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Pierre Bourdieu: a luta simbólica na criação das fronteiras

3.1 SOCIOLOGIA DA FRONTEIRA: OS CLÁSSICOS

3.1.3 Pierre Bourdieu: a luta simbólica na criação das fronteiras

Pierre Bourdieu (1930-2002) foi um autor extremamente prolífico, tanto na sociologia como na antropologia, e de certa forma também na filosofia. Suas obras refletem seus interesses de pesquisa ao longo da sua vida: desde a literatura, a arte, a pedagogia, passando pela etnografia, a linguagem, até a televisão, ele enfrentou um amplo leque de temas e deixou contribuições interessantíssimas. Não poderia faltar neste arco-íris de análise algo relacionado às questões fronteiriças, fato este abordado a seguir.

Antes de abordar especificamente sobre a fronteira, é importante ressaltar primariamente a noção apresentada por Bourdieu sobre de capital simbólico43,

definido como todo conjunto de características (língua, religião, etnia, nacionalidade, entre outros) que distingue uma pessoa de outra, e que nos caracteriza socialmente. A noção de simbólico possui um papel muito importante na obra de Bourdieu, podendo-se ousar relatar que o seu projeto de trabalho foi criar uma “sociologia do simbólico”. O autor usa esta palavra para definir tudo aquilo que se refere ao papel

42 “It depends on the maintenance of a boundary” (tradução nossa).

43 “Chamo de capital simbólico qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) [...] é um capital

com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento [...] é uma propriedade qualquer – força física, riqueza, valor guerreiro – que, percebida pelos agentes sociais dotados das categorias de percepção e de avaliação que lhe permitem percebê-la, conhecê-la, e reconhecê-la, torna-se simbolicamente eficiente, como uma verdadeira força mágica: uma propriedade que, por responder às ‘expectativas coletivas’, socialmente constituídas, em relação às crenças exerce uma espécie de ação à distancia, sem contato físico. Damos uma ordem e ela é obedecida: é um ato quase mágico” (BOURDIEU, 2007a, pp. 149-50; 170).

do sujeito na construção e no funcionamento da realidade social: o simbólico se refere à esfera do subjetivo, em contraposição ao objetivo, ao material.

O capital simbólico se define, portanto, em relação a qualquer objeto, ou propriedade social, no momento em que lhe é reconhecido um valor pelos membros da sociedade. Este tipo de capital constitui aquele prestígio, aqueles recursos pessoais, que cada um possui e luta diariamente também para aumentar, para poder alcançar assim, graças a ele, altos valores de reconhecimento social dentro dos campos nos quais atua. No final das Meditações pascalianas (2001), Bourdieu refere que a luta social, mesmo quando parece motivada por algum interesse material, é sempre, também, uma luta para o reconhecimento social, e este reconhecimento não é distribuído casualmente, depende da composição e do volume de capital, também simbólico.

Ligado a fio duplo com o capital simbólico, tem-se o poder simbólico. Um explica o outro e um se sustenta no outro, por isso, torna-se interessante abordar o poder simbólico, mesmo que de forma breve. “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2007b, p. 7-8). Se trata de um poder, conforme o autor francês define, sutil, disfarçado e que existe e perpassa os sistemas simbólicos que criamos (arte, religião e língua). Através destes sistemas simbólicos estruturados (que exercem poder estruturante), o poder simbólico constrói uma ordem de conhecimento do mundo: estes sistemas apontam como são as coisas, como elas devem ser e como deve-se acreditar que é justo que sejam (BOURDIEU, 2007b). Aparece aqui, portanto, uma luta entre as diferentes classes para conseguir impor a definição de social que mais se ajusta à própria visão de mundo e a seus interesses, adaptando-se perfeitamente às fronteiras (maiores informações serão detalhadas adiante), pois as condições de sua produção e circulação, ou como diz o autor francês, “as funções que elas cumprem” (BOURDIEU, 2007b, p. 13), são um reflexo de sua estrutura. O poder simbólico é, então, a capacidade de criar algo tangível a partir de uma palavra, o poder de fazer crer, por exemplo, que quem vive além desta linha (ou deste rio, ou deste monte) é diferente, e de impor, assim, uma visão de mundo específica, sem necessitar da força física: é uma relação dialética que existe entre os que exercem o poder e os que a ele estão sujeitos dentro de todos os campos. É o poder que pode ser exercido pela ordem das coisas; uma ordem que, separada de sua origem histórica e da sua relação com as

formas de domínio, tende a ser percebida como natural, legítima. Disto segue que, quanto mais a ordem das coisas é percebida como natural pelos dominados, mais facilmente se realizam formas de domínio pelos dominantes (aqueles que detêm o poder simbólico e que podem definir ou mudar a ordem das coisas).

Voltando a atenção novamente para o capital simbólico, o autor explica (BOURDIEU, 2007a) que este conceito lhe serviu como modelo para uma pesquisa que rendeu o livro A Distinção (2015). Esta obra monumental analisa diversos comportamentos sociais relacionando às “posições sociais (conceito relacional), as disposições (ou os habitus) e as tomadas de posição, as escolhas que os agentes sociais fazem nos domínios mais diferentes da prática, na cozinha, no esporte, na música, na política, entre outros” (BOURDIEU, 2007a, p. 18). A partir disto, tenta-se entender como funcionam os comportamentos que criam esta distinção do título, atitudes que tendem a dividir, separar, criar fronteiras entre as pessoas (que tem determinados comportamentos, que consomem determinados objetos) e os outros (que não os têm, ou que não os consomem). Estas fronteiras sociais que se criam existem a partir da quantidade de capital que cada um possui e que está disposto a gastar para mantê-las. Como exemplo, tem-se as escolas que, conforme o autor nos relata (BOURDIEU, 2007a, p. 36-37), servem como demónios de maxwell para fazer uma triagem das partículas (alunos) que se movimentam dentro do campo escolar e separar assim os detentores de capital cultural daqueles que não possuem este. As próprias condições de vida e de estudo de cada aluno, em cada escola, instituem e reforçam fronteiras sociais parecidas com aquelas que dividiam a nobreza da plebe antigamente.

O capital simbólico é, portanto, a ferramenta que serve para criar estas fronteiras sociais, mas não apenas elas. O autor se interessa também pelas fronteiras físicas que separam populações e que, assim como as fronteiras sociais, são fruto de lutas simbólicas entre os detentores de capital que definem quem deve estar de um lado ou outro, e onde começa a distinção entre autóctones e estrangeiros.

Há, em Bourdieu (2007b), uma menção específica à questão da fronteira física em seu livro O poder simbólico. Mais especificamente no capítulo V - “A ideia de região” –, é discutido a noção de região, no sentido de território geograficamente limitado a ser analisado interdisciplinarmente, para assim conseguir aprender o conceito, sua gênese e as representações a ela associadas.

O debate sobre a questão da região é interdisciplinar, envolvendo, portanto, geógrafos, economistas, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais. A ciência social (mas não só ela) é obrigada a criar categorias para facilitar suas análises, sendo que a noção de região não pode fugir desta categorização. Sabemos que no momento em que criamos categorias, como por exemplo região, fronteira, ou também etnia e etnicidade, estamos classificando (BOURDIEU, 2007b). Fazemos isto tanto na ciência social como no dia a dia, aparentemente para facilitar o entendimento, a compreensão, embora não se deve esquecer nunca que estas “classificações práticas estão sempre subordinadas a funções sociais e orientadas para a produção de efeitos sociais” (BOURDIEU, 2007b, p. 112).

Ainda – e nisso o autor francês assemelha-se a Fredrik Barth –, estas representações práticas das classificações “podem contribuir para produzir aquilo por elas descrito ou designado, quer dizer, a realidade objetiva” (BOURDIEU, 2007b, p. 112). Ou seja, ao criar uma classificação, uma separação, por exemplo, acaba-se produzindo a realidade desta separação. Seria como se, ao criar uma fronteira, fosse criada a real separação entre, por exemplo, duas etnias. Esta separação, que na realidade não existia antes da classificação, é fruto da produção de efeitos sociais, que por sua vez é derivante da própria necessidade desta classificação.

Este desejo classificatório, que muitas vezes não passa de uma forma de luta para autodefinir sua identidade, é um desejo que remete à criação de características derivantes de origens, línguas, sotaques, entre outros. Características estas que podem servir para informar aos outros (fazer os outros crerem) que existem grupos sociais divididos e separados com estilos de vidas e costumes distintos e – sempre por meio destas classificações e das separações que delas podem derivar – inventar do nada alguns grupos sociais que às vezes nem existiam antes (ou até, no limite, desfazer grupos já existentes).

A possibilidade destas classificações serem aceitas representa, portanto, “o poder de impor uma visão do mundo social através dos princípios de divisão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade e a unidade do grupo” (BOURDIEU, 2007b, p. 113). Ou seja, se trata aqui da capacidade que um grupo tem de se autodefinir como tal e, mais importante, de ser visto pelos outros como um grupo distinto dos demais. Criam-se assim fronteiras entre grupos onde antes nada havia.

Pierre Bourdieu, nesta sua obra, tenta entender como se dá a construção simbólica de uma determinada região, mas é patente que isto deve passar pela criação/construção de fronteiras que possam assim delimitar e cercar esta região. Sabendo que não existem critérios que possam atribuir um sentido de naturalidade a determinadas regiões ou fronteiras (fronteiras naturais? Regiões naturais? O que seriam estas naturalidades?), é importante concentrar no processo que cria estas fronteiras (e com isso as regiões) e que faz com que a elas seja atribuído um valor de realidade e passem, assim, a existir. A fronteira é o produto de um ato de delimitação e é criada por alguém que juridicamente tem o poder e a autoridade de criá-la e fazê- la passar assim a existir. Se trata, portanto, de algo que se torna real, mas que nada tem na realidade de real. A fronteira é o resultado de relações de força para legitimar as delimitações.

Diferente de Barth, o autor pensa a fronteira como algo de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que ela produz uma diferença cultural entre duas regiões esta mesma diferença é produzida também por ela (há o claro exemplo das políticas escolares linguísticas como uma forma de influenciar a cultura de determinado lado da fronteira). De qualquer forma, Bourdieu foca seu interesse na questão da criação das regiões e dos regionalismos: ele tenta entender como se cria um discurso regionalista que tenta impor uma nova definição de fronteira e, legitimando esta última, possa assim passar a validar a região que ela delimita. O foco da sua análise é o discurso que cria a fronteira, o discurso que cria novas regiões, novas identidades, e consequentemente as relações de poder que existem na tentativa de fazer aceitar este discurso e, a partir dele, criar uma nova realidade social compartilhada.