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3.1 SOCIOLOGIA DA FRONTEIRA: OS CLÁSSICOS

3.1.1 Simmel e a fronteira como fato sociológico

O primeiro autor entre os clássicos da sociologia a tratar diretamente a questão da fronteira foi o alemão Georg Simmel. Em um capítulo específico de sua monumental obra Sociologia (2018), o autor trata do espaço e (d)os ordenamentos espaciais da sociedade. Ao discorrer sobre o espaço e, sobretudo, sobre as formas que a vida em sociedade assume nele, Simmel mostra a importância que têm as fronteiras no configurar-se e reconfigurar-se destas formas, já que “o espaço se decompõe em pedaços que se apresentam como unidades e - como causa e como efeito disto - estão rodeados por fronteiras”26 (SIMMEL, 2018, p. 752). Estes pedaços,

estas formas sociais em que se decompõe o espaço como um todo (e que podería erroneamente conduzir a imaginá-los como definidores da subjetividade individual), são a parte deste espaço realmente relevante ao sociólogo, pois é neles que deve-se prestar atenção quando quer-se entender como se dão algumas interações sociais. Para esclarecer melhor este ponto, é importante ressaltar que já no excurso do

26 “Lo spazio si scompone in pezzi i quali si presentano come unità e - come causa e come l’effetto di ciò - sono

primeiro capítulo do seu livro (SIMMEL, 2018), Simmel relata que a base da associação em sociedade é dada pelo fato que os indivíduos que a produzem por meio da interação (e produzem estas formas no espaço), não são eles mesmo definidos por esta interação: “a maneira de estarem associados é determinada e co- determinada pela maneira de não-estarem-associados”27 (SIMMEL, 2018, p. 95). Isto

significa que o “a priori da sociedade consiste, portanto, no fato que a vida não é totalmente social”28 (DESIDERI, 1993, p. 114), ou seja, que os indivíduos não se

encontram totalmente definidos pelos lugares que ocupam nas configurações espaciais e associativas: o fato deles interagirem e produzirem dinâmicas associativas não significa que estas os condicionam e os definam totalmente.

O sociólogo italiano Fabrizio Desideri, ao tentar esclarecer as noções simmelianas de espaço e de forma, apresenta a fronteira como ponto central de todo o pensamento de Simmel: “se não central, a questão da fronteira é com certeza nevrálgica para toda a operação simmeliana [...] a questão da fronteira, poderíamos dizer, é o terminal nervoso do intelecto simmeliano”29 (DESIDERI, 1993, p. 105). Na

sua opinião, percebe-se ao ler Simmel que a relação opositora fundamental no pensamento do autor alemão – aquela entre vida e formas – é basicamente uma questão de fronteiras. Fronteiras estas que mudam em continuação, deixando a vida entrar e sair das formas, ou seja, deixando as formas se alterarem, mas também se fixarem por meio de fronteiras que se consolidam; ainda mais que “do conflito em geral, em todas as configurações que o termo assume, a fronteira é o lugar próprio (seja de sua gênese, seja de sua fenomenologia)”30 (DESIDERI, 1993, p. 105); o

espaço como um todo é, portanto, limitado por fronteiras e perenemente negociado. Pode-se entender o espaço como um lugar de perene conflito e contínua construção de novas fronteiras.

O fato dos indivíduos se associarem inaugurou no espaço onde se encontram estas diversas formas de estar juntos. Para entender todas estas novas formas, pesquisadores precisam atentar especialmente ao espaço em que isso se dá:

27 “Il modo del suo essere associato è determinato o condeterminato dal modo del suo non-essere-associato”

(tradução nossa).

28 “L’apriori dela società consiste dunque nel fato che a vita non è del tutto sociale” (tradução nossa).

29 “Se non centrale, la questione del confine è senz’altro nevralgica per tutta l’operazione simmeliana. [...] la

questione del confine, si potrebbe dire, è il terminale nervoso dell’intelletto simmeliano” (tradução nossa).

30 “Del conflitto in generale, in tutte le configurazioni che il termine assume, il confine è il luogo stesso (sia della

Kant, num trecho, define o espaço como ‘a possibilidade do estar juntos’, e isto corresponde também sociologicamente a esta definição, dado que a ação recíproca faz com que o espaço, antes vazio e nulo, se torne algo para nós, e preencha o espaço a partir do momento que o espaço a torna possível31 (SIMMEL, 2018, p. 748).

Estas formas que surgem no espaço possuem algumas características que consideramos importante apontar, uma das mais importantes é a “exclusividade do espaço”, assim definida, pois segundo Simmel (2018), existe apenas um único espaço geral do qual todos os pequenos espaços particulares fazem parte. Apesar de que esta limitação em relação ao espaço possa gerar uma possível sobreposição de formas, ele tem as ideias bem claras sobre como esta separação/superposição se dá. Segundo o autor, existem dois tipos de relações sociais possíveis num determinado espaço físico: a primeira se dá quando uma determinada formação social se coloca num determinado espaço e não há neste espaço lugar para outra formação social (usando como exemplo o Estado, pois não existem dois Estados no mesmo território); a segunda se dá quando no mesmo espaço podem coexistir duas ou mais formações sociais. Neste caso, temos formações que não têm limitações determinadas e para as quais o espaço não tem peso ou importância.

Sendo assim, é fundamental que seja questionado, sociologicamente, qual é o significado das formas de qualquer associação e como estas formas podem, eventualmente, influenciar outros aspectos da realidade social. A propósito, torna-se importante recordar que a dinâmica do espaço influencia também a forma como o pesquisador acaba analisando determinados processos. Por exemplo, não é a proximidade com alguém que gera sentimentos de vizinhança ou estranhamento, mas alguns processos psíquicos que podem depender sim do espaço, mas não são causados por ele. Um erro comum às vezes cometido, nos alerta o sociólogo alemão (2018), é exatamente considerar certas pré-condições – sem as quais alguns acontecimentos não poderiam acontecer – como causas formais destes mesmos acontecimentos (por exemplo, pensando na expressão muito comum segundo a qual “o tempo cura tudo”, podendo parecer que o tempo seja a causa da superação de certos traumas e, ao pensar desta maneira, deixa-se de lado os verdadeiros motivos

31 “Kant, in un passaggio, definisce lo spazio come ‘la possibilità dell’essere insieme’, ed esso corrisponde anche

sociologicamente a questa definizione, in quanto l’azione reciproca fa si che lo spazio, prima vuoto e nullo, divenga qualcosa per noi, e riempie lo spazio in quanto lo spazio la rende possibile” (tradução nossa).

psíquicos que levam a estes esquecimentos). Isto acontece também quando pensamos no espaço. Por exemplo, dificilmente olhando um quadro queremos saber como se configura nele o espaço; o que se deseja saber, em realidade, é a disposição de certas formas específicas nesse espaço fechado, que é a moldura de um quadro. É importante, portanto, entender o que Simmel quer dizer quando nos fala que:

O espaço permanece sempre a forma em si privada de eficácia em cujas modificações se manifestam, sim, as energias reais, mas somente da mesma maneira como a língua exprime processos conceituais que se desenrolam com certeza em palavras, mas não por meio das palavras32 (SIMMEL, 2018,

p. 746).

O autor nos explica como a delimitação espacial do grupo social contribui para definir a interação no seu interior de uma maneira bem específica. A moldura é uma metáfora importante no pensamento simmeliano e ele a usa para fazer entender como funciona a delimitação espacial do grupo social a partir da ideia de um quadro, pois esta delimitação do espaço para um grupo social tem o mesmo peso que uma moldura tem para uma obra de arte:

A moldura delimita a obra de arte em relação ao mundo circunstante e a fecha em si mesma; da mesma maneira, em uma sociedade a relação dos elementos que a compõem, a unidade da ação reciproca, adquire sua expressão espacial na fronteira que a emoldura: a fronteira constitui uma maneira de “recortar” o espaço por meio da qual se fornece sentido às atividades sociais33 (MANDICH, 1996, p. 9).

A fronteira delimita, portanto, os grupos sociais, assim como uma moldura delimita uma obra de arte: ela delimita o lugar onde fazem sentido determinadas ações sociais.

É sempre importante lembrar que estas fronteiras/molduras das quais o autor menciona não são fixas, mas estão perenemente em discussão ou em construção, “a fronteira [...] não é um fato espacial, mas um fato sociológico formado espacialmente”34 (MANDICH, 1996, p. 9). Simmel nos alerta continuamente sobre a

32 “Lo spazio rimane sempre la forma in sé priva di efficacia nelle cui modificazioni si manifestano sì le energie

reali, ma soltanto così come la lingua esprime processi concettuali che si svolgono certamente in parole, ma non mediante le parole” (tradução nossa).

33 “La cornice delimita l’opera d’arte rispetto al mondo circostante e la chiude in se stessa; nello stesso modo, in

una società̀ la relazione degli elementi che la compongono, l’unità dell’azione reciproca, acquista la sua espressione spaziale nel confine che la incornicia: il confine costituisce un modo di “ritagliare” lo spazio attraverso il quale si da senso alle attività̀ sociali” (tradução nossa).

natureza social das delimitações espaciais, já que o espaço é continuo e não tem fronteiras preestabelecidas. Segundo o autor (2018), por exemplo, a percepção das fronteiras puramente políticas é muito mais forte em comparação às fronteiras naturais (por exemplo uma montanha ou um rio). Giuliana Mandich percebeu claramente isso em seu texto quando relata:

O descobrimento das fronteiras constitui um caso específico dos processos de limitação social, ou seja, aqueles processos através dos quais se escrevem as linhas de demarcação que regulam as relações entre os indivíduos ou definem os pertencimentos35 (MANDICH, 1996, p. 9).

Imagina-se o espaço ocupado por alguns grupos sociais como a unidade social que rege estes mesmos grupos. Este espaço possui a mesma dúplice função que uma moldura possui para um quadro: delimitar a obra de arte em relação ao mundo externo e fechar ela em si mesma. Isto significa que dentro da moldura existe um mundo com suas regras que não correspondem necessariamente às regras do mundo ao redor. Da mesma maneira, uma sociedade fechada dentro de suas fronteiras também é vista como coerente e rigidamente regrada: ao pensar na força da imagem que possui uma linha de divisão interestadual, uma linha imaginária que se torna quase algo físico. Porém, ao analisar melhor, percebe-se que perante a natureza qualquer fronteira é arbitrária, nada pode separar nada de ninguém, e é exatamente por isso que a força da conexão social que a fronteira oferece é interessante.

A noção de limite/fronteira é muito importante em todas as relações humanas, embora deva-se pensar no limite em sua noção sociológica, ou seja, pensar na interação de uma pessoa com outra pessoa, pois neste sentido “cada um dos dois elementos age sobre o outro pondo-lhe um limite, porém, o conteúdo deste agir é exatamente a determinação de não querer ou poder agir além desta barreira, portanto, sobre o outro sujeito”36 (SIMMEL, 2018, p. 755). Não são apenas as cidades,

os terrenos ou os Estados que se delimitam, mas também as próprias pessoas que nestes lugares habitam: se limitam entre si, cada personalidade cria em si a ideia de

35 “L’individuazione dei confini costituisce un caso particolare dei processi di limitazione sociale, cioè̀ di quei

processi attraverso i quali si segnano delle linee di demarcazione che regolano le relazioni tra gli individui o definiscono le appartenenze” (tradução nossa).

36 “Ognuno dei due elementi agisce sull’altro ponendogli il limite, ma il contenuto di questo agire è appunto la

possuir alguns elementos próprios, criando assim o que é simbolizado pelo limite espacial, a separação entre a esfera de ação deste e a esfera de ação do outro. Mais uma vez é importante ressaltar que “o limite não é um fato espacial com efeitos sociológicos, mas é um fato sociológico que se forma no espaço”37 (SIMMEL, 2018,

p. 756).

Pode-se pensar também em outra situação: não são importantes apenas as ações recíprocas que acontecem quando há interação entre um lado e outro da fronteira, mas é importante o que esta fronteira, este limite, significa para as pessoas que estão enquadradas nela (ou de um lado, ou de outro). É preciso lembrar que não é a amplitude dos limites que oferece determinada configuração social, mas as tensões que se desenvolvem no interior das fronteiras, que por sua vez são as que configuram estes limites. Uma fronteira pode ser estreita demais para algumas pessoas porque, por exemplo, limita certas energias que não podem se desenvolver internamente ou larga suficiente para outros pelo motivo oposto.