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2 REFLEXÃO, DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL/MUDANÇAS E AUTONOMIA: AS ABORDAGENS TEÓRICAS QUE AMPARAM O ESTUDO

2.3 Autonomia: elaboração em um contexto de relações

A autonomia que o professor alcança durante o seu percurso de formação e trabalho, pautada numa atitude reflexiva sobre sua prática, o conduz a mudanças, tanto conceptuais, como nas suas ações perante o enfrentamento de situações cotidianas. Dessa maneira, a reflexão e a autoavaliação profissional apontam para o professor as necessidades de adaptar-se ao contexto que vivencia e implementar mudanças na prática docente.

A recorrência do tema autonomia de professores tornou-se slogan nos discursos pedagógicos, o que, pela constante utilização, provoca o desgaste do termo e o esvaziamento do seu significado (CONTRERAS, 2002). De acordo com este autor, os slogans são expressos como termos positivos, de efeito, utilizados muitas vezes de forma obscura, sem revelar o significado, o sentido atribuído a eles. É nesta perspectiva que se configura como um recurso que pode ser usado por quem tem poder para legitimar o seu ponto de vista sem discuti-lo.

Contreras (2002) se propõe discutir a expressão autonomia de professor indicando os diversos significados que pode expressar com apoio em diferentes concepções de educação e de professores. Para o autor, a autonomia está diretamente relacionada ao contexto trabalhista, institucional e social em que os professores realizam as atividades docentes.

Uma particularidade importante da autonomia é que, na medida em se refere a uma forma de ser e estar de professores em relação ao mundo em que vive e atua como profissional, esta nos remete necessariamente tanto a problemas políticos como educativos [...] A importância do tema provém, portanto, de que, ao falar da autonomia do professor, estamos falando também de sua relação com a sociedade e, por conseguinte, do papel da mesma com respeito à educação. (P. 25).

Infelizmente, ainda é bastante evidente o fato de que as concepções das políticas públicas educacionais não priorizam diálogos com os professores, que não são os protagonistas dessa empreitada, mas serão os que devem obedecer às determinações do que fica estabelecido na legislação e nas proposições oficiais, que atendem prioritariamente a interesses políticos das específicas gestões governamentais. Com a ausência da voz desses sujeitos, que não têm oportunidade de ver contempladas nas reformas suas aspirações, necessidades e expectativas, as propostas educacionais se reduzem a questões menores e deixam de abordar valores fundamentais para a educação do ser humano, pois é esse

profissional que se encontra no ambiente escolar, que conhece a realidade social com a qual precisa lidar diariamente.

Contreras (2002) defende a autonomia profissional como uma qualidade do ofício docente e chama a atenção para o estado em que a atividade docente é transformada, perdendo qualidades que levaram os professores “à perda de controle e sentido sobre o próprio trabalho, ou seja, à perda de autonomia” (p. 33); a isto o autor denomina proletarização dos professores. Sua tese é de que “os docentes, enquanto categoria, sofreram ou estão sofrendo uma transformação, tanto nas características de suas condições de trabalho como nas tarefas que realizam, que os aproxima cada vez mais das condições e interesses da classe operária”. (P. 33).

Esta perda de autonomia no trabalho do professor implica também uma perda humana em si, pois a proletarização do ensino, de acordo com esse autor, enfraquece a concepção de trabalho, na medida em que

[...] supõe realizar uma tarefa reduzida ao segmento de prescrições externas, perden do o significado do que se faz e as capacidades que permitiam um trabalho

integrado, com uma visão de conjunto e decisão sobre seu cotidiano. A desqualificação, a rotina, o controle burocrático, a dependência de um conhecimento alheio legitimado e a intensificação conduzem à perda de autonomia, perda que é em si mesma um processo de desumanização no trabalho. (CONTRERAS, 2002, p. 194).

Com a burocratização e o controle externo das tarefas docentes, o professor se distanciou de uma atuação mais autônoma, não tendo a oportunidade de refletir e discutir juntamente com outros profissionais a elaboração do currículo, o que também favoreceu a rotinização do trabalho, tornando-se cada vez mais técnicos, desqualificados e reprodutores de ideias e conteúdos desconexos. Além disso, ante o contexto social e dos problemas que chegam à escola, os professores ainda começaram a assumir outras funções, provocando uma sensação ainda maior de desprofissionalização e perda da identidade profissional.

Ferreira (2009) enfatiza a ideia de que o contexto permanente de reformas educativas, que envolve as escolas e os professores, difunde a ideia de que as mudanças na educação e na escola são exteriores ao docente e que a este compete apenas um papel secundário, executando o que foi decidido e agora está expresso. Contreras (2002) argumenta que no sistema educacional e social existe uma dissociação entre os espaços de argumentação e os processos de execução.

Além disso, Ferreira (2009) registra a disseminação da ideia de que essas mudanças estão principalmente relacionadas à gestão, suscitando que são “fenômenos da exclusiva responsabilidade dos “administradores” e “gestores”, em relação aos quais os

professores que trabalham cotidianamente com os alunos são, ou sentem-se, alheios”. (2009, p. 207). A autora indica, neste sentido, que essas mudanças afastam os docentes de práticas reflexivas e autônomas:

O ambiente de reforma permanente em que as escolas tem estado mergulhadas tem sido, assim, mais favorável à emergência de um pensamento fatalista e resignado do que à acção autônoma e reflexiva. A retórica da eficiência, da eficácia, da qualidade, da excelência, etc., é sobremaneira apelativa, criando nas escolas e entre os professores uma “azáfama de mudança”, mas não lhes deixando tempo para a reflexão sobre o que é necessário realmente mudar. (FERREIRA, 2009, p. 208). Contreras (2002) questiona que, no momento em que os professores são excluídos da concepção de educação e decisão na escola, ou mesmo quando têm sua competência limitada para certas questões, a eles é impedido o exercício da participação social, ficando à margem do debate no qual são os protagonistas mais próximos. De acordo com o autor, uma relação assim estabelecida “só estimula a obediência, ou ao contrário, o engodo e a desobediência, mas dificilmente a autonomia, compreendida como busca de compreensão, de livre interpretação responsável dos diferentes interesses sociais, pedagogicamente considerados”. (2002, p. 219).

A formação deveria dotar os professores de instrumentos ideológicos e intelectuais para que pudessem compreender e interpretar a complexidade do contexto escolar, das realidades sociais vivenciadas por seus alunos e do cotidiano da sala de aula, onde se revelam diversas situações e problemas com quais precisam lidar, enfrentar e resolver.

Esse autor argumenta que a autonomia profissional é um direito trabalhista e também uma necessidade educativa, pois à relação entre autonomia e profissionalidade está atrelada uma exigência por condições trabalhistas dignas e por práticas de ensino desenvolvidas com valores educacionais (responsabilidade, ética, organização etc.) que deveriam ser indiscutíveis na profissão de docente.

Com autonomia profissional, desde uma reflexão sistematizada sobre sua prática, o professor tem condições de buscar os elementos que acha convenientes para sua formação e trabalho, de forma a articular teoria e prática na produção de saberes necessários ao seu fazer pedagógico. A autonomia é uma competência adquirida, em conformidade com outras competências docentes, para a busca de subsídios necessários à sua profissionalização e atuação.

Na reflexão de Contreras (2002), a autonomia se desenvolve em um contexto de relações, de conexão entre pessoas, baseado na colaboração e no entendimento. A isto precede “uma busca e um aprendizado contínuos, uma abertura à compreensão e à reconstrução

contínua da própria identidade profissional”. (P. 199). Para o autor, “é nessa forma de entender o exercício profissional que se baseia o desejo de autonomia de todos os envolvidos, e de cooperação (ou ao menos do entendimento mútuo), como qualidades que se buscam nas formas de interação social e de intervenção profissional”. (P. 199).

Concordando com o pensamento de Giroux, Contreras (2002) aponta o ensino como atividade que demanda a reflexão autônoma e a elaboração de pensamento próprio, por intermédio do qual os docentes devem se desenvolver como intelectuais, comprometidos em ensejar possibilidades educativas no ensino e críticos às limitações encontradas no desenvolvimento de seu trabalho.

Quando o professor se reconhece como sujeito de sua formação, numa perspectiva contínua, e reflete sobre sua ação, mostrando-se consciente da importância do seu papel social e das implicações que o ensino e a aprendizagem proporcionam na vida e na formação das pessoas, ele passa a agir com maior autonomia; demonstra iniciativa para buscar os saberes e os conhecimentos necessários ao exercício da profissão, pensando e repensando suas práticas pedagógicas.

Popkewitz (1995) chama atenção para a necessidade de os professores obterem maiores competências quanto ao desenvolvimento e implementação de currículos, uma vez que são exigidas “práticas de ensino que valorizem o pensamento crítico, a flexibilidade e a capacidade de questionar padrões sociais, isto é, requisitos culturais que tem implicações na autonomia e responsabilidade dos professores”. (P. 40).

A autonomia dos professores se fortalece com uma busca incessante por maior reconhecimento profissional dos docentes, que anseiam por uma formação de professores com vieses crítico, reflexivo e emancipador, que lhes possibilitem expor ideias e questionamentos junto à escola e à comunidade, abrindo espaço para uma atuação transformadora.

Efetivamente, de acordo com Ghedin (2002), a reflexão crítica é resultado de vários conflitos e transgressões, “possibilitando a autonomia do humano que se desacomoda para romper e, rompendo, percebe-se autonomamente ele próprio sujeito de sua história”. (P. 148).

Contreras (2002) enfatiza ainda que a docência, como exercício público, deve implicar o compromisso com os interesses e valores da comunidade. Portanto, esta não pode ficar à margem das pretensões educacionais idealizadas exclusivamente pelos profissionais.

Se a autonomia se constrói no encontro, como desenvolvimento das convicções e finalidades profissionais, mediadas pelo entendimento e o diálogo, entender as

perspectivas e expectativas sociais é tão importante como se fazer compreender socialmente por parte dos profissionais. (P. 201).

Ampliando o significado de autonomia, Contreras (2002) explica que esta pode ser compreendida como um processo de emancipação, que demanda a análise das condições da prática e do pensamento do profissional, consistindo também uma crítica das demandas da comunidade. O autor percebe esse fenômeno como uma possibilidade de ultrapassar os limites impostos pelas situações da prática:

[...] entendimento da autonomia como um processo de emancipação, pelo qual se pode ultrapassar as dependências ideológicas que impedem a tomada de consciência da função real do ensino, das limitações pelas quais nossa prática se vê submetida e da forma pela qual estas dependências são assimiladas como naturais e neutras [...] Se antes víamos a autonomia enquanto um processo de mediação, de reconstrução das decisões profissionais em uma prática de relações, agora necessitamos também da análise crítica das demandas sociais. (P. 203).

Tomando esse posicionamento mais crítico, a autonomia é compreendida como “a independência intelectual que se justifica pela ideia da emancipação pessoal da autoridade e do controle repressivo, da superação das dependências ideológicas ao questionar criticamente nossa concepção de ensino e da sociedade”. (CONTRERAS, 2002, p. 204).

Contreras (2002) argumenta que a autonomia dos professores implica “um programa político para a sociedade e um compromisso social com a profissão”. (P. 205). Conforme o autor, o profissional que percebe a autonomia como algo dinâmico, ocorrente com procedência em relações, é consciente de sua insuficiência e busca ampliar sua compreensão e relação com os outros, permitindo o contato com posicionamentos diversos, outras proposições e mais parcialidades, o que dá azo à continuidade do estabelecimento de sua autonomia profissional.

A consciência da parcialidade e a necessidade de ampliar nossa compreensão e sensibilidade para com os outros, de entender outras necessidades e propósitos educativos ou outras formas pelas quais se realizam os mesmos, como parte do processo de construção da autonomia profissional, acaba se dirigindo a nós mesmos, ao processo de compreensão e construção pessoal, ao desenvolvimento de nossa autonomia como pessoas e não só como profissionais. (P. 208).

A autonomia da escola e dos docentes está atrelada ao papel social e político da educação. Como competência democrática, deve ser originada na participação e colaboração, necessita transmitir as vozes dos professores e da comunidade escolar. As decisões, entretanto, que resultam em políticas públicas educativas geralmente centralizam-se num restrito grupo de técnicos e os professores são apenas convocados a implantar as reformas, tornando-se meros reprodutores das “regras” estabelecidas.

Prosseguindo com essa ideia, o autor indica que a autonomia profissional de uma atividade como o ensino “só pode ser construída no contraste e discussão, na comparação de pontos de vista, na descentralização em relação a nós mesmos, compartilhando dúvidas e preocupações”. (2002, p. 211). Para ele, a autonomia está relacionada com

[...] a oportunidade e o desejo de considerar tanto as convicções quanto às inseguranças em matéria de trabalho profissional, enfrentando-as e problematizando- as. Reconhecê-las, entendê-las e entender a nós mesmos entre elas não é possível sem outras perspectivas, sem outros colegas, sem outras pessoas. (P. 211).

Contreras (2002) exprime que a conquista da autonomia profissional também presume o acesso a espaços públicos em que haja possibilidade de “expor e defender, bem como negociar e acordar, problemas, pontos de vista, posições e compromissos em relação ao ensino e à sua realização profissional”. (2002, p. 224). Manifesta, dessa forma, a ideia de que uma prática profissional baseada na autonomia somente é possível garantindo a participação do professor na formulação dos argumentos que consolidem a prática docente, ou seja, com a voz dos professores.

Portanto, a autonomia dos professores só pode ser defendida apoiando a necessidade do debate educacional com e entre aqueles que assumem o protagonismo e a responsabilidade da prática. E isso significa o desenvolvimento de competências profissionais que permitam aos professores a análise crítica de sua prática, o aprofundamento de suas pretensões educativas e a expressão argumentada de suas conquistas e preocupações. (P. 225).

De acordo com Formosinho (2009), as instituições de ensino superior devem formar profissionais com capacidade de concepção e com autonomia para organizar o próprio trabalho, e não executantes ou técnicos com autonomia limitada. Nesta perspectiva, é que no ensino superior se exige uma interação da investigação (pesquisa) com o ensino, “de modo que os conhecimentos obtidos através da investigação possam ser incorporados no ensino”. (2009, p. 85). Este nível de ensino, principalmente nos cursos de formação de professores,

[...] deve fomentar um espírito de investigação para a resolução dos problemas profissionais e uma autonomia profissional, individual e coletiva que se traduzam em competências e atitudes relevantes para a vida dos contextos profissionais e organizacionais em que decorre a ação educativa. (2009, p. 85).

Freire (1996) chama atenção para a força que emana do discurso ideológico com relação à autonomia e para “as inversões que pode operar no pensamento e na prática pedagógica ao estimular o individualismo e a competitividade”. (P. 11). Manifesta, neste sentido, a necessidade e a importância da luta dos professores pela garantia dos seus direitos e

dignidade, que, de acordo com o autor, também deve ser compreendida como um momento relevante de sua prática docente, em especial pelo caráter ético.

A conquista da autonomia no contexto da formação docente faz despontar uma significativa importância para a vida profissional do professor, como sujeito de seu “refletir” e de seu “fazer” na busca de uma ação cada vez mais autônoma, criativa e libertadora. Isto também implica a valorização de seu trabalho, mediante bons salários, planos de cargos e carreira, reconhecimento profissional e formação contínua.

A autonomia, para Freire (1996), é elaborada e desenvolvida ao longo da prática educativa do professor, ao ensinar, ao aprender, ao conhecer, ao intervir, pois “não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo”. (P. 102).

Contreras (2002) argumenta ainda que “um desenvolvimento mais educativo dos professores e das escolas virá do processo democrático da educação, isto é, da tentativa de se construir a autonomia profissional juntamente com a autonomia social”. (P. 275). Nesta perspectiva, o autor defende o argumento de que a autonomia somente será um atributo do professor e da escola quando estes forem os verdadeiros idealizadores das práticas educativas. A formação contínua envolve a valorização dos professores como sujeitos, fortalecendo sua identidade e sua autonomia à medida que também promove seu desenvolvimento pessoal e profissional. Esta valorização, na qualidade de pessoa e profissional, deve ser resultado das experiências vivenciadas ao longo do percurso de formação, que ocasionam desequilíbrios, reflexões, novas aprendizagens e mudanças de concepções e práticas educativas. Para tanto, faz-se necessária a criação de espaços onde o professor tenha voz, para que possa expressar suas reais necessidades, dificuldades e anseios, estabelecendo novos conhecimentos e encontrando possibilidades de superação dos seus desafios, principalmente com apoio no compartilhamento de experiências e ideias com outros profissionais, num processo colaborativo.

3 OS CAMINHOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA: AS NARRATIVAS SOBRE

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