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3.2 OS NOVOS ESTUDOS SOBRE A FRONTEIRA

3.2.3 A fronteira como método: Sandro Mezzadra

3.2.3.2 Fronteiras do capital

Pode-se, portanto, dizer que a própria noção de cidadania se flexibiliza – junto à lógica tradicional clássica do Estado-nação e da identidade – e abre o caminho para uma nova lógica orientada pelas necessidades do mercado de trabalho, pois, como é sabido, apesar do Estado-nação ser uma instituição que ainda inibe fortemente a mobilidade dos trabalhadores, existem outros fatores e outras dinâmicas que perpassam estes limites nacionais. “Neste sentido [...] propusemos a formula ‘fronteiras do capital’ para colher esta essencial tendência expansiva que caracteriza a ação do capital do ponto de vista da produção do espaço”83 (MEZZADRA, 2015, p.

21). Uma das teses principais que pretendem sustentar isto tem como base o fato de que as fronteiras servem não para bloquear, mas para articular os fluxos globais. Além disso, precisa-se pensar também na heterogeneização das fronteiras, pois hoje as fronteiras não são mais apenas linhas, são instituições sociais complexas marcadas por práticas de reforço e de atravessamento.

Além disso, o operar da fronteira é importante não apenas para as pessoas, mas também para os Estados, o capital e as mercadorias, por exemplo. O próprio Mezzadra esclarece este ponto quando faz a seguinte pergunta: “o que é uma economia e, ainda antes, onde fica uma economia?”84 (MEZZADRA, 2015, p. 20). O

autor parte desta pergunta (emprestada por Wallerstein) para entender a relação que o capital mantém com as fronteiras hoje.

Toda economia – cada ‘reticulo de processos produtivos mais ou menos estritamente independentes’ – se desenvolve dentro de determinadas ‘fronteiras espaço-temporais’, diz Wallerstein: a historicidade de um sistema econômico, sua origem, seu crescimento, suas transformações correspondem a uma específica (mesmo que mutável) colocação no espaço, circunscrita por um conjunto de ‘limites’85 (MEZZADRA, 2015, p. 20). 83“In questo senso (…) abbiamo proposto la formula “frontiere del capitale” per cogliere questa essenziale tendenza espansiva che caratterizza l’azione del capitale dal punto di vista della produzione di spazio” (tradução

nossa).

84“Che cos’è un’economia e, ancor prima, dov’è un’economia?” (tradução nossa).

85Ogni economia – ogni ‘reticolo di processi produttivi più̀ o meno strettamente interdipendenti’ – si sviluppa all’interno di determinati ‘confini spazio-temporali’, aggiunge WallersteIn: la storicità̀ di un sistema economico,

A dificuldade neste ponto é entender como estas fronteiras do capital se ligam a outras fronteiras (políticas ou culturais, por exemplo). A solução que Mezzadra nos oferece é particularmente interessante. Segundo o autor, há uma relação forte entre espaço do capital e espaço político. Citando Marx, o pesquisador italiano nos introduz uma noção esclarecedora:

[...] compensa retomar neste sentido uma breve citação extraída dos Grundrisse: “a tendência a criar o mercado mundial”, escreve aqui Marx, “é dada de imediato por meio do conceito de capital. Todo limite (Grenze) se apresenta aqui como um obstáculo (Schranke) a ser superado”86

(MEZZADRA, 2015, p. 20-21).

Ou seja, se o capital existe como tendência, então esta tendência desestabiliza qualquer fronteira ou limite existente. A partir deste ponto de vista, a ideia de Mezzadra deve ser entendida como uma contribuição à análise dos processos globais, que serve também para apagar o mantra (por longo tempo escutado) que com o avanço da globalização deixariam de existir as fronteiras.

O propósito último da análise de Mezzadra e Neilson é juntar uma perspectiva de fronteira à noção de força de trabalho; eles fazem isto analisando as tensões e os conflitos que criam e recriam as vidas dos sujeitos os quais, como as fronteiras trabalham, são configurados como “carregadores” de força trabalho. Há uma produção de subjetividade nestes trabalhadores que é fundamental entender para esclarecer como se produz a força-trabalho como mercadoria (“marxianamente” falando). “O poder genericamente humano da força-trabalho, para retornar à formulação marxiana, está sempre encarnado em corpos sexuados que são socialmente construídos dentro de múltiplos sistemas de domínio, não último o racismo”87 (MEZZADRA; NEILSON, 2013, p. 38), ou seja, a maneira como as pessoas

carregam sua força de trabalho é determinada em sua origem pela raça, nação, origem geográfica e pelo gênero.

la sua origine, la sua crescita, le sue trasformazioni corrispondono cioè̀ a una specifica (ancorché́ mutevole) collocazione all’interno dello spazio, circoscritta da un insieme di ‘limiti” (tradução nossa).

86“Conviene riprendere in questo senso una breve citazione tratta dai Grundrisse: ‘la tendenza a creare il mercato mondiale’, scrive qui Marx, ‘è data immediatamente con il concetto stesso di capitale. Ogni limite (Grenze) si presenta qui come un ostacolo (Schranke) da superare” (tradução nossa).

87 “La potenza genericamente umana della forza lavoro, per richiamare la formulazione marxiana, è sempre

incarnata in corpi sessuati che sono socialmente costruiti all’interno di molteplici sistemi di dominio, non ultimo il razzismo” (tradução nossa).

A partir deste ponto de vista, é claro que as práticas de fronteiras devem ser observadas à luz das múltiplas configurações de gênero e raça, cuja produção e reprodução são influenciadas pela fronteira, pois se a fronteira tem um papel fundamental na criação da força-trabalho como mercadoria, significa que as maneiras como os trabalhadores são filtrados, bloqueados pelos controles estaduais, têm efeitos maiores sobre as constituições dos mercados de trabalho e, portanto, sobre o trabalho em geral. Conforme bem lembrado por Mezzadra: “neste sentido, eu e Brett Neilson propusemos a formula ‘fronteiras do capital’ para colher esta essencial tendência expansiva que caracteriza a ação do capital do ponto de vista da produção do espaço”88 (MEZZADRA, 2015, p. 21), isto significa que a maneira como as

‘fronteiras do capital’ se articulam junto aos territórios e a suas fronteiras está na origem de novas relações entre capital e Estado. O que Mezzadra propõe é uma leitura destas novas relações à luz da fronteira a partir desta nova epistemologia:

Em border as method, eu e Brett Neilson nos propusemos a ler as relações entre expansão das fronteiras do capital e fronteiras territoriais na época da globalização em uma perspectiva distinta. Nos parece, para simplificar, que uma essencial mobilidade investiu as configurações espaciais que caracterizam nosso tempo89 (MEZZADRA, 2015, p. 23).

O que isto significa? Basicamente, não que as fronteiras tenham se tornado irrelevantes, mas que houve uma proliferação destas. Não se trata de pensar a contradição entre a facílima circulação das mercadorias e a dificílima circulação das pessoas, mas pensar que tanto as fronteiras tradicionais como as novas fronteiras administrativas (como as Zonas de Processamento e Exportação – ZPE – por exemplo, uma parte do Brasil que não é regida pelas normas que regem a produção industrial no resto do Brasil) têm um papel importante, pois agem cada vez mais não segundo os processos que têm lógica industriais, mas os processos que têm lógica financeira.

Isto não significa que não existem mais regras, mas que o capitalismo contemporâneo tende a multiplicar as formas de trabalho submetidas à exploração

88“In questo senso, io e Brett Neilson abbiamo proposto la formula “frontiere del capitale” per cogliere questa essenziale tendenza espansiva che caratterizza l’azione del capitale dal punto di vista della produzione di spazio”

(tradução nossa).

89In Border as Method, io e Brett Neilson abbiamo proposto di leggere i rapporti tra espansione delle frontiere del capitale e confini territoriali nel tempo della globalizzazione in una diversa prospettiva. A noi pare, per dirla in breve, che un’essenziale mobilità abbia investito le configurazioni spaziali che caratterizzano il nostro tempo”

econômica (as ligadas à economia do conhecimento, as redes das economias populares e sociais) e que ao mesmo tempo a nível global temos uma contínua reorganização dos espaços (nascem mercados regionais e continentais – o Mercosul por exemplo – mas o mesmo tempo se descompõem os mercados nacionais, nascem cidades globais e outros ambientes que têm uma própria autonomia normativa e governamental também). Temos aqui um contínuo reconfigurar de fronteiras do capital que deve lidar com fronteiras territoriais sem aparência de perspectiva de estabilização destas relações.