Estar no mundo é estar em relação. Esta relação é marcada pela complementaridade. Nenhum ser do mundo é auto-suficiente ou independente, somos um campo de interações físicas, químicas, biológicas, sociais e simbólicas. Desde o nascimento e, até mesmo antes, estabelecemos uma relação de trocas entre o mundo exterior e o mundo interior. A respiração inaugura este movimento. Esta relação de trocas é marcada pelo ritmo entre movimentos diferentes: expansão e contração, alto e baixo, noite e dia, claro e escuro, vazio e pleno.
A paz é um movimento de integração dos pólos opostos pela afirmação da complementaridade entre eles. A paz é um movimento de inclusão. A paz é uma força de mediação para que uma comunicação não seja rompida e a relação seja mantida.
Para falar sobre água e paz eu gostaria de trabalhar com a materialidade simbólica dos movimentos da água. Para começar poderíamos pensar juntos sobre a natureza da água. O círculo é a forma expressiva da água. Onde quer que se apresente ela busca a forma circular: a espiral, o redemoinho, a gota. Por não resistir à gravidade assume a linearidade ao cair na terra. Pelo relevo escorre, flui e aceita a sua contranatureza: a gravidade. Então faz meandros, contorna, adapta-se e torna-se rio, lago, cachoeira, torrente, água subterrânea, fonte. Entre as correntes impetuosas do ar – também em redemoinhos – e a densidade da terra, a água se faz mediadora. Desta mediação resulta uma troca energética que altera elementos diferentes. É a água que permite esta relação entre forças antagônicas, não através da passividade, mas do movimento.
O movimento da água é que permite trocas, circulação, ritmo, inclusão. O ser da água quando encontra superfícies limítrofes move-se em espiral, entra em relação com a diferença e recria-recria-recria-recria-recria-sesesesese. O fluxo das águas é inexorável, correr faz parte da sua natureza. Ela aceita ser tocada mas, nunca, detida. Diante dos obstáculos ela os contorna e flui. Por esta razão, considero-a como a metáfora mais fluida da paz.
Para que haja paz, seres diferentes estabelecem trocas, preservam suas naturezas. A paz, assim como a água constitui-se nesse movimento e portanto não aceita a estagnação de energias. A circulação, a inclusão e a troca são qualidades da paz e da água. A paz não é o contrário da violência, pois estaria, se assim fosse, confinada em uma relação de opostos
Água
sem mediação. A paz inclui a violência e seu contrário, a não-violência. Ao estabelecer uma relação criativa entre os contrários, torna-se o próprio fruto dessa relação.
A água circula a pedra durante um longo tempo, até que resulte a rocha novamente em solo, em areia informe para novas criações. Para Tehodore Schwenk, pensador alemão, em sua obra Caos sensível, a água é a melodia de fundo que acompanha incessantemente a vida
Vera Lessa Catalão
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Para os chineses, a água é o ser das dez mil formas. No período de gestação dos seres, a água é o elemento essencial que recebe e registra a inscrição multifacetada do código da vida. Pela sua plasticidade ela é o ambiente, por excelência, das trocas e das relações inter e intracelulares que permite que cada embrião possa tornar-se o seu projeto de vida. Mais tarde, por intermédio da circulação, a água, juntamente com o ar, garante o exercício das funções vitais, mantêm as trocas, o ritmo e o movimento da vida. A paz, como a água, é essencial na manutenção da vida na medida que respeita a diversidade de expressões da vida e a natureza complementar de seres diferentes. A paz ativa necessita a garantia de uma relação que não nega, mas religa os seres para assegurar a permanência da vida. Mesmo na morte, a paz e a água são proativas, permitem que vermes e bactérias dissolvam e recriem a vida.
A humildade é uma outra qualidade pacifica da água, ou aquática da paz: a água coloca-se nos níveis mais baixos do relevo – quanto mais baixo coloca seu leito mais receptiva estende seus braços. O rio principal de uma bacia hidrográfica é o que mais baixo se encontra e pode assim receber e incluir outros. A modéstia da água é louvada pelos taoístas e por S. Francisco de Assis. A paz também é receptiva como um rio que a todos acolhe. É inclusiva, não rejeita mas acolhe a diferença. Não impõe uma forma única aos seres, mas afirma-se nas trocas.
A água é mestiça, impura, e por ser assim torna-se solvente universal. É da natureza da água estar em relação. Para uma gota, isolar-se é morrer. A paz como a água é uma ação amorosa de aproximação de contrários. A paz vive da mistura, do acolhimento, da persistência. Como a água precisa do fluxo para manter-se ativa. A paz, como a água, é um sistema circulatório. Reúne e movimenta pensamentos, emoções e sentimentos humanos seja em diacronia ou sincronia, em sinergia eem estado de amor permanente. Religa forças contrárias, naturezas diferentes e movimentos complementares.
A água preenche os espaços vazios de umidade, fecundidade e viço. Onde se ergue um rochedo, ela o contorna. Quando são colocados obstáculos, a água persevera e trabalha nas brechas. Torna móvel e plástico o que antes era imóvel e empedernido.
Diz o Taoísmo que nada no mundo é mais dócil e frágil que a água. Entretanto,
nada a supera para afetar o que é rígido e forte e ninguém pode igualar-se à água em
e P
a
z
persistência. A paz da água é uma paz que persevera no seu intenso desejo de estar em
relação e em incluir o que está à margem. No leito de um rio, o movimento em redemoinho conduz as águas profundas para a luz da superfície e retroage em sentido inverso com as águas das margens. Incessantemente, une matéria e espírito para a sustentabilidade de toda criação.
Para o poeta TT Catalão a água reduz o peso da gravidade e nos devolve ao flutuar
uterino. Elimina a gravidade da matéria e nos devolve asas.
Rio São Francisco - Barra (BA)
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