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3.2 OS NOVOS ESTUDOS SOBRE A FRONTEIRA

3.2.1 As fronteiras internas: Zygmunt Bauman

3.2.1.3 Novos muros para velhos problemas

Sempre seguindo o raciocínio de Bauman (2005), pensa-se que a globalização, ou economia global, criou entre outros problemas uma quantidade enorme de gente “supérflua”, que não pode mais viver como viviam seus predecessores (camponeses, por exemplo, que não conseguem mais viver só com o trabalho da terra, artesãos que não vendem mais seus produtos) e que, por conta disso, são obrigados a procurar alguma solução alternativa: emigrar, sair do lugar onde se mora e ir para um lugar novo que prometa mais oportunidades. Qual é o lugar que mais apresenta (aparentemente) oportunidades e promessas de uma vida melhor senão a cidade, sendo que nela acontecem os encontros entre os diversos, os estabelecidos e os novos chegados:

[...] inevitavelmente a cidade, o espaço urbano, que desde sempre “concentra” as populações, se torna o lugar pragmático e material do confronto dialético, e de interação política e cultural, entre uma comunidade que se reivindica “do lugar” (e que deste reivindica a posse), e pessoas - estrangeiros de diferentes formas - que este lugar o atravessam, ou o chegam a coabitar54 (FURRI, 2018, p. 15).

Essas pessoas vão para a cidade trazendo a mensagem de forças misteriosas, de desventuras, de perigo: da possibilidade de sermos “nós mesmos”, num futuro quem sabe próximo, como “eles”. Assim, trazem consigo o pior pesadelo: a

53 “Le città, nelle quali vive già oltre la metà del genere umano, sono in un certo qual modo delle discariche per i

problemi creati e non risolti dello spazio globale” (tradução nossa).

54 “Inevitabilmente la città, lo spazio urbano che da sempre “concentra” le popolazioni, diventa il luogo

pragmatico e materiale di confronto dialettico, e di interazione politica e culturale, tra una comunità che si rivendica “del luogo” (e che ne rivendica la proprietà), e persone - stranieri a diverso titolo - che questo luogo lo attraversano, o arrivano a co-abitarlo” (tradução nossa).

possibilidade de ser supérfluo e de perder posição e segurança social. Parecem estar ali para lembrar, cada vez que as encontram, de algo que gostariam de esquecer: a fragilidade da natureza humana, a precariedade das vidas e das certezas. Os migrantes são entendidos como portadores da ideia de seres supérfluos, ou seja, pessoas cujas capacidades de trabalho não poderiam ser utilizadas da melhor forma, gente que seria melhor caso fosse excluída, que seria melhor que desaparecesse, e é também por causa disso que são traçadas fronteiras imaginárias entre “nós” e “os outros”, entre os estabelecidos e os outsiders.

O progresso econômico sempre tornou muita gente supérflua (camponeses, artesãos, entre outros). Antigamente, esse tipo de pessoa costumava ir da Europa para fora (Américas, Austrália) e o problema era resolvido. No entanto, algo novo está acontecendo. Hoje, o mundo inteiro está produzindo supérfluos, e por esse motivo, não existem mais lugares melhores (Américas) para tentar a sorte. Eis que todos querem se acumular nas cidades que mais oferecem oportunidades, cidades estas que infelizmente já têm seus próprios problemas e seus próprios “inúteis” que não conseguiram nelas uma recolocação, e que irão se somando a esse novo exército de deslocados que chegam diariamente.

Existe, para designar esse tipo de pessoa, uma palavra específica nos Estados Unidos: underclass, ou seja, quem está fora do sistema de classes, não está em cima ou embaixo, está totalmente fora dele. Essa palavra espalhou-se pelo resto do mundo de uma forma impressionantemente rápida. Tão rápida como a velocidade com a qual muitas pessoas passaram a fazer parte deste novo grupo. A característica principal da underclass é que as pessoas que dela fazem parte não estão embaixo ou subindo, crescendo ou oscilando. Quem está na underclass está fora, fora do sistema de classes, fora do ambiente, sem possibilidade nenhuma de entrar nele; é um excluído, parafraseando Eichendorff,55 um good for nothing, um bom para nada, obrigado a

vagar sem colocação nenhuma no sistema de trabalho tradicional.

Para se salvar da vista e do contato com essas pessoas, com os problemas nas cidades, existe uma tendência geral para a construção de muros, fronteiras e proteções contra um eventual inimigo externo. Além disso, criaram-se espaços

55 Joseph Freiher von Eichendorff (1788-1857) foi um poeta e romancista alemão que em 1826 escreveu um livro

cujo titulo “Aus dem Leben eines Taugenichts”, pode ser traduzido como “a vida de um bom para nada” (não existe tradução em português, porém existe uma versão em inglês “Life of a good-for-nothing” editada pela Hesperus Press em 2002) que relata a vida de um rapaz que, por não se encaixar no mundo no qual vive, picarescamente, decide vagabundear para tentar ver o que a vida lhe reserva sem muita expectativa.

proibidos, ou seja, espaços onde algumas pessoas não podem sentar, parar ou até não podem entrar. Se trata daqueles que Steven Flusty (1994) chama de interdictory spaces, espaços proibidos. Proibidos (somente para algumas pessoas), não no sentido literal da palavra, mas também porque se trata às vezes de espaços públicos, nos quais se dificulta ao extremo a possibilidade de frequentar estes lugares. Um caso extremo são as americanas gated communities, ou como são conhecidas aqui no Brasil, os condomínios fechados: lugares onde ninguém pode entrar se não for convidado, e que têm seguranças (às vezes até armados) dia e noite. Esses lugares são o espelho, o reflexo desses guetos involuntários em que foram colocados os underclasses e os migrantes que sobraram: “estes guetos voluntários [...] são o resultado da aspiração a defender a própria segurança procurando ter só a companhia de seus semelhantes, e deixando longe os estrangeiros”56 (BAUMAN,

2005, p. 74). Uma prisão voluntária da qual, graças às televisões internas, por exemplo, os prisioneiros de si mesmo podem se defender de quem passar por perto, e podem também ter uma visão do mundo no qual não se põe o pé, no qual não se passeia mais, não se vive mais. Uma prisão voluntária que é alimentada pelo medo dos outros, uma situação em que as pessoas abandonam voluntariamente alguns dos fundamentais direitos humanos de primeira geração, entre eles o mais importante, a liberdade. Liberdade de andar livremente na própria cidade, liberdade de passear sem medo, de não ser preso em suas próprias habitações (prisões com todo conforto, mas sempre com grades, gaiolas de ouro), liberdade de perceber que essas prisões não deixam entrar os “outros”, mas que também não os deixam sair.

Segundo Richard Sennet (2014), há um círculo vicioso nesta situação de condomínios fechados: as pessoas que neles se enclausuram aparentemente têm uma grande dificuldade (ou medo) em se relacionar com os estrangeiros, com os outros. Existe para isso uma explicação lógica, pois nestes lugares, eles frequentam apenas os próprios semelhantes e, quanto mais frequentam pessoas similares a eles, menos têm disposição de conviver com os diferentes, com os estrangeiros, têm medo deles e por isso procuram mais ainda a companhia dos próprios semelhantes. Uma situação de ansiedade, de medo e de recusa do outro, de criação de muros/fronteiras, de perda voluntária daquela liberdade e capacidade de convivência, em nome de uma

56 “Questi ghetti volontari [...] sono il risultato dell’aspirazione a difendere la propria sicurezza procurandosi la

tranquilidade aparente, de uma segurança fictícia. Eis, então, que surgem, por exemplo, as escolas fechadas nas quais as crianças não chegam a entrar em contato com estas outras pessoas, filhos das famílias “erradas”, e onde eles, sempre graças a estes muros/fronteiras dentre os quais estão fechados desde pequenos, também aprendem a cultura do medo, da recusa do outro, da recusa do diferente e do abandono voluntário de algumas das liberdades mais fundamentais em nome de uma suposta segurança.