-Pacífico, o Oriente Médio, a Ásia Central e a América Latina estão em fluxo constante e representam novas encruzilhadas geoestratégicas. Os Estados Unidos procurarão moldar não apenas as escolhas dos países nessas regiões, mas também as escolhas de potências externas que tenham interesses ou ambições em tais regiões (U. S. DEPARTMENT OF DEFENSE, 2006, p. 28, tradução nossa).

Além da China, os EUA preocupavam-se também com a presença de Rússia e Irã no Hemisfério. Com relação à Rússia, apesar de não existir um mecanismo institucionalizado sobre esse tema, em dezembro de 2008, o governo dos EUA realizou consultas com representantes russos sobre formas de engajamento construtivo na América Latina. De acordo com telegrama do Departamento de Estado, as consultas poderiam ser úteis para o estabelecimento de interesses comuns e como uma forma de encorajar “comportamento responsável” por parte da Rússia (U. S. DEPARTMENT OF STATE, 2009)38.

O representante russo afirmou que o engajamento na América Latina era pragmático e que “os interesses e visões políticas russos e latino-americanos geralmente convergiam, particularmente no que se refere ao compromisso com o multilateralismo” (U.S. DEPARTMENT OF STATE, 2009). Os representantes do Departamento de Estado entendiam que a América Latina não era prioridade para a Rússia e que o país não se esforçaria muito para apoiar tendências antiocidentais na região.

A maior preocupação, no entanto, derivava da venda de armas, que ganhou destaque em 2006 quando a Venezuela anunciou a decisão de comprar caças russos Sukhoi para substituir sua frota de F-16 americanos. Especialmente após 2008, aumentaram os contatos entre os militares, com o oferecimento de intercâmbio e treinamento, e visitas de alto nível de representantes e navios russos à América Latina (CICCARILLO, 2016; ELLIS, 2015).

Por fim, no que se refere ao Irã, deve-se destacar que se trata de um caso específico, uma vez que o país possui capacidades mais limitadas que impactam em seu escopo de atuação na América Latina. O país não exporta sistemas de armas ou oferece treinamento militar na região. Por outro lado, a sua atuação era vista com especial desconfiança pelos representantes dos EUA, uma vez que se relacionava com a suposta presença de células ou apoio ao Hezbollah desde a região. Como ressaltado pelo comandante do SOUTHCOM em 2008: “[O Irã] traz o potencial para atividades do islamismo radical nesse hemisfério [...] precisamos continuar a

38 De acordo com Shannon, essa foi a única reunião com os diplomatas russos para tratar sobre temas latino-

americanos e foram realizadas também reuniões com os japoneses e sul-coreanos (entrevista concedida à autora em 22/02/2019).

engajar pró-ativamente a região e conter influências antiamericanas” (U.S. SOUTHERN COMMAND, 2008).

Tendo em vista esse contexto, cabe perguntar qual era a real dimensão do envolvimento militar chinês e russo na região. Os contatos militares China-América Latina são limitados e não são o principal instrumento usado pela potência asiática em suas relações com a região, sendo o componente econômico predominante (WATSON, 2013). Os dados relativos à transferência de sistemas de armas para a América do Sul no período de 2001 a 2008 oferecem informações interessantes para averiguar essa questão. Percebe-se um aumento das exportações de sistemas de armas chinesas com destino à América do Sul, porém de forma discreta, não se aproximando do volume de armas exportados pelo conjunto dos países que formam a OTAN39.

Por outro lado, percebe-se que a Rússia se tornou um ator importante nesse tema, especialmente a partir de 2005 (Gráfico 7).

Essa situação, no entanto, está fortemente concentrada na venda dos já mencionados caças para a Venezuela. De acordo com a base de dados do SIPRI40, entre os países sul-

americanos, a Rússia exportou sistemas de armas para Colômbia, Equador, Uruguai, Peru, porém em escala reduzida. Quando se compara os dados referentes às importações de armas russas pelas maiores economias sul-americanas, a concentração das exportações no país caribenho torna-se evidente (Gráfico 8). A Colômbia importava armas especialmente dos EUA e a Argentina e o Brasil tinham um rol de fornecedores mais diversificado, buscando parcerias especialmente com países da Europa.

39 A análise feita aqui não deve ser entendida como significando que as importações de armas de aliados da OTAN

não são vistas como problemáticas pelos EUA. Ao contrário, a potência frustra-se quando os países da região escolhem pela compra de armas europeias, uma vez que isso dificulta a padronização dos sistemas de armas hemisféricos e representa perdas a sua indústria bélica. Contudo, a importação de armas da de países da OTAN é vista com menos alarme do que a importação de armas chinesas ou russas.

40 O Sipri é um instituto independente de pesquisa, criado em 1996, com sede em Estocolmo. O organismo

0 200 400 600 800 1000 1200 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Gráfico 7: Importação de sistemas de armas pelos países