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A FRONTEIRA NO IMAGINÁRIO FICCIONAL: DO TENENTE DROGO A JON

Como já percebido, o mundo da literatura, do cinema, da narrativa em geral oferece muitos tópicos relacionados à ideia de fronteira. Se assistirmos a qualquer filme de faroeste, a fronteira é presente na grande maioria dos casos como um lugar a ser conquistado pelos cowboys ou pelos pioneiros. O mesmo acontece ao

Estados nacionais estão em constante movimento, comandados por forças centrípetas ou centrífugas” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 43).

22 A Marcha para o Oeste, um plano governamental para incentivar pessoas a se mudarem para as regiões

escassamente povoadas no centro do Brasil, foi implementada durante a ditadura Vargas e ideologicamente influenciada pelo mito da fronteira e dos pioneiros como implementadores da unidade nacional.

assistirmos um filme de ficção científica23, nos quais o espaço é visto como algo a ser

conquistado e explorado, pedaço após pedaço.

Não é apenas nos filmes, porém, que encontramos presente a noção de fronteira. Ela está presente nas narrativas mais clássicas da literatura mundial, sendo um dos mais famosos O deserto dos Tártaros, que Dino Buzzati escreveu em 1945. Nele, o jovem protagonista tenente Drogo, é enviado para a Fortaleza Bastiani para cuidar da fronteira deste país imaginário e protegê-lo da chegada dos invasores, os Tártaros. A vida deste jovem tenente transcorre na espera de uma invasão que nunca acontece, guardando uma fronteira que nunca foi ultrapassada por ninguém, em uma fortaleza que nunca serviu para nada, uma fronteira que precisa ser defendida, mesmo que ela nunca em realidade tenha separado algo ou alguém, já que além da fortaleza só existe o deserto e nada mais. Drogo desperdiça sua vida inteira na fortaleza para defender uma linha imaginária que deveria ser o lugar onde ele combateria e conquistaria honra e valor militar, lutando contra os Tártaros na longínqua fronteira do império.

Se pensarmos em outros exemplos narrativos, é fácil lembrar de muitos outros livros, filmes ou seriados em que este tema é tratado. O seriado americano Lost, produzido pelo canal ABC entre 2004 e 2010, por exemplo, narra a história de um grupo de sobreviventes a um desastre aéreo em uma ilha aparentemente deserta. Um dos momentos mais importantes deste seriado é o momento em que os “outros” (os moradores originais da ilha, que não era deserta como os protagonistas acreditavam, e com os quais estes estão em conflito) traçam uma fronteira que não deve ser ultrapassada por ninguém, delimitando assim um lugar onde nossos heróis podem viver com tranquilidade e paz. O mundo de Lost, o mundo desta ficção televisiva, é feito de fronteiras, um mundo de divisões rígidas e claramente demarcadas, onde os protagonistas querem apenas tranquilidade e paz, e onde eles só podem ter esta tranquilidade e esta paz se não ultrapassarem as fronteiras impostas. No entanto, Lost é também um mundo onde as coisas mais interessantes e enriquecedoras acontecem quando algumas pessoas ultrapassam estas linhas imaginárias, que são as fronteiras criadas. Quando os “mocinhos” entram no mundo dos “outros”, encontram comida, ferramentas e outras coisas positivas, descobrem e

23 O monólogo inicial da sigla de abertura de todos os episódios da versão original do seriado Jornada nas Estrelas

entendem mais sobre o lugar onde se encontram, enriquecem em várias coisas, desde bens materiais até conhecimentos. O mundo das fronteiras criado para separar os outros dos protagonistas serviria para oferecer tranquilidade (e é isso que a maioria da comunidade pensa). Na realidade, o atravessamento destas fronteiras é o que garante melhores condições de vida e maior clareza: graças inclusive às esporádicas interações entre os dois grupos de iguais (os protagonistas e os outros), ambos obtêm melhorias e conquistas. Mas, ao mesmo tempo, o mundo de Lost é parecido com o Oeste selvagem, onde qualquer um pode se comportar de uma maneira não esperada, irracional. Por isso, é melhor fugir ou ser o primeiro a atirar. É neste sentido que as fronteiras são importantes neste seriado, pois graças a elas podem ser reduzidas ao mínimo as possibilidades de aparecimento do inesperado, do incomum, do diferente.

Outro seriado americano de grande sucesso mundial que trata este mesmo fenômeno é Game of Thrones. Produzido pelo canal americano HBO e televisionado entre 2011 e 2018, tem como ponto forte, entre mil conflitos, traições e dragões cuspidores de fogo, a presença de uma muralha de gelo no extremo norte do país. Esta muralha marca a fronteira entre o mundo dos civilizados e o mundo dos chamados “selvagens”, a fronteira entre o conhecido e o desconhecido é delimitada por uma muralha que serve para defender o território dos perigos que vêm do além. Mais uma vez, nossos “mocinhos” ao atravessar a fronteira e cruzar até o outro lado só têm a ganhar: percebem que os selvagens não são tão selvagens como imaginavam, ganham conhecimento e ferramentas para enfrentar os perigos que podem encontrar e percebem que é a muralha, enquanto fronteira, que cria a diferença entre eles e os moradores do outro lado. Em determinado momento, os “civilizados” convidam os “selvagens”, os moradores do outro lado da fronteira, para atravessar esta e se pôr a salvo deste lado da muralha, uma vez que haveria a chegada de um “exército de mortos”. No momento em que estes “refugiados” chegam ao lado civilizado, aparecem os conflitos com os moradores autóctones e, como o seriado é imaginado numa quase-idade média, o líder dos mocinhos é morto devido a sua decisão de abrir as fronteiras para fazer passar os “diferentes”. Um mundo extremamente violento que espelha nossa realidade e nossos piores medos.

3 CAPÍTULO 2: POR UMA SOCIOLOGIA DA FRONTEIRA

Ao pensar em fronteiras, vêm à cabeça uma infinidade de conceitos, como a divisão entre Estados, separação de áreas científicas, divisão entre bairros dentro de uma mesma cidade, entre outros. É fundamental que se pense nesta categoria de análise como algo a ser compreendido e pensado além dos conceitos comuns: a fronteira pode ser uma ferramenta de pesquisa para entender o mundo social, permitindo um trabalho de interpretação dele. Obviamente, para que isso ocorra, torna-se necessário inicialmente esclarecer o significado de “fronteira”. É preciso, primeiramente, pensar nos conceitos com os quais interpretamos o mundo. O cientista social, assim como qualquer outro pesquisador, precisa inicialmente compreender que os termos que ele usa para seu trabalho são criados socialmente e devem ser de-reificados, para evitar o alerta que nos fazem Berger e Luckmann sobre os perigos da reificação24, principalmente quando tratada na análise social.

Por este motivo, é fundamental discutir, conforme mencionado por Milena Meo, o uso de termos como “fronteira” e “etnia”, entre outros, pois “concorda-se com Foucault que a linguagem não é apenas o lugar no qual as relações de dominação e de exclusão se cristalizam, mas também o lugar onde elas se negociam, se produzem e são reproduzidas”25 (MEO, 2010, p.3). Neste sentido, é possível pensar que a noção

de fronteira não passa de uma ficção (se pensarmos na própria etimologia da palavra “ficção”, que vem do latim fingere, que significa basicamente “criar, formar, inventar”), ou seja, algo que não existe e que em algum momento foi criado, surgiu do nada.

A seguir, será abordado claramente como o outro não é visto inicialmente como um diferente, pois é preciso todo um percurso de criação, de invenção, construção, abstração e classificação que, transformando o outro em diferente, ajude a gerar uma fronteira entre nós e ele. Este percurso teórico será iniciado com uma abordagem

24 “A reificação é a apreensão dos fenômenos humanos como se fossem coisas, isto é, em termos não humanos

ou possivelmente super-humanos. Outra maneira de dizer a mesma coisa é que a reificação é a apreensão da atividade humana como se fossem algo diferente de produtos humanos, como se fossem fatos da natureza, resultado de leis cósmicas ou manifestações de vontade divina. A reificação implica que o homem é capaz de esquecer sua própria autoria do mundo humano e, mais, que a dialética entre o homem, o produtor e seus produtos são perdidos de vista pela consciência. O mundo reificado é por definição um mundo desumanizado. É sentido pelo homem como uma facticidade estranha, um opus alienum sobre o qual não tem controle, em vez de ser sentido como o opus proprium de sua mesma atividade produtora” (BERGER; LUCKMANN, 2010, p. 118- 119).

25 “Convenendo con Foucault che il linguaggio non è solo il luogo in cui i rapporti di dominio e di esclusione si

geral sobre como a sociologia tratou o tema da fronteira, focando cronologicamente em alguns autores importantes. Este percurso será importante para perceber como ao longo de quase todo o século XX a fronteira foi pouco tratada pelos sociólogos (uma “propriedade” então quase exclusiva dos geógrafos) e que ao ser enfrentada mostrou-se importante principalmente ao aspecto de separação territorial que ela assume. Apenas no final do século passado, alguns poucos autores enfrentaram o tema de um ponto de vista distinto, e estes border studies começaram a ser mais e mais vistos em publicações. Serão apresentados alguns autores da nova geração de estudos sobre a fronteira, sendo estes relevantes para nossa pesquisa. Finalmente, há uma outra questão importante sobre as fronteiras que aparece e da qual tem-se consciência: as fronteiras “outras”, sejam elas de gênero, étnico-raciais, há um movimento dito pós-colonial que se ocupa também destas fronteiras e, em parte, serão apresentados aqui.