• Nenhum resultado encontrado

3.1 SOCIOLOGIA DA FRONTEIRA: OS CLÁSSICOS

3.1.4 Elias: uma fronteira em processo

Modernamente foi o príncipe que sentiu a necessidade de materializar os limites de sua contestada autoridade. Foi o Renascimento que lhe forneceu os meios de chegar a isso: o mapa, a exploração topográfica, o interesse estratégico. As primeiras fronteiras traçadas no mapa são as da autoridade do soberano, da monarquia administrativa. O que ainda está impreciso e indeterminado na realidade, aparece exato na carta geográfica (CARVALHO, 1939, p. 109).

Norbert Elias (1897-1990), migrante e sociólogo alemão, foi um dos maiores pensadores das ciências sociais do século passado. Infelizmente por uma serie de circunstâncias, teve que esperar quase o final da sua vida para obter o devido

reconhecimento, uma vez que suas obras foram descobertas tardiamente pela academia.

Autor prolífico, escreveu a maioria de suas obras relativamente cedo, mas o fato de ser cidadão alemão de origem judaica, na década de 1930, influenciou sua carreira acadêmica (além de sua vida). Por causa do nazismo, foi forçado a emigrar, primeiro para a França, depois para a Inglaterra, Gana e, finalmente, Holanda. Algumas das suas pesquisas mais famosas foram desenvolvidas naquela época de diáspora e só puderam ser publicadas muito tempo depois: A sociedade de corte (2001), foi escrita no início dos anos 30, mas publicada apenas em 1969. A sociedade dos indivíduos (1994), é de 1939, assim como O processo civilizador (1994), apesar de ambos os livros terem o devido reconhecimento apenas a partir da década de 1970. Uma obra fundamental para o entendimento do pensamento do autor alemão é o seu Was ist Soziologie?, traduzido em português com o título traiçoeiro e aparentemente simplificador de Introdução à sociologia (2008). No entanto, o que pretende-se analisar aqui o seu processo civilizador, pois percebe-se facilmente como Elias, por meio da noção de figuração, consegue romper o monopólio da noção de separação entre indivíduo e sociedade e abrir assim o caminho para um melhor entendimento da sua sociologia alcançando o seu conceito de processo civilizador44.

3.1.4.1 Processo civilizador e fronteiras

O processo civilizador moderno caracteriza-se pela criação e reforço de fronteiras nacionais, sendo a criação dos Estados-nação a prova mais patente disso. Importante ressaltar, além da criação das tradicionais fronteiras nacionais, tem-se a criação de fronteiras entre “civilizações” (Ocidente e Oriente) e fronteiras internas (as fronteiras interétnicas, por exemplo), percebendo assim como estas fronteiras construídas ao longo do processo civilizador não passam de uma maneira de marcar uma separação entre nós e eles.

44 Elias explica o processo civilizador (1993) como um processo não no sentido de melhorar alguma sociedade

(a ideia tradicional de civilização vs barbárie), mas como um processo que modela determinadas condutas sociais para adaptá-las a um modelo que hoje podemos definir como moderno. Um processo que se fundamenta basicamente em duas ideias centrais: a divisão do mundo em estados nações e a ampliação do modo de produção capitalista em economia (GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012). Ambas as ideias se reforçam, de qualquer forma, no momento em que há um processo contínuo de construção de fronteiras.

Ao pensar que o mundo atual está separado por aproximadamente 248 mil quilômetros de fronteiras (FOUCHER, 2009 apud GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012), podemos perceber que a ideia de um mundo separado e dividido está bem estabelecida como natural. Elias (1993) acredita que a formação do mundo atual se deu através de um processo civilizador, sugerindo que este, além de ter todas as características já mencionadas, engendrou um processo de construção de fronteiras e de reforço das separações. Afinal, não é possível pensar numa nação rodeada por uma fronteira que a separa de outras nações, como um corpus único de cidadãos que se sentem pertencentes a apenas um grupo; pelo contrário, tem-se também, cada vez mais fortes, a construção de fronteiras internas (sejam elas étnicas, religiosas, entre outras) que reforçam a relação estabelecidos/outsiders. Segundo Elias e Scotson (2000, p. 208-209):

Trata-se da questão de por que a necessidade de se destacar dos outros homens, e com isso de descobrir neles algo que se possa olhar de cima para baixo, é tão difundida e enraizada que, entre as diversas sociedades existentes na face da Terra, não se encontra praticamente nenhuma que não tenha encontrado um meio tradicional de usar uma ou outra sociedade como sociedade outsider, como uma espécie de bode expiatório de suas próprias faltas (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Conforme Renato Janine Ribeiro (ELIAS, 1994), se o processo civilizador é entendido “como processo, como verbo que se substantiva, o civilizar dos costumes”, e as fronteiras, para André Roberto Martin (1994, p. 46 apud GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p.3), “aparecem como as moldura dos Estados-nações”, então podemos deduzir que as fronteiras criam uma moldura para um modelo civilizacional criado junto ao Estado-nação no mundo moderno, sendo uma parte fundamental para o processo civilizador que Elias apresenta. Fronteiras que são reforçadas por meio da criação/imaginação de uma comunidade nacional (recintada por elas), uma grande família, conforme relatado por Frantz Fanon (2008, p. 126-7 apud GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p. 7):

[...] a família na Europa (e certamente não só ali), representa uma maneira que tem o mundo de se oferecer à criança. A estrutura familiar e a estrutura nacional mantêm relações estreitas. A militarização e a centralização da autoridade de um país conduzem automaticamente a uma recrudescência da autoridade paterna. Na Europa, e em todos os países ditos civilizados ou civilizadores, a família é um pedaço da nação (FANON, 2008, p. 126-7 apud GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p. 7).

O monopólio do Estado-nação para a formação de uma comunidade no processo civilizador é o monopólio das fronteiras físicas que emolduram o território do qual os sujeitos passam a fazer parte. Praticamente, o domínio sobre o território define um domínio sobre as identidades daqueles que fazem parte dele, criando assim uma separação: quem está dentro versus quem está fora. Nasce assim uma nova relação estabelecidos-outsiders baseada nas linhas fronteiriças que permanecem perenemente em tensão, pois é definida politicamente entre grupos que vivem em tensão e definem o dentro/fora de cada sociedade ou Estado:

[...] os monopólios e os poderes moderno-contemporâneos articulam-se definindo a ‘exatidão’ do território e da população. De modo semelhante, as relações entre populações, comunidades grupos e pessoas tendem a se desenvolver também a partir de uma racionalidade ‘exata’ (‘nós somos isto, e eles são aquilo’) (GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p. 15).

O “nós” é, portanto, o normal, já o “eles”, representa o errado, o anômalo. Nesta tensão, as relações estabelecidos/outsiders se criam, se renovam e se moldam continuamente, fazendo e desfazendo relações fronteiriças, pois como já mencionado por Barth (1998), as fronteiras territoriais ou étnicas definem suas próprias territorialidades.

Repetindo (mas, como diziam os romanos, repetita iuvant), o processo civilizador é, portanto, um processo de construção de fronteiras: cada Estado-nação tem suas fronteiras, sua nacionalidade, seu “dentro” e seu “fora”, seus estabelecidos e seus outsiders. Além da divisão tradicional entre quem tem o mesmo passaporte e quem não o tem, são criadas também relações interno-externo dentro do próprio Estado-nação (diferentes etnias, regiões diferentes de origem dos cidadãos de um país), como também entre comunidades transnacionais (Oriente e Ocidente). Como lembrado por Bruno Latour (1994, p. 96 apud GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p. 16):

Nós, ocidentais, somos completamente diferentes dos outros, este é o grito de vitória ou a longa queixa dos modernos. A Grande Divisão entre Nós, os ocidentais, e Eles, todos os outros, dos mares da China até o Yucatán, dos inuit aos aborígenes da Tasmânia sempre nos perseguiu. Não importa o que façam, os ocidentais carregam a história nos cascos de suas caravelas e canhoneiras, nos cilindros de seus telescópios e nos êmbolos de suas seringas de injeção. Algumas vezes carregam este fardo do homem branco como uma missão gloriosa, outras vezes como uma tragédia, mas sempre como um destino. Jamais pensam que apenas diferem dos outros como os sioux dos algonquins, ou os baoulés dos lapões; pensam sempre que diferem

radicalmente, absolutamente, a ponto de podermos colocar, de um lado, o ocidental, e de outro, todas as outras culturas, uma vez que estas têm em comum o fato de serem apenas algumas culturas em meio a tantas outras. O Ocidente, e somente ele, não seria uma cultura, não apenas uma cultura.

Pode-se dizer, com base no autor francês, que o processo civilizador no sentido de processo de construção de fronteiras não é uma configuração apenas de modos de agir, mas também uma configuração social e sobretudo espacial que deriva da fragmentação do mundo contemporâneo. Desta maneira, este “fronteiramento” acaba definindo um jeito certo de viver (estabelecidos, ocidentais) e um jeito errado (outsiders, todos os outros), quase uma ordem normal versus uma desordem anormal que define e estigmatiza quem mora fora das fronteiras definidas do nosso país como inferiores (remete-se aos Bolivianos e Paraguaios, como eles são vistos pelos brasileiros, ou aos índios, ou ainda aos nordestinos, como vistos por certa parte do país). O que se tem é, portanto:

[...] um processo civilizador como processo de fronteiramento (que) define o ‘Nós’ e o ‘Eles’. As fronteiras internacionais são a materialidade definidora de quem pode ficar dentro e de quem deve permanecer fora. Indesejáveis, desajustáveis, incivilizados, desordeiros e incômodos, como “ovelhas negras”, podem e devem ser expulsos, mancham a ordem e o progresso, ou, caso contrário, deverão, quando for possível, tornarem-se “brancos”, ordeiros e trabalhadores (GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p. 18).

E ainda, “o processo civilizador constrói fronteiras. As fronteiras, dialeticamente, civilizam os sujeitos, os grupos, as comunidades e as sociedades, os tempos e os espaços modernos - contemporâneos” (GOETTERT; SOUZA; ABREU, 2012, p. 18). São estas fronteiras, mais uma vez, que definem a maneira como alguém deve ou não se comportar, quais são os costumes aceitos e quais não.