• Nenhum resultado encontrado

Sobre a noção de poluição: uma semiótica da natureza doente

Os moradores de Ilha de Maré entendem que existem dois tipos de pessoas: as que têm o corpo fechado e a emoção resistente à poluição química; outras com o corpo aberto, as emoções frágeis e suscetíveis a ela. Há, portanto, pessoas que se poluem por se sentirem frágeis e outras que ainda não se poluíram. A pessoa com mais resistência nem sempre sente os efeitos da poluição em si, ainda que os perceba em outros, na vegetação, no ar e no mar.

Destaca-se, dentre as crenças sobre o corpo poluído, o tabu do corpo feminino quanto à noção de poluição em relação à menstruação. (SARDENBERG, 1994) Quan- do estão menstruadas, as mulheres não podem entrar no mangue “para não sujar a casa de Nanã”. As explicações sobre a poluição têm lugar nas crenças de um mundo sobrenatural e nos mitos que se conservam para manter a “densidade ontológica

MANGUEZAL | 171

aberto. Esta expressão metafórica significa a vulnerabilidade biopsíquica, os medos e ansiedades do sujeito frente ao desconhecido e ao que ele imagina que não pode mudar. Em Ilha de Maré, aberto e misterioso é o mundo ferido pelas “químicas” que vêm do ar, misturam-se com a chuva no mar e no manguezal e modificam a realida- de desses habitantes. Também o corpo fica aberto quando o sujeito teme algo, e ao recear a contaminação pode sentir-se poluído e alvo de sintomas de adoecimentos.

A poluição também é percebida como um acidente provocado pelos proprietários das indústrias, estes que, segundo os entrevistados, seriam desprovidos da crença em Deus e capazes dessa ação maledicente.

Consideram alguns, que o universo espiritual da Ilha de Maré foi atingido, e ci- tam que o mar, como um ente, reagiu a esta poluição, conforme a metáfora: “o mar

mudou e ficou desconfiado de nós”. (AS, 56) Para eles, antes da contaminação química,

a espiritualidade do mar – Mãe-d’água, Iemanjá ou a Dona das Marés – se relacionava com mais intensidade com os pescadores, o que garantia a saúde do ambiente, do corpo e da emoção. No momento atual, o “espírito do mar” se distanciou do lugar maculado pela contaminação química. Para outros, porém, o mar é tão poderoso que continua higienizando o meio ambiente com as forças espirituais. “A água do mar

limpa tudo; e isso tudo (a contaminação) vai passar com o tempo do mar”. (FB, 58) Por

isso, ao imaginar o mar, o tempo e a poluição, os moradores evocam o espírito da Mãe-

-d’água, para lhe pedir proteção. Com isso, tendem a explicar o risco da contaminação

química e da dificuldade da escassez de pescados e mariscos pela vontade divina. Essa explicação contribui para justificar a permanência da comunidade no seu lugar ancestral e manter a expectativa de que o erro das indústrias um dia será corrigido.

Do ponto de vista pessoal, alguns se percebem imunes da contaminação quími- ca que atinge o manguezal e o mar e por isso não ficam poluídos. Entendem que a contaminação vem do ar e passa por fora do corpo humano. Afeta os peixes e os mariscos, suja o ambiente e “os bichos não podem respirar”. (JN, 52) Entendem que é a natureza da pessoa que propicia o surgimento de enfermidades. A susceptibilidade para o risco de adoecimento é explicada de várias maneiras. Não se trata de evitar a poluição pela aparência do corpo, mas pela maneira do indivíduo ser-no-mundo. Sua condição ôntica é revelada desde a infância quando “vai virando uma pessoa [...]

172 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO

mas a gente não conhece logo”. (JO, 90) “A pessoa pode ser ruim ou boa e ficar poluída, cheia das químicas por dentro”. (AS, 56)

Outra conotação é a explicação sobre a natureza das crianças, em relação à desnu- trição, pois são consideradas frágeis ou “minguadas, pequenas, fracas, nascidas sem lua ou em lua minguante”, pois demoram a andar e têm dificuldades para mamar. Para as mães, essas crianças são as que mais sofrem com a contaminação do ar, pois sentem asma e choram muito. O temor desse tipo de agressão ambiental é diferente do que sentem em relação à poluição orgânica ou doméstica que faz parte de suas condições de vida que beiram a miséria social. Por isso, o termo “contaminação” é reservado para classificar os poluentes químicos industriais.

Para os moradores, poluído é o efeito da contaminação no ser humano e na vege- tação. No corpo a agressão química provoca “fraqueza, anemia, perda de peso, tristeza

do nada” (MR, 27) e afeta também a sua organização social. A estrutura do conhe-

cimento sobre os motivos de qualquer adoecimento das pessoas da comunidade se apoia em outros modelos explicativos, distintos da medicina oficial, e estão relacio- nados a um campo complexo de valores, crenças e hábitos vividos em comum e com referências no passado. (MENÉNDEZ, 1997)

Referem sintomas de mal-estar e de enfermidades diversas sendo as respirató- rias as mais citadas. O adoecimento é também o “quebranto” das forças do corpo provocado pela poluição, ou seja, uma espécie de desentendimento do corpo com sua natureza, seu ambiente e com as coisas sagradas. A contaminação significa a pre- sença desse ente maligno e externo, nomeado “químico, sobre o mundo dos ilhéus, trazendo-lhes transtornos sociais, emocionais e físicos”.

Ao sentirem-se poluídos pela contaminação, percebem o corpo com “cheiro de químicas”, o que é exemplificado com a sensação de que o leite materno tem cheiro de tinta. Do ponto de vista toxicológico, sabe-se que o leite pode apresentar con- centrações de metabólitos resultantes de contaminantes lipossolúveis, como é o caso dos HPA (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos), o que poderia justificar essa percepção das mulheres. (LAUWERYS, 1992) Sobre o leite do peito contaminado, há divergências entre os moradores, pois é difícil para a nutriz imaginar-se poluída.

MANGUEZAL | 173

há consciência por parte de muitos moradores de que as autoridades oficiais são responsáveis pelo meio ambiente, assim como pela falta de controle dos poluentes das indústrias e nada fazem para evitar a contaminação química. Também, não solucionam a contaminação orgânica. Os habitantes da Ilha não se consideram res- ponsáveis por ações que possam resolver os problemas citados, pois, sendo “pobres e

pequenos” não têm valor social. Por estas aflições “perdem o sono de tristeza”. (MN, 50)

Muitos entrevistados disseram que as pessoas mudaram seus comportamentos umas com as outras depois da contaminação química. “Ficaram poluídas, cismadas;

caladas [...] umas ficaram mais tristes; tem mãe que não entende filha”. (AL, 40) Dizem

que “depois da borra no céu, até briga apareceu. Deve ser o medo desses perigos”. (JS, 88) Decifram o risco no céu como uma malignidade no ar que interfere na maneira de pensar o mundo, o lugar e o semelhante.

Em relação ao contágio por vento e cheiros, vale lembrar, que a concepção am- biental de doença explicada com a teoria dos miasmas, hegemônica do século XVI à metade do século XIX, justificava a transmissão das doenças pelo ar e odores. (GOUVEIA, 1999) Essa noção de causalidade foi superada pela teoria microbiana desde o final do século XIX.

Os moradores classificam a poluição ambiental de natureza química centrada na percepção sensorial, excluindo a contaminação orgânica, pois esta já é parte do mun- do cotidiano. Os ventos e os cheiros podem atingir o “corpo aberto”. Nesse sentido, o adoecimento do sujeito decorre da sua prédisposição em relação ao vento “carregado” de contaminantes. Mas, tudo depende da posição do vento que atua pela “vontade de Deus”. O vento pode trazer ou levar o cheiro para outro lugar e despoluir a Ilha.

Em geral, interpretam o ar impuro que chega com os ventos, a partir de uma de- terminada escala de valores entre cores de fumaça e ventos que vêm do mar e afetam o corpo que se polui. “Entra pelo nariz, pela boca e depende da pessoa, uns encarnam

e outros se cuidam, não deixam o corpo aberto no vento e se fecham”. (AS, 56) “Por que uns sentem as coisas e outros não”?. Pergunta Áurea numa roda de conversa com as

rendeiras de Santana. Para ela, “quem está atrapalhado, bebe cachaça, fica largado e

sujo, a contaminação vem e polui o corpo”.

Os moradores fazem referências visuais sobre a contaminação. Para isso, observam a tonalidade do ar: 1) cor escura ou cinza é sinal de maior contaminação, sobretudo,

174 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO

a que pode poluir o corpo de forma grave e provocar intensas dores de cabeça; 2) cor branca ou rosa faz as crianças sentirem asma; 3) vermelha e com cheiros de gás “tira o sono de qualquer pessoa” (MB, 59); 4) também, há jatos de fumaça à noite que diferem do que ocorre durante o dia e espalham ainda mais “a poeira” (DN, 50) ou a “borra” (NA, 60) perigosas para toda a vida do lugar.