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Zygmunt Bauman: relações com os estrangeiros na sociedade

4.1 A RELEVÂNCIA INTELECTUAL DA PROBLEMÁTICA

4.1.3 Zygmunt Bauman: relações com os estrangeiros na sociedade

A comunidade é definida por suas fronteiras vigiadas de perto e não mais por seu conteúdo111

No capítulo anterior relatou-se como as fronteiras são percebidas por Zygmunt Bauman. Agora, pretende-se aprofundar suas ideias acerca das relações que ocorrem entre os estrangeiros e os grupos estabelecidos em encontros casuais, ou seja, em eventos ocasionais como, por exemplo, os encontros em uma praça ou em algum lugar público. Encontros estes, que não pressupõem outros contatos, tanto no passado, como no futuro. Segundo o sociólogo polonês:

O encontro de estranhos é um evento sem passado. Frequentemente é também um evento sem futuro (o esperado é que não tenha futuro), uma história para “não ser continuada”, uma oportunidade única a ser consumida enquanto dure e no ato, sem adiamento e sem deixar questões inacabadas para outra ocasião (BAUMAN, 2001, p. 111).

110 “L’azione sociale dei confini, in effetti, produce sempre specifiche soggettività̀; tali soggettività̀, a loro volta,

contribuiscono a rimodellare quegli stessi confini, e ciò̀ avviene spesso in via conflittuale. I conflitti sono sempre, in quanto tali, segnali di confine, spie della differenza e, più precisamente, della difficoltà di superare l’impatto prodotto dall’incrocio tra differenze – siano esse espresse in forma territoriale o sovraterritoriale” (tradução nossa).

Trata-se, basicamente, de um encontro que cria uma relação que termina no momento exato em que é criada: não há outra oportunidade de encontro e quase nenhuma possibilidade de uma sucessiva continuação do eventual diálogo que se estabelece naquele momento. A cidade é o lugar ideal para este tipo de relação. Sempre Bauman, porém citando Richard Sennet, refere que “uma cidade é um assentamento humano em que estranhos tem chance de se encontrar. Isto significa que estranhos tem chance de se encontrar em sua condição de estranhos” (BAUMAN, 2001, p. 111). A cidade, desde as primeiras análises sociológicas de Georg Simmel (2005), passando pelas obras literárias no estilo de Edgar Allan Poe (1993), é o lugar onde estranhos se encontram e onde estranhos são obrigados a se relacionar, querendo isto ou não, gostando disto ou não. Não há possibilidade de estar sozinho na cidade, trata-se do lugar onde se é obrigado a conviver juntos, conforme já visto no capítulo anterior: “viver na cidade é viver junto a estrangeiros”112 (BAUMAN, 2005,

p. 65). Além de estar rodeado por uma multidão de pessoas, esta multidão é feita de desconhecidos e às vezes de estrangeiros. Além disso, cada um é ele mesmo estrangeiro na própria cidade devido à incerteza da própria modernidade líquida.

Isto faz pensar que existem e são desenvolvidas estratégias de relacionamento (de sobrevivência, pode-se ousar referir) por parte dos moradores da cidade que servem para tecer estas relações temporárias. Quais são as estratégias que os moradores usam para se relacionar com os estrangeiros nesta condição? Sempre segundo Bauman, temos três possibilidades principais que se misturam a inúmeras outras atitudes individuais. A primeira estratégia é aquela mais tradicional que a sociologia reconhece: uma tentativa de assimilação que consiste, por parte dos autóctones, na redução quase total do caráter inesperado no comportamento do estrangeiro, conseguindo assim, reduzir ao mínimo a fronteira entre nós e os estrangeiros.

A segunda estratégia é uma novidade que Bauman introduz: o autor pensa quase em uma não percepção dos estrangeiros que desemboca naturalmente na quase invisibilidade destes últimos. Praticamente se dá uma ausência de sentido ao encontro com o estrangeiro. Esta ausência de sentido é diferente da ausência de contato, da ausência de relação, pois segundo o autor polonês, se trata de não dar

sentido ao encontro interpessoal e chegar a tecer, assim, uma relação baseada na ausência de sentido atribuída ao contato.

A última estratégia é a criação de um nicho, de um espaço próprio do qual sair o mínimo possível e no qual deixar entrar o mínimo de pessoas:

[...] escavar um nicho, não há dúvida, implica acima de tudo separação territorial, o direito a um “espaço defensável” separado, espaço que precisa de defesa e é digno de defesa precisamente por ser separado – isto é, porque foi cercado de postos de fronteira que permitem a entrada apenas de pessoas “da mesma” identidade e impedem o acesso a quaisquer outros. Como o propósito da separação territorial é a homogeneidade do bairro, a “etnicidade” é mais adequada que qualquer outra “identidade” imaginada (BAUMAN, 2001, p. 124).

Na sociedade líquida, a identidade pessoal se sobrepõe à identidade coletiva, e se reduz, desta forma, à tensão que existe na luta entre estabelecidos e outsiders, abrindo espaço a estratégias de relações baseadas na tentativa de fuga da incerteza. Volta-se aqui à criação de nichos vista pouco antes, pois “a busca da segurança numa identidade comum e não em função de interesses compartilhados emerge como o modo mais sensato, eficaz e lucrativo de proceder” (BAUMAN, 2001, p. 124). Estas estratégias são, porém, permeáveis a outras formas de se relacionar com os estrangeiros. Podem existir contatos que levam às clássicas relações de hostilidade, derivadas de uma condição de instabilidade e incerteza que envolve a relação com o estrangeiro.

A representação do estrangeiro na sociedade pós-moderna ou líquida pode ser vista, portanto, da seguinte forma: visto que os traços sociais do estrangeiro se confundem e se misturam com os traços sociais do grupo estabelecido e visto, inclusive, que as próprias características do dia a dia nas grandes cidades (incerteza, precariedade, anonimato, solidão) misturam os estilos de vida dos moradores autóctones com os dos estrangeiros, pode-se chegar à conclusão que o estrangeiro não vive muito diferentemente de “nós, que aqui nascemos”. É fácil perceber isto ao pensar, por exemplo, na região de fronteira onde se desenvolve a presente pesquisa. Lá hoje, os Outros são dificilmente definíveis, assim como também a identidade de cada um dos residentes o é. Neste sentido, os estrangeiros partilham com os moradores apenas o status de ator social numa sociedade cada vez mais individualizada.