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3.2 OS NOVOS ESTUDOS SOBRE A FRONTEIRA

3.2.3 A fronteira como método: Sandro Mezzadra

3.2.3.1 Border as method

É exatamente nesta direção que Sandro Mezzadra e Brett Neilson conduzem sua obra Confini e frontiere71 (2014), oferecendo uma contribuição muito importante

para a discussão sobre as fronteiras, conforme também já esclarecido ao longo do texto:

[...] da complexa instituição social da fronteira os dois autores pretendem evidenciar, primeiramente a dúplice função ao mesmo tempo inclusiva e exclusiva [...] se afastando de leituras unicamente negativas da fronteira, que tendem a sublinhar apenas o poder de impedir a entrada, de excluir, de segregar e aquele diametralmente oposto de acolher, incluir e compreender72

(CUTITTA, 2014, p. 166).

Pode-se dizer que as fronteiras se tornam uma ferramenta estratégica para visualizar os processos globais e os territórios que estas deveriam rodear rigidamente, mas que na verdade sabe-se que se encontram fechados em um círculo fronteiriço extremamente flexível e articulado.

A obra dos autores italiano e australiano pode ser lida como uma contribuição para o debate sobre o aprofundamento da “política do comum” (MEZZADRA; NEILSON, 2014), que vem para ajudar a entender que a parede e o muro são falsos símbolos da fronteira, uma vez que o muro simboliza divisão, enquanto a fronteira não: a ideia fundamental é que a fronteira não separa a passagem de pessoas, capitais, objetos, entre outros. Pelo contrário, serve para articular estas passagens de uma maneira diferencial:

O fato que a função produtiva da fronteira seja bem mais articulada e complexa que a dicotomia dentro/fora possa sugerir é exemplarmente ilustrado pelas políticas de gerenciamento das migrações (…) o conceito de inclusão diferencial serve para entender, exatamente, o amplo e variado

71 Border as method (2013) em original.

72“Della complessa istituzione sociale del confine i due autori tengono a evidenziare, innanzitutto, la duplice funzione al tempo stesso esclusiva e inclusiva [...] prendendo le distanze da letture unicamente negative del confine, tendenti a sottolineare soltanto il potere di impedire l’accesso, di escludere, di segregare e quello diametralmente contrapposto di accogliere, includere, comprendere” (tradução nossa).

espaço intermediário entre os dois extremos do dentro e do fora73 (CUTITTA,

2014, p. 166).

Pensar a fronteira não apenas como um objeto de pesquisa, mas como um ponto de vista epistêmico (um border as method), ajuda a evidenciar as tensões que deixam tênue a linha entre inclusão e exclusão, pois como os autores sustentam:

Nosso interesse primário não é comparar distintas instâncias ou técnicas de fronteiramento, mas, pelo contrário, entrelaçar, justapor e sobrepor as práticas, técnicas em questão, evidenciando tanto suas mútuas implicações e consonâncias como suas diferenças e dissonâncias, suas coisas em comum e sua singularidade74 (MEZZADRA; NEILSON, 2012, p. 65).

Basicamente se trata de repensar a fronteira e entendê-la não mais como um objeto de pesquisa - já dado - que deve ser analisado como tal. O desafio é tentar reformular a inteira categoria fenomenológica da fronteira e tentar entender esta última a partir dos processos pelos quais está constituída. A fronteira não deve ser vista como algo neutro, ela deve se tornar um método por meio do qual entender as práticas que acontecem ao seu redor.

Além disso, hoje existem novas fronteiras que rodeiam os cidadãos e os trabalhadores e, muitas vezes, estas ficam longe das fronteiras tradicionais. Por este motivo, é preciso pensar outras linhas de demarcação social, cultural, política e econômica que possam servir para entender estas reconfigurações. Como os dois autores fazem isto em sua obra? Tomando como faísca a greve dos táxis de New York de 2004, começam explicando como existem tanto fronteiras linguísticas e étnicas entre os vários trabalhadores grevistas, como ao mesmo tempo fronteiras urbanas que os táxis cruzam diariamente, e também, que existem fronteiras sociais que dividem estes mesmos taxistas de seus clientes. Esta greve é vista por eles como uma crônica da proliferação das fronteiras no mundo contemporâneo, um mundo novo no qual as fronteiras nacionais não são mais as únicas, ou as mais importantes, para dividir ou limitar a mobilidade, por exemplo, do trabalho.

73“Il fatto che la funzione produttiva del confine sia ben più̀ articolata e complessa di quanto la dicotomia dentro/fuori possa suggerire è esemplarmente illustrato dalle politiche di gestione delle migrazioni [...] Il concetto di inclusione differenziale serve a comprendere, appunto, l’ampio e variegato spazio intermedio tra i due estremi del dentro e del fuori” (tradução nossa).

74 “Our primary interest is not in comparing different instances or techniques of bordering but rather in

interlacing, juxtaposing and superimposing the practices, techniques and sites in question, highlighting their mutual implications and consonances as well as their differences and dissonances, their commonalities and their singularities” (tradução nossa).

Mas e se quiséssemos tentar o que Balibar refere ser impossível e tentássemos definir o que é uma fronteira? Os autores (2014) deixam clara a sua dívida com o filósofo francês em relação às suas ideias sobre as fronteiras e, citando a Anzaldua - “ódio raiva e exploração [...] são as características prevalentes desta paisagem”75 (ANZALDUA, 2000 apud MEZZADRA; NEILSON, 2014, p. 22) - nos

lembram que esta é a imagem que em linha geral associamos às fronteiras: linhas fechadas por um muro que existem apenas para excluir. Segundo eles, porém, esta visão deixa a desejar, podendo levar a entender que a fronteira se reduz apenas a isso, e com esta noção, corre-se o risco de isolar uma única função da fronteira e pensar que seja a única possível, deixando de lado toda a flexibilidade que ela tem.

Retomando o conceito de inclusão diferencial, ao qual acenou-se pouco antes, os autores, por meio desta ideia, querem reorganizar a percepção das fronteiras para adaptá-la melhor à realidade:

[...] de um ponto de vista topológico, é possível dizer que o conceito de inclusão diferencial tenta substituir a distinção binária que existe entre inclusão e exclusão por meio de [...] um processo de filtragem e seleção que se relaciona a escalas, classificações e avaliações múltiplas e variáveis76

(MEZZADRA; NEILSON, 2012, p. 68).

Não é possível pensar a fronteira como algo que exclui quem está fora e inclui quem está dentro. Nenhuma sociedade é construída e ergue sua identidade e totalidade através da exclusão: é preciso repensar tanto os processos políticos que na fronteira ocorrem, bem como a noção cristalizada desta última como lugar de conflito.

Os autores sustentam que as fronteiras não só excluem, mas ao mesmo tempo também incluem, filtrando pessoas e bens tão violentamente como os excluem. Sua visão é que, ao contrário daquele que é o pensamento comum, ou seja, que a inclusão é sempre positiva, em realidade pode-se perceber que existem problemas relacionados com a violência também nas inclusões, no sentido que estas se desenvolvem em continuidade com as exclusões, e não em oposição a elas:

75 “Odio, rabbia e sfruttamento [...] sono le caratteristiche prevalenti di questo paesaggio” (tradução nossa). 76 “From a topological point of view, one could say that the concept of differential inclusion points to a

substitution of the binary distinction between inclusion and exclusion with (…) processes of filtering and selecting that refer to multiple and shifting scales, ratings and evaluations” (tradução nossa).

[...] em outras palavras nós focamos na capacidade de hierarquização e estratificação das fronteiras, examinando sua articulação em relação ao capital e ao poder político, seja que coincidam com os limites territoriais dos Estados, seja que existam dentro e além deles77 (MEZZADRA; NEILSON,

2014, p. 22).

Para entender isso, é necessário uma linguagem mais complexa e dinâmica em comparação àquela que lembra muros e exclusões. Então, partindo da fronteira como método, os autores repensam várias temáticas como trabalho, espaço, tempo, poder e cidadania e explicam que, ao tomar o conjunto destas mudanças, é possível entender melhor as transformações, inclusive, da sociedade contemporânea, pois a multiplicação de barreiras e fronteiras no mundo contemporâneo pode ser lida como um sinal da crise do poder estatal, mais que sua reafirmação de força.

A peculiaridade da nossa abordagem está na tentativa de separar a fronteira do muro, mostrando como as funções regulativas e o poder simbólico da fronteira submetam à prova a barreira entre soberania e formas mais flexíveis de governança global, fornecendo um prisma por meio do qual seguir as transformações do capital e as lutas que surgem dentro e contra estas78

(MEZZADRA; NEILSON, 2014, p. 23).

Ainda, os autores explicitam isso por meio da imagem do muro que existe entre Israel e a Palestina, mostrando ele funcionando como “’uma membrana que deixa passar alguns fluxos e bloqueia outros’, transformando o território palestino em uma ‘zona de fronteira’”79 (MEZZADRA; NEILSON, 2014, p. 24).

A imagem do muro não poderia explicar os novos processos de construção de fronteiras. No entanto, os fatores que tornam necessário questionar essa imagem dominante da fronteira como muro não sinalizam o desaparecimento de processos de hierarquização e controle. Pelo contrário, apontam de várias maneiras a proliferação ou multiplicação de paredes e fronteiras de vários tipos, não apenas para marcar a distinção entre espaços internos e externos, mas também no espaço e no tempo do capital global e nas fronteiras da inclusão diferencial80 (MEZZADRA; NEILSON, 2012, p. 71).

77 “In altre parole, ci concentriamo sulla capacità di gerarchizzazione e stratificazione dei confini, esaminando la

loro articolazione rispetto al capitale e al potere politico, sia che coincidano con i limiti territoriali degli Stati, sia che esistano dentro o oltre a essi” (tradução nossa).

78 “La peculiarità del nostro approccio risiede nel tentativo di separare il confine dal muro, mostrando come le

funzioni regolative e il potere simbolico del confine mettano alla prova la barriera tra sovranità e forme maggiormente flessibili di governance globale, fornendo un prisma attraverso cui seguire le trasformazioni del capitale e le lotte che montano dentro e contro di esse” (tradução nossa).

79 “Funziona come ‘una membrana che lascia passare alcuni flussi e ne blocca altri’, trasformando l’intero

territorio palestinese in una ‘zona di frontiera” (tradução nossa).

80 “The image of the wall could not possibly explain the new processes of border construction. Nonetheless the

factors that make it necessary to question this dominant image of the border as a wall do not signal the disappearance of processes of hierarchization and control. On the contrary, they point in many ways to the

Existe neste lugar - mas também nos muros dos EUA ou da União Europeia - uma produção legal de ilegalidade por parte do Estado que gera um processo de inclusão de migrantes por meio da ilegalidade e, ao mesmo tempo, a construção de filtros específicos:

Esses meios altamente tecnocráticos, mas também bastante arbitrários, de instituir a inclusão diferencial envolvem a submissão de sujeitos migratórios a parâmetros diferentes e cada vez mais altamente calibrados que pretendem medir sua dignidade e adequação para entrar em determinados espaços políticos: educação, saúde, religião, idioma, economias e prontidão para se 'integrar' figuram com destaque nesse sistema, ao lado de critérios econômicos clássicos, como habilidades laborais. Esses sistemas tendem a multiplicar e estratificar cada vez mais os status legais dos sujeitos que habitam o mesmo espaço político81 (MEZZADRA; NEILSON, 2012, p. 69).

É por meio destes filtros, por exemplo, que é aplicada a inclusão diferencial sobre a qual os autores discorrem. A questão talvez mais interessante é que estes filtros podem ser aplicados também aos cidadãos, aqueles cidadãos que não pertencem, como os autores os definem, que estão quase equiparados aos migrantes irregulares pois não possuem estes parâmetros que lhes permitiriam entrar no espaço político da cidadania: estão incluídos, mas não pertencem ao seu país.

O embaçamento dos padrões de interioridade e externalidade implícitos nos regimes migratórios cada vez mais predominantes de inclusão diferencial também tem ramificações importantes, como já enfatizamos, para as questões que envolvem a subjetividade política, principalmente a natureza mutável e as formas de cidadania82 (MEZZADRA; NEILSON, 2012, p. 70).

Não podemos esquecer, porém, de dois detalhes importantes: perante a globalização, o Estado-nação se reorganizou e recriou suas fronteiras (que de qualquer maneira não são as mesmas de antigamente), ao mesmo tempo, houve

proliferation or multiplication of walls and borders of various kinds, not merely to mark the distinction between internal and external spaces, but also within the space and time of global capital and the borders of differential inclusion” (tradução nossa).

81 “These highly technocratic but also quite arbitrary means of instituting differential inclusion involve the

submission of migratory subjects to different and ever more highly calibrated parameters that purport to measure their worthiness and suitability to enter certain political spaces: education, health, religion, language, savings and readiness to ‘integrate’ figure prominently in these systems, alongside classical economic criteria such as labour skills. These systems tend to multiply and increasingly stratify the legal statuses of subjects inhabiting the same political space” (tradução nossa).

82 “The blurring of patterns of internality and externality implicit in the increasingly prevalent migration regimes

of differential inclusion also has important ramifications, as we already stressed, for the issues surrounding political subjectivity, not least the changing nature and forms of citizenship” (tradução nossa).

forçadamente uma modificação na subjetividade política, visto que esta nasceu junto ao conceito de Estado-Nação (deve-se pensar no conceito de cidadania e sua relação estreita com o trabalho, por exemplo).