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A Escola da Autonomia: Juan Carlos Puig, Hélio Jaguaribe e seus críticos

Capítulo 1 Assimetria, Subordinação e Autonomia nas Relações Internacionais

1.3 A Escola da Autonomia: Juan Carlos Puig, Hélio Jaguaribe e seus críticos

Ao contrário do mainstream da disciplina, os estudos de Relações Internacionais latino- americanos desenvolveram-se historicamente tendo como foco a assimetria do sistema internacional, entendendo-o como hierárquico, e tendo como preocupação central a possibilidade de exercício de autonomia por parte dos países débeis. Nessa concepção, a autonomia é entendida como a “habilidade dos Estados para tomar decisões sem seguir os desejos, preferências ou ordens outros estados” (RUSSELL; TOKATLIAN, 2001, p. 86, tradução livre) ou, como definido por Puig (1984, p. 44, tradução livre) “autonomizar significa ampliar a margem de decisão própria e normalmente implica, portanto, recortar a margem que disputa algum outro”.

A busca de autonomia foi defendida como estratégia de Política Exterior para os países da região pelo sociólogo brasileiro Hélio Jaguaribe e pelo jurista e ex-chanceler argentino Juan Carlos Puig. Jaguaribe (1979) descreve o sistema internacional como sendo estratificado em quatro níveis. O primeiro nível corresponde à primazia geral, e refere-se ao lugar ocupado pelos Estados com preponderância generalizada, rivalizada apenas em algumas regiões por potências menores. O segundo nível refere-se à primazia regional, caracterizada por Estados com condições de garantir sua inviolabilidade territorial e preponderância em certas áreas. O terceiro nível compreende os Estados em condição de autonomia, caracterizada pela autodeterminação interna, capacidade de impor perda aos possíveis agressores e de atuar no plano internacional de forma independente. Por fim, o quarto nível refere-se à dependência, caracterizada por Estados formalmente soberanos, mas cujo destino depende de decisões tomadas externamente. Essa situação dividia as Relações Internacionais em duas dimensões, a das relações entre potências, caracterizadas por cooperação e conflito, e as relações entre centro e periferia, marcadas por assimetria estrutural (JAGUARIBE, 1979).

A estratificação, na concepção de Jaguaribe (1979), é dinâmica, sendo que estados dependentes podem chegar a um nível de autonomia, que não é garantida no longo prazo. A ascensão à posição de autonomia deriva da viabilidade nacional e da permissibilidade internacional. A viabilidade nacional é determinada pela disponibilidade de recursos humanos, tecnológicos e naturais, que são resultantes da integração sociopolítica nacional e do nível educacional. Já a permissibilidade internacional refere-se à combinação entre o posicionamento geopolítico e a capacidade de neutralizar ameaças vindas de fora, que envolve a construção de alianças defensivas e desenvolvimento industrial (JAGUARIBE, 1979).

A autonomia também compreende capacidade técnico-empresarial ou relações positivas e especiais com as potências principais. Contudo, a formação de relações especiais como o centro, como as que possuem a Nova Zelândia, Canadá e Austrália são específicas e particulares. As relações especiais derivam de condições históricas e da relativa homogeneidade ético-cultural entre tais países (JAGUARIBE, 1979). Tais relações também são influenciadas por condições geopolíticas próprias, que levam à formação de alianças como uma maneira de contenção às potências rivais. No caso da América Latina, as relações especiais com o centro são dificultadas pela existência de discriminação étnico-racial, que torna a sua consolidação pouco provável. Além disso, a manutenção de uma estrutura assimétrica é funcional ao centro, garantindo privilégios. Na concepção de Jaguaribe, os países da região devem desenvolver capacidade técnico-empresarial, o que envolve uma aliança desenvolvimentista e políticas econômicas protecionistas, com o objetivo de formar indústrias autônomas6 (JAGUARIBE,

1979).

Puig (1984) também entende o sistema internacional como estratificado. O autor distingue três camadas: os repartidores supremos, que formulam as regras mais gerais e de maior hierarquia, os repartidores intermediários, que formulam regras em áreas e temas limitados e apresentam demandas dos mais fracos, e os recipiendários, que estão sujeitos e obedecem às regras formuladas pelos mais fortes. Nesse sentido, Puig (1984) caracteriza o sistema internacional como estratificado e hierárquico. Contudo, argumenta que a assimetria internacional não corresponde de forma automática à situação de dependência.

6 Escudé (1995) compreende que poderiam ser formadas relações especiais entre os países da América Latina e

os EUA, semelhante às existentes entre a potência e a Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Contudo, as condições geopolíticas e históricas entre tais regiões e a América Latina atribui especificidade às relações hemisféricas. A América Latina não é uma região de disputa entre potências, tendo se constituído desde o princípio como área de influência dos EUA. Como ressaltado por Jaguaribe (1979), as relações especiais entre os EUA e os países anglófonos citados são específicas, não se tratando de modelos para os países latino- americanos.

Em sua concepção existem quatro formas a partir das quais os Estados periféricos podem posicionar-se frente às grandes potências, ampliando ou diminuindo graus de autonomia. A primeira é a dependência para colonial, situação na qual as elites nacionais são apêndices do centro e agem como intermediárias das potências dominantes. Nesse caso, a soberania é apenas formal. A segunda possibilidade é a dependência nacional, que se refere a uma situação na qual a dependência é aceita, porém racionalizada, há um projeto nacional cujo objetivo é tirar o máximo proveito da situação dependente. A terceira possibilidade refere-se à autonomia heterodoxa, que envolve a aceitação da condução estratégica da potência em termos de segurança e no que se refere a seus interesses gerais, com distanciamento em três pontos: estratégia de desenvolvimento, vinculações internacionais e diferenciação entre interesses estratégicos do bloco e da potência dominante. Trata-se de uma estratégia na qual os países subordinados apenas aceitam a condução da potência em temas mais relevantes para aquelas, perseguindo interesses nacionais próprios em outros temas, especialmente econômicos. Por fim, a última possibilidade é a autonomia secessionista, que se refere a uma posição de desafio global à potência dominante, inclusive em temas que dizem respeito a seu interesse vital. Puig (1984) defende a autonomia heterodoxa como estratégia de política exterior.

Especialmente a partir dos anos 1990, quando os países da América Latina se aproximavam dos Estados Unidos, as visões de Puig (1984) e Jaguaribe (1979), foram fortemente contestadas na região. Em artigo de 2001, Russell e Tokatlian argumentaram sobre a necessidade de mudanças na concepção de autonomia a partir das transformações desencadeadas pelo fim da Guerra Fria e pela globalização econômica. Em sua perspectiva, a concepção de autonomia como ampliação da margem de decisão própria tornava-se anacrônica em razão da redemocratização latino-americana, do aumento dos fluxos econômicos internacionais e da liberalização econômica em escala mundial. Os autores argumentavam que a busca de autonomia não deveria enfatizar políticas de isolamento, autossuficiência ou oposição. A autonomia deveria ser concebida como relacional, praticada pela inserção dos países latino-americanos em um conjunto de princípios e em um arranjo de governança internacional. Portanto, haveria possibilidades de buscar autonomia e convergir com os Estados Unidos. Em sua visão, a redemocratização favorecia a autonomia relacional e recomendava cessão de parcelas soberania através da participação nos regimes internacionais (RUSSELL; TOKATLIAN, 2001).

Os autores definem a autonomia relacional como a “capacidade e disposição dos estados para tomar decisões por vontade própria com outros e para controlar conjuntamente processos que se produzem dentro e além de suas fronteiras” (RUSSELL, TOKATLIAN, 2001, p. 88).

Portanto, propõe que a governança deve ser compartilhada, admitindo a influência do contexto internacional na ordem jurídica interna, a aquiescência com relação a ordem mundial e a adoção de princípios apresentados pelas potências como universais.

Assim, entendemos que a proposição de Russell e de Tokatlian (2001) não se afasta do clientelismo, já que os autores sugerem uma forma de governança compartilhada com o centro. Tais autores entendem que o contexto pós-Guerra Fria seria mais favorável aos países periféricos, especialmente pela existência de organismos internacionais, o que abriria margem para que suas posições fossem consideradas. Contudo, é importante pontuar que a busca de clientes na Política Exterior dos EUA não foi uma exclusividade da Guerra Fria, mas uma postura contínua, que antecede e sucede aquele período (SYLVAN; MAJESKI, 2009). Além disso, a existência de instituições não muda a situação de intensa assimetria internacional e, de forma geral, as potências conseguem projetar seus interesses nas instituições. Quando isso não ocorre, contudo, tendem a agir fora do arcabouço institucional, de forma unilateral ou recorrendo ao bilateralismo.

Escudé (1995) critica a noção de autonomia como desenvolvida por Puig e Jaguaribe de forma mais densa. O autor argumenta que escolher fortalecer os laços com os países mais fortes e dominantes é uma forma de exercer autonomia enquanto liberdade de ação e alerta para os custos de usar a liberdade de manobra de forma quase ilimitada. De acordo com o autor, existem situações de consumo da autonomia, nas quais há uso exibicionista da liberdade de ação, que gera confrontação, perda de credibilidade, e de poder brando no nível internacional. Em outros casos há investimento de autonomia, no qual o uso da liberdade de ação é destinado ao desenvolvimento. Nesse caso, também pode haver confrontação com as potências, contudo são gerados ganhos materiais ou evitadas perdas.

Em sua concepção, a acumulação de riquezas é mais importante para os países periféricos que a acumulação de poder militar e o interesse nacional não pode ser desconectado do crescimento econômico. A forma de um país débil se fortalecer é o modelo japonês, alemão ou australiano, que possuem um perfil de política exterior discreto, e priorizam o comércio. O alinhamento em termos militares pode melhorar a forma como o Estado é visto internacionalmente e atrair investimentos dos países centrais. Para o autor, as políticas autonomistas e de distanciamento ao centro eram levadas a cabo por governantes e elites que não levavam em conta os interesses dos cidadãos, cujo bem-estar seria afetado pelas sanções.

Escudé (1995) adere ao realismo em sua concepção de que os governantes devem ser prudentes e atuar a favor dos incentivos sistêmicos, ao contrário de tentar resistir a eles. Assim, entende que uma política exterior racional maximiza benefícios e minimiza custos, então, é

eficiente e prudente. O autor reafirma o realismo político argumentando que as políticas adotadas não devem partir de princípios morais, pois o governante não pode sacrificar os cidadãos em nome de valores, a ética política é julgada pelas consequências das ações.

Escudé (1992, p. 44, tradução livre) propõe um paradigma de Política Exterior, o Realismo Periférico, argumentando que “um país periférico, vulnerável e pouco relevante para os interesses vitais dos países centrais” deve eliminar as confrontações com as grandes potências, limitando-as a situações nas quais interesses materiais dos cidadãos estejam em jogo e sempre agindo de forma prudente, calculando os benefícios e considerando tanto os custos prováveis, quanto os riscos potenciais.

Entende-se aqui que os argumentos de Escudé (1992;1995) têm limites ao argumentar que uma política exterior focada nos cidadãos seria 1) baseada unicamente na busca de ganhos materiais e no crescimento da economia nacional e 2) que tal situação contribuiria para o aumento do bem-estar da população. Embora o autor advogue por uma estratégia internacional com foco no cidadão, não há espaço em seu pensamento para que os próprios cidadãos apresentem ou elejam outras estratégias internacionais além do realismo periférico. O crescimento econômico não é necessariamente o único interesse dos cidadãos. A manutenção de uma identidade coletiva – de uma cultura e de tradições autóctones – são também objetivos legítimos, que podem tonar-se base de uma política de confrontação com o centro apoiada por uma parte importante da população.

Nesse sentido, Aron (1985) aponta que a sobrevivência das coletividades pode ter dois sentidos: a sobrevivências dos indivíduos ou a defesa de uma cultura, de tradições e de um modo de organização social. Adaptar-se ao centro pode significar o desaparecimento da cultura local. A escolha é uma decisão moral e a preferência antecipada e definitiva pela subordinação seria uma forma de dissolver a nação por dentro (ARON, 1985, p. 482). Portanto, não se trata de uma decisão técnica e não caberia a um governo fazê-lo sem discussão e respaldo popular.

No que se refere aos benefícios materiais de uma política de evitar conflitos e alinhamento, Escudé cita o caso empírico do Brasil na Segunda Guerra como exemplo de benefícios obtidos pelo alinhamento com os Estados Unidos. Segundo o autor:

O caso exitoso do alinhamento do Brasil com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial é a antítese direta das custosas negativas da Argentina [...] já que gerou benefícios econômicos e políticos substantivos, que incluíram o forte apoio norte-americano ao desenvolvimento da indústria siderúrgica brasileira, um acesso privilegiado a recursos petrolíferos que em um tempo de guerra eram muito escassos e preços muito generosos para as exportações brasileiras de café (ESCUDÉ, 1995, p. 157)

Entretanto, houve uma política de barganha, de oscilação entre os Estados Unidos e Alemanha, antes do alinhamento brasileiro: os benefícios não foram decorrentes do alinhamento automático, mas da possibilidade de que o país se aliasse com o inimigo e das necessidades estratégicas dos Estados Unidos na conjuntura em questão. Alas militares brasileiras simpatizavam com o nazi-fascismo e a instalação de bases norte-americanas no país apenas foi concedida após o financiamento estadunidense à Companhia Siderúrgica Nacional ser garantido (MONIZ BANDEIRA, 2010, p. 201). Além disso, em outros períodos mais rotineiros para a potência, as relações especiais não geraram benefícios ao Brasil, ao mesmo tempo que uma estrutura econômica frágil era reproduzida. Nesse contexto, o elemento mais relevante no período citado por Escudé (1995) era o contexto geopolítico: o acesso ao território brasileiro importava durante a guerra e foi esse o fator determinante nas decisões dos EUA.

As proposições normativas de Escudé (1995) são contrastantes daquelas apresentadas por Ayoob (2002), quem busca construir uma perspectiva teórica baseada em um “realismo subalterno”. O autor tem como base empírica os processos de descolonização africanos e asiáticos dos anos 1950 e 1960 e constata que tais Estados recém-independentes buscam replicar a trajetória europeia em um contexto modificado e marcado por importantes pressões externas. A formação estatal periférica é marcada pela intervenção externa: as fronteiras foram definidas de fora e a soberania jurídica precedeu a imposição da ordem interna. Esses contextos são permeados pela violência própria da formação estatal, mas convivem com intervenções de potências com agendas e interesses particulares, que dificultam a consolidação da ordem política interna.

Ayoob (2002) destaca as diferenças dos Estados nacionais no centro e na periferia, ressaltando a preocupação principal com ameaças internas e a dependência econômica dos Estados subalternos. Em sua perspectiva, a assimetria significa impossibilidade de ganhos de longo prazo decorrentes da cooperação Norte-Sul. Ayoob (2002) argumenta que, embora haja repasse de recursos materiais ao Terceiro Mundo, através de bancos de financiamento, assistência militar e ao desenvolvimento, tais transferências têm custos importantes, pois levam à liberalização econômica precoce, desindustrialização e ajustes econômicos estruturais com consequências negativas do ponto de vista social. Esse autor propõe uma estratégia de busca de aproximação com o modelo do Estado westfaliano – forte, eficiente e legítimo – como forma de garantir desenvolvimento (AYOOB, 2002).

Admitindo que o caminho para os países periféricos é buscar a ampliação de autonomia no sistema internacional e o fortalecimento da economia nacional, há que se perguntar sobre as possibilidades de que isso ocorra. Considerando que o exercício do domínio não é apenas

político, mas também econômico, analisamos a seguir contribuições da Economia Política Internacional, através das análises da economia-mundo e dos subsídios da teoria da dependência.