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5.2 OS GRUPOS FOCAIS

5.2.1 Conheço a fronteira

O primeiro grupo focal teve a participação de nove alunos do IFMT de Cáceres, todos com um notável grau de conhecimento da fronteira e da Bolívia. Inicialmente, foi explicada a metodologia, feitas as devidas explicações relativas à participação e como seriam tratados os dados. Após sanar algumas dúvidas iniciais e completar a parte mais prática – como preenchimento de cola para moderador, assinatura do TCLE, entre outras – foi iniciada a entrevista pedindo a todos os entrevistados se apresentarem explicando sua relação com a fronteira (tanto a de Corixa como outras fronteiras que eles pudessem conhecer). As respostas foram as mais variadas e esta apresentação mostrou a ótima qualidade da seleção dos respondentes, pois haviam todos os tipos de relação com a fronteira, sendo que todas (ou quase todas) eram relações fortes: um dos participantes morava em um assentamento na Corixa, outro tem fazenda de família na divisa, mas para chegar até a fazenda era obrigado a atravessar a fronteira para depois retornar ao Brasil por outro caminho (passando exclusivamente pelo lado brasileiro, a rota compreendia 90 km de estrada sem asfalto, mais longa). Um dos participantes é de família de comerciantes que fazem compras em San Matias, outro conhece bem tanto a fronteira da Corixa bem como outras fronteiras de Mato Grosso do Sul e do Paraná e, finalmente, a última nasceu na Corixa (com toda probabilidade do lado boliviano, não foi possível confirmar esta informação) e “veio ao Brasil” já adulta para estudar, embora a sua família ainda more lá. Haviam também duas pessoas cujo contato foi bem menor que a média, mas de qualquer forma não eram leigas quanto ao assunto.

A primeira pergunta solicitou que relembrassem a última vez que cruzaram a fronteira, sendo esta apenas um aquecimento para tentar lembrar detalhes interessantes sobre estas viagens e começar assim a refletir sobre o argumento proposto. Os mais diversos relatos foram coletados: havia quem foi para San Matias para levar parentes em visita a Cáceres para conhecer “um outro país”, também aqueles que foram por curiosidade, outros apenas para comprar umas Paceñas128,

enquanto outros foram para negócios. Em linha geral, a conversa focou na fronteira, mas do ponto de vista do controle policial: todos indistintamente estranharam o fato

128 Cerveja nacional boliviana, muito apreciada na região fronteiriça, ela aparece bastante nos relatos dos

que ir para a Bolívia é extremamente fácil129, mas justificaram dizendo que em geral

os policiais sabem que a grande maioria daqueles que passam por aquele posto vão apenas para a cidade de San Matias fazer algumas pequenas compras e que, também, existem os “fregueses”, ou seja, pessoas que costumam passar por lá com uma certa frequência e sendo assim conhecidos dos policiais. Da mesma forma, todos estranharam também a discrepância que há em relação ao controle no retorno ao Brasil. Neste caso, bem mais cuidadoso, pois há um problema grande de tráfico de drogas e de entrada de mercadorias em número acima do permitido. Todos relataram episódios parecidos relacionados ao cuidado quase paternalista que os policiais brasileiros tiveram ao aconselhar as pessoas que estavam saindo para a Bolívia e, pelo contrário, o tratamento extremamente desconfiado que receberam no retorno ao Brasil130. Seja por causa do tráfico de drogas, seja pela passagem de produtos

alimentícios não processados131, ou remédios comprados na Bolívia sem receita

médica, a fiscalização no retorno é bem rígida, e vários foram os relatos de carros revistados nos lugares mais impensáveis. De qualquer forma, nenhum dos entrevistados foi barrado ou impedido de entrar ou teve mercadoria apreendida, um sinal da extrema facilidade de entrada por esta fronteira, ou ainda um sinal de quão bem os entrevistados conhecem as normas. O único detalhe estranho que eles relataram foi a facilidade que algumas pessoas têm de passar, tanto na ida como na volta, pelo fato de serem conhecidos dos policiais – há pessoas que passam diariamente e não param para revista nem na ida nem na volta – e também todos relataram que a fiscalização no retorno depende de quem são os policiais presentes naquele momento – como se houvesse um relaxamento na passagem de pessoas

129 Não há nenhum controle na saída para a Bolívia, uma vez que no Brasil a legislação fronteiriça permite o

trânsito de um município fronteiriço para outro município fronteiriço sem necessidade de controle policial, pois não se configura como saída do país. Ao se deslocar para o município sucessivo deveria haver o controle para a real entrada no País

130 Foi relatado que a desconfiança em relação à passagem de motos se dá porque costuma haver um alto índice

de roubo deste tipo de veículos do lado brasileiro, pois eles são levados para o lado bolivianos e trocados por – cotação da época – um quilo de pasta base (com um quilo deste produto é possível fazer aproximadamente de oito a dez quilos de cocaína). É, portanto, comum que motos sejam roubadas em Cáceres (ou já em território boliviano, no trajeto de 10 km entre a fronteira e a cidade), levadas até San Matias e trocadas por esta pasta base. As “mulas” retornariam ao Brasil a pé com a droga em mochilas e a revenderiam por um valor bem superior.

131 Há na Corixa um posto de fiscalização da INDEA – Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso – que

está lá desde a época em que o Brasil conseguiu debelar a febre aftosa de seu rebanho, enquanto a Bolívia ainda tinha que lutar com este problema. O controle se dava principalmente para evitar a entrada de animais contaminados que pudessem levar a doença de volta ao Brasil, mas o posto fiscaliza também todas as entradas de produtos alimentícios.

dependendo de quem deveria controlar: uma confirmação da inclusão diferenciada da fronteira bastante ressaltada por Mezzadra.

Ao serem questionados sobre o controle na Bolívia, todos disseram que, tanto na ida como na volta, o controle é praticamente nulo, apenas um dos entrevistados relatou uma experiência que parece ser bastante comum, pois após a sua fala outros também confirmaram o relato: os militares que controlam a entrada costumam pedir um pequeno “agrado” ao retornar para o Brasil.

A) Geralmente [...] quando você está passando para entrar eles geralmente [...] eles pedem – ah traz uma coca – porque aí eles observam você, então quando você está voltando e não trouxe uma coca para eles, a forma deles te abordar e de te revistar é uma, se você chegou ali e entregou a coca já era, já está liberado e vai embora;

B) É boa, essa parte aí é bom, é diferente o tratamento; A) Eles não te revistam não fiscalizam;

B) Só falar a eles que vai trazer alguma coisa para eles, já era já, cê tem burocracia nenhuma para ali, eles só apertam a cancela, levantam a cancela e cê vai embora;

A) A cancela deles é muito engraçada, é de madeira amarrada a uma pedra, eles sorta as corda e abre (Diário de Campo, grupo focal, 8 de novembro 2019).

Descobriu-se sucessivamente que os militares fronteiriços são jovens recrutas e que seu salário é extremamente baixo. Estes fatores, junto ao baixo valor cobrado (um refrigerante deve custar em torno de dois reais em San Matias), faz com que este pedido de propina não seja considerado por ninguém uma verdadeira propina, também porque nunca houve problemas reais na passagem da Bolívia para o Brasil. A segunda e a terceira perguntas feitas entraram já na questão da percepção da fronteira, com a tentativa de focar na análise feita por Mezzadra e Balibar acerca das características desta última: uma fronteira vista como um lugar rígido, fechado, facilmente definido e descrito homogeneamente por este grupo seria um resultado não congruente com a bibliografia levantada. O esperado com estas duas perguntas complementares era observar uma série de respostas que pusessem em luz a indeterminação da fronteira, sua heterogeneidade e sua inclusão diferencial – que inclusive havia sido amplamente confirmada na pergunta anterior.

Foi perguntado ao grupo para pensar em um aspecto negativo e depois em um aspecto positivo que viesse à mente ao pensar em fronteira. As perguntas foram separadas focando inicialmente na parte negativa e sucessivamente na parte positiva. Inicialmente, quando perguntado sobre os aspectos negativos das fronteiras todas as respostas foram unânimes, que não havia nenhum aspecto negativo. Em um certo

momento um dos participantes (a que menos tinha mencionado sobre a fronteira) disse: “lá em Lacerda132 tinha muito disso: roubar carro moto e sempre acharem do

lado de lá da fronteira” (Diário de Campo, grupo focal, 8 de novembro 2019). A partir desta fala o grupo começou a discorrer sobre os assuntos de roubos de veículos e tráfico de drogas. Um dos aspectos mais relevantes da violência naquela região específica está ligado à corrente de crime que prevê o roubo de veículos no Brasil, seu transporte até a Bolívia, a sucessiva troca por droga e enfim o retorno ao Brasil onde esta pode ser revendida. Este aspecto, porém, não foi o que mais gerou discussão, pois os alunos estavam mais preocupados em relação ao meio ambiente que ao tráfico de drogas. Eles relataram que, como a legislação ambiental na Bolívia é menos rígida que no Brasil, muitos crimes ambientais são cometidos na Bolívia e seu resultado aparece em Cáceres133. Uma fala que chamou atenção em relação a

esta diferença de fiscalização diz respeito às queimadas controladas: proibidas no Brasil, elas são livres na Bolívia. Quem possui uma fazenda fronteiriça tem que tomar cuidado e às vezes apagar incêndios em sua propriedade “porque o fogo não respeita fronteiras” (Diário de Campo, grupo focal, 8 de novembro 2019).

Foi solicitado que focassem, sucessivamente, em algum aspecto positivo da fronteira. Mais uma vez observou-se unanimidade no relato de que os pontos positivos eram muitos. Viver perto de uma fronteira, para quem a conhece, é algo que oferece principalmente vantagens: trocas culturais, comércio entre os dois lados, ajuda das pessoas de ambos os lados, estes foram os aspectos mais lembrados como positivos por quase todos os participantes.

A fronteira é vista, portanto, como algo extremamente positivo por todos aqueles que a conhecem, pois enquanto para encontrar um ponto negativo levou um certo tempo (e todos focaram no problema do crime), os pontos positivos apareceram extremamente rápidos e de uma forma heterogênea. Além disso, quem a conhece não a vê como fechada ou rígida, pelo contrário, o relato foi que “você vai, você passa

132 Pontes e Lacerda, cidade fronteiriça do Oeste mato-grossense a aproximadamente 230 km de Cáceres, em

direção ao Estado de Rondônia.

133 Os alunos deram o exemplo do corte de árvores de mogno, que é proibido no Brasil, mas legal na Bolívia: os

madeireiros cortam estas arvores na Bolívia, trazem até Cáceres, a regularizam por meio de uma pequena taxa de importação, podendo assim a revender no Brasil. Outro exemplo foi relacionado ao gado boliviano: Cáceres tem o 3º maior rebanho do Brasil e está livre de febre aftosa. San Matias não garante seus animais desta doença, mas os bois bolivianos são mais baratos que os brasileiros, então, sobretudo em fazendas fronteiriças, estes animais se tornam “brasileiros” sem que haja controle por parte das autoridades, correndo o risco de afetar o rebanho de toda a região.

pela fronteira, entra, compra, e sai tranquilamente” (Diário de Campo, grupo focal, 8 de novembro 2019).

Por fim, a última pergunta realizada misturou dois conceitos: a questão das outras fronteiras e a solicitação para pensar em definir uma fronteira. Pedimos para se distanciar da fronteira física e pensar nas outras fronteiras do nosso dia a dia. Com intuito de facilitar o exercício, foi dado o exemplo das fronteiras que atravessamos diariamente ao mudar de bairro em uma cidade.

Após uma primeira discussão sobre o que poderiam ser outras fronteiras, durante a qual não surgiram comentários interessantes, foi solicitado que dessem uma definição de fronteira, sem focar na divisão entre dois estados. Interessante foi a evolução das definições. Partiu-se de uma primeira definição como uma separação: “seria uma barreira, talvez [...] até por essa questão mesmo, questão social, questão financeira, entendeu, seria uma barreira entre esses dois lados, entendeu, de certa forma algo que impossibilita a ligação de dois mundos diferentes” (Diário de Campo, grupo focal, 8 de novembro 2019). A primeira imagem que vem à mente de todos é sempre uma imagem de separação, de divisão: foi definida como divisor de água, divisor de classes, separação, divisor de cultura, divisor de saúde, todas as definições focavam na palavra divisão, apesar de todos os entrevistados, nas repostas anteriores, concordarem que a fronteira era um espaço de integração entre dois lugares. Ninguém conseguia desviar da imagem de uma linha que divide. Até que, quase no final da entrevista, uma das participantes tomou a palavra e deu a sua definição:

Eu acho que não é só uma divisão, mas também é uma ligação, porque eu acho que através de qualquer fronteira tanto social, econômica, qualquer tipo, de gênero, que mantenha uma fronteira consegue ligar dois [...] esses mundos que estão divididos, acho que a gente pode dizer que talvez seja uma divisão ou uma ligação eee [...] ao mesmo tempo, entendeu, acho que nem tanto ela é negativa nem tanto positiva, tanto que as outras duas perguntas cês poderiam entender a mesma coisa. A gente não acha ponto negativo a gente não acha ponto positivo, mas não é só em questão a esta fronteira física entendeu, em questão de outras, outros gêneros que têm uma fronteira, que tem [...] acho que é tipo que tem uns [...] a fronteira é como se fosse um ser racional e irracional, cada um eee [...] aproveita ela de maneira que lhe convém, então eu acho assim, fronteira não seria nem 100% uma [...] uma divisão, mas também talvez uma integração (Diário de Campo, grupo focal, 8 de novembro 2019).

Uma fronteira que não é apenas um divisor, mas também que promove união. Aliás, mais une que separa. Oferecendo esta definição, a entrevistada confirmou

plenamente o esperado. A confirmação da nossa hipótese principal, a indeterminação da fronteira entendida não como algo que divide apenas, mas como algo que às vezes une, às vezes separa, e que deixa passar as pessoas seletivamente.