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Política Exterior e relações com os EUA no governo Dilma Rousseff

Gráfico 7: Importação de sistemas de armas pelos países da América do Sul

Capítulo 4: As relações Brasil-EUA durante os governos do PT (2003-2016): autonomia heterodoxa e resignação

4.4 Política Exterior e relações com os EUA no governo Dilma Rousseff

Em Política Exterior, o governo Dilma Rousseff promoveu ajustes em comparação ao seu antecessor, tendo em vista a menor priorização do tema. Apesar disso, as orientações mais gerais permaneceram as mesmas, continuando a haver atenção especial à América do Sul e ao mundo em desenvolvimento. Contudo, de acordo com Lessa e Cervo (2014, p. 134), a percepção de ascensão internacional, que marcara o governo Lula, cedeu lugar a uma percepção de declínio, com “continuidade lerda e obstruída às estratégias externas da fase anterior” (CERVO; LESSA, 2014, p.134). O período foi marcado pela tendência de “redução do ativismo internacional do Brasil” (SARAIVA, 2014, p. 25).

Esse processo, no entanto, ocorreu com matizes e foi gradual. Desiderá Neto (2019) considera que a política exterior de Rousseff foi marcada por “continuidade com redução progressiva do ativismo”. As mudanças decorreram do perfil e das prioridades da presidente, mas principalmente das maiores dificuldades no plano econômico e, a partir de 2013, da instabilidade política interna, que resultaram na fragmentação da coalizão política. No plano internacional, o período foi marcado por aumento das tensões entre as grandes potências, o que dificultava a estratégia de manter relações importantes e cordiais com potências estabelecidas e emergentes. Como pontuado por Mares e Trinkunas (2016, p. 76, tradução própria) tratou-se de um período marcado por “constrangimentos emergentes e capacidades decrescentes”.

Dito isso, cabe ressaltar que os primeiros anos do governo Rousseff foi marcado pela continuidade de posturas assertivas no campo da segurança internacional e por propostas de revisão de normas internacionais. O exemplo mais marcante foi a proposição brasileira do conceito de responsabilidade ao proteger – em complemento à responsabilidade de proteger. O termo foi usado pela primeira vez durante discurso da presidente brasileira na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2011. Em novembro do mesmo ano, um documento de trabalho desenvolvendo a ideia foi apresentado pela diplomacia brasileira à ONU. O documento reconhecia que algumas intervenções humanitárias agravam conflitos, propunha que o uso da força deveria ser o último recurso utilizado em situações de crise humanitária e, quando aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU, deveria ser limitado e monitorado66 (VIOTTI,

2011). O conceito, no entanto, teve pouca ressonância política: não foi amparado pelas potências permanentes do Conselho de Segurança e, entre os BRICS, apenas a África do Sul apoiou a iniciativa. Assim, a diplomacia brasileira frustrou-se com a falta de adesão e não insistiu com a promoção do conceito, que acabou por perder relevância (MARES; TRINKUNAS, 2016).

Apesar de manutenção da postura revisionista das instituições internacionais e da importância atribuída às relações com os outros países do BRICS, o governo Rousseff buscou reaproximação com os EUA. O objetivo era reverter o afastamento gerado pela crise relacionada à assinatura do acordo Irã-Turquia-Brasil sobre proliferação nuclear. Nos primeiros

66 O momento de proposição do conceito – segundo semestre de 2011 – é bastante relevante para entender a

completude de seu significado. Em março daquele ano, uma colisão de países ocidentais autorizada por resolução da ONU havia realizado uma intervenção na Líbia com o objetivo de conter a violência que acometia o país. A intervenção, no entanto, foi fortemente criticada por ter promovido mudança de regime e pela existência de condicionantes geopolíticos que influenciaram o decorrer das ações. O conceito desenvolvido pela diplomacia brasileira era, de certa forma, uma resposta a esse contexto. O documento apresentado à ONU afirmava que “existe uma percepção crescente de que o conceito de responsabilidade de proteger pode ser utilizado com intenções diferentes da de proteção da população civil, como são as mudanças de regime” (VIOTTI, 2011, tradução própria).

anos do governo Rousseff, o Brasil adotou uma postura mais crítica ao Irã, inclusive em relação à situação interna de direitos humanos. Em 2011, a diplomacia brasileira apoiou resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU que instaurava um relator para analisar as violações de direitos no país persa (DESIDERÁ NETO, 2019)67.

Pecequilo (2014) define a busca de aproximação aos EUA como um “ajuste técnico”, decorrente de críticas internas sobre a política exterior brasileira, destacando que no período eleitoral houve significativa discussão sobre a aproximação brasileira com regimes não democráticos, especialmente no Oriente Médio. De acordo com a autora, a busca de reaproximação com a potência hegemônica foi um movimento ambíguo, uma vez que a política exterior continuava orientada pela busca de autonomia e negava-se a subordinar-se aos EUA. Assim, o período Rousseff-Obama foi permeado pela continuidade de perspectivas estratégicas divergentes, o que significava relações amistosas, porém com importantes pontos de desacordo (ESPACH, 2016).

A busca de acomodação com os EUA foi uma característica perene dos governos do PT, que buscavam contemporizar o reformismo e a busca de protagonismo internacional com relações amistosas com a potência. Essa estratégia não era livre de contradições e por vezes gerava dificuldades bilaterais. Assim como durante o governo Lula, as relações Brasil-EUA foram pautadas por ambivalência durante o governo Rousseff, existindo momentos de maior afastamento e outros de busca de acomodação.

Dois relatórios produzidos pelo Serviço de Pesquisas do Congresso (CRS, na sigla em inglês) dos EUA descrevem de forma semelhante as relações bilaterais, como permeadas por cooperação e desentendimentos. O primeiro foi publicado em meados do primeiro mandato de Rousseff, em 2013, e o segundo em meio ao processo de impeachment, que removeu a presidente do poder em maio de 2016:

Embora o Brasil e os Estados Unidos compartilhem uma série de objetivos comuns, a existência de temas de interesse nacional divergentes e de políticas exteriores independentes levaram a desacordos em temas comerciais e políticos. Algumas disputas de longa duração incluem as negociações comerciais de Doha e a oposição brasileira aos subsídios ao algodão dos EUA. Diferenças adicionais surgiram nos últimos anos, muitas das quais se concentraram nas abordagens de política externa dos países. Em 2010 e 2011, por exemplo, o Brasil fez uso de seu assento temporário no Conselho de Segurança na ONU para defender o diálogo com regimes isolados internacionalmente, como o Irã, a Líbia e a Síria, em detrimento da imposição de sanções, as quais são vistas pelo país como o princípio de conflitos. Alguns analistas e formuladores de políticas afirmam que a crescente proeminência e envolvimento global do Brasil em diversos temas inevitavelmente levará a disputas com os Estados

67Segundo reportagem do jornal O Globo, o voto brasileiro atendeu a pedido explícito de Obama:

https://oglobo.globo.com/mundo/voto-do-brasil-sobre-ira-no-conselho-de-direitos-humanos-da-onu-atendeu- pedido-de-obama-2806495

Unidos e que gerenciá-las de maneira transparente e respeitosa será crucial para manter as relações amigáveis no futuro. Embora a cooperação entre Brasil e EUA em questões de segurança seja tradicionalmente limitada, os laços entre agências policiais e entre os militares aumentaram nos últimos anos. As áreas de coordenação incluem combate ao narcotráfico, contraterrorismo e defesa (MEYER, 2013, tradução própria). Os Estados Unidos e o Brasil têm tradicionalmente desfrutado de relações políticas e econômicas vigorosas. Os países têm pelo menos 20 diálogos bilaterais ativos, que servem como veículos para a coordenação de políticas em questões de interesse mútuo, incluindo comércio, energia, segurança, igualdade racial e meio ambiente. Os Estados Unidos e o Brasil também têm buscado maior envolvimento mútuo em questões internacionais, uma vez que o Brasil tem procurado desempenhar um papel proeminente em assuntos globais. De acordo com o governo Obama, o Brasil é um “grande player global” e um “parceiro indispensável” em questões que vão desde o desenvolvimento internacional até a mudança climática. No entanto, em certos momentos, os vínculos bilaterais têm sido tensos, pois temas de interesse nacional e as políticas externas independentes dos dois países ocasionalmente levaram a desentendimentos. Nos últimos anos, por exemplo, as autoridades americanas ficaram desapontadas com a oposição do Brasil aos esforços internacionais para isolar diplomaticamente a Rússia depois de anexar a Crimeia e sua relutância em criticar abertamente os esforços do governo venezuelano para suprimir a dissidência política. Embora o Brasil não apoie as ações dos governos russo e venezuelano, sua aversão às sanções e preferência pelo diálogo levou-o a abordar as questões de maneira muito diferente dos Estados Unidos […] (MEYER, 2016, tradução própria)

As passagens mostram que, apesar das mudanças de conjuntura ao longo dos cinco anos de governo Rousseff, a estrutura das relações bilaterais era marcada pela existência de divergências e pela vontade política de contorná-las, com o objetivo de manter relações amistosas. Inicialmente, havia interesse das presidências na retomada da cooperação após as dificuldades de 2010, o que foi celebrado com a visita de Barack Obama à Brasília em 2011. Na ocasião, Obama reconheceu o Brasil como um país emergente, afirmando que cada vez mais o país tornava-se um ator global (OBAMA, 2011). Em comunicado conjunto, o presidente estadunidense declarou “apreço” à aspiração brasileira por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU (ROUSSEFF; OBAMA, 2011). Ademais, foram firmados acordos para aumentar a cooperação econômica, na área de energia e acordou-se a trocas de experiência sobre atividades de preparação para grandes eventos internacionais. Assim, os EUA firmaram- se como uma contraparte importante para apoiar a organização logística – e o aparato de segurança – da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 (THE WHITE HOUSE, 2011).

Também acordaram aumentar a cooperação nas áreas de Educação, Ciência e Tecnologia, incluindo o aumento do intercâmbio de estudantes. Durante o governo Rousseff, havia interesse brasileiro em aprofundar a cooperação com os Estados Unidos em tais áreas, as quais eram vistas como significativas para promover o desenvolvimento nacional. No ano seguinte, 2012, Rousseff visitou a Casa Branca. Na ocasião, foi novamente enfatizada a

cooperação em educação, que aumentava com o intercâmbios através do programa Ciências sem Fronteiras68, financiado pelo governo brasileiro (ROUSSEFF; OBAMA, 2012).

As diferenças entre ambos os países, no entanto, persistiam. No plano econômico, durante o encontro de 2012, Rousseff criticou a política monetária do país do Norte. Além disso, a busca de aproximação teve reveses importantes nos anos seguintes. Em 2013, a divulgação de que um órgão estadunidense de inteligência – a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) – conduzia atividades de espionagem ao Palácio do Planalto e à Petrobras perturbou as relações bilaterais. Como resposta, Rousseff exigiu um pedido de desculpas por parte dos Estados Unidos, que não foi concedido, e cancelou a viagem de Estado que havia programado àquele país. O resultado foi um congelamento das relações bilaterais em alto nível.

Como em outros momentos, as tensões foram seguidas de busca de recomposição. Houve sinais de melhora quando os EUA apoiaram a proposta brasileira de colocar a gestão multilateral da internet em pauta, a partir do evento NETMundial, realizado em São Paulo em abril de 2014 (MARES; TRINKUNAS, 2016). Além disso, a cooperação em temas mais técnicos persistia, inclusive as relações entre os militares, os intercâmbios acadêmicos e as articulações referentes à preparação para a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016. Em 2015, no primeiro ano de seu segundo mandato, Rousseff realizou uma visita de trabalho aos EUA, o que representou a retomada das relações bilaterais em mais alto nível. Na ocasião, Rousseff declarou que as tensões bilaterais de 2013 haviam sido superadas (HARRIS, 2015). Nesse momento, no entanto, a situação brasileira já era bastante diferente dos anos anteriores, pois a economia nacional estava se deteriorando e a percepção de ascensão cedia lugar a noção de declínio. Ao mesmo tempo, as denúncias de corrupção avançavam no Brasil, implicando parcela relevante das empresas nacionais que haviam se internacionalizado no século XXI. Portanto, quando Rousseff foi a Washington em 2015, a posição brasileira era de maior fragilidade em comparação aos encontros anteriores com Obama.

De modo geral, a estratégia brasileira em relação à maior potência mundial durante o governo Rousseff também pode ser definida como autonomia heterodoxa, sendo que o Brasil seguia uma orientação independente e visão de mundo divergente da estadunidense, porém havia busca de acomodação com a potência – tanto nos momentos de ascensão quanto de maior debilidade. A diminuição do engajamento brasileiro no Oriente Médio e das relações em alto nível com o Irã foram pontos nos quais o Brasil buscou maior acomodação aos EUA, sendo

68 O Ciências sem Fronteiras foi um programa do Ministério da Educação vigente entre 2011 e 2017 que concedeu