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O trabalho de pesca das marisqueiras em Ilha de Maré

O trabalho dos pescadores artesanais na Ilha de Maré, incluindo a coleta de maris- cos, se constitui na produção realizada por homens, mulheres e crianças, com poucas modificações em relação aos métodos praticados há milênios de anos. A produção é individual, com baixa divisão técnica, em que o(a) pescador(a) é o proprietário(a) dos seus instrumentos de trabalho, e sobrevive da venda do produto do seu traba- lho, no caso, o peixe ou o marisco. Apesar de se tratar de trabalho artesanal, esta modalidade sobrevive em um contexto capitalista contemporâneo, em que o produto do trabalho, no caso o marisco, é vendido ao comerciante por preços reduzidos, e se destinam ao mercado consumidor da cidade do Salvador.

Para se conceber um trabalho como de natureza artesanal, inicialmente analisou o modo de contrato social que se estabelece entre renda e trabalho (BRAVERMAN, 1980), ou seja, entre a remuneração recebida e as relações de trabalho existentes no processo de trabalho. Não se verificou relação de trabalho assalariada e evidenciou-se que o valor do trabalho está contido no valor do produto final, expresso, de uma parte, no valor de troca do marisco quando há a sua venda ao atravessador, em que o produto da atividade artesanal é vendido ou trocado por outro equivalente no mercado. No valor do produto encontra-se o valor do trabalho, não havendo salário envolvido no processo, semelhante ao encontrado por Rosa e Mattos (2010) em pescadores da Baía de Guanabara. De outra parte, muitas vezes o produto do trabalho é utilizado para a alimentação da própria família quando não há produção suficiente ou impossibilidade de comercializar em função do tempo ou da ausência de comprador. Não existe a divisão técnica do trabalho, exceto quando as crian- ças e adolescentes que não participam da pesca de alguns mariscos, como a coleta do caranguejo ou outras atividades no mangue. Com isso, podem-se caracterizar os aspectos centrais da organização social da pesca artesanal da seguinte forma: 1) Relações de trabalho; trata-se do trabalho familiar realizado principalmente pelas mulheres e crianças, sendo estas geralmente acompanhadas das mães ou parentes próximos. Nesta relação, o valor do trabalho está relacionado com a oferta do ma- risco e deve ser vendido o mais rapidamente possível em função da falta de logística de congelamento adequado dos mariscos. Cada quilo de mariscos preparado para

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o consumo é vendido em média por R$ 3,00 a 5,00, o que soma uma renda mensal em torno de R$ 50,00 a 80,00, revelando a desvalorização econômica do produto do trabalho (como referência, o salário mínimo do período era de aproximadamente R$ 500,00). Dessa maneira, a família se configura como unidade econômica produtiva. Não há, portando, forma industrial ou em cooperativa na cultura de sobrevivência econômica dessa categoria profissional; 2) Na divisão sexual do trabalho, os ho- mens da família, trabalham na pesca artesanal de peixes, camarão e outros animais marinhos. A participação dos homens na coleta do marisco ocorre em situações específicas premidas pela necessidade de sobrevivência ou quando em situação de deficiência física ou idade. Ocorre também quando não tem recursos para aquisição da rede de pesca ou de uma canoa. Isto significa que, para o homem, a mariscagem não é a opção principal, diferentemente das mulheres.

Nas atividades de coleta, transporte e preparo dos mariscos, as mulheres detêm o saber e exercem práticas de todas as etapas do trabalho, no arenoso das praias e no mangue que se somam ao trabalho doméstico tradicional, configurando uma dupla jornada. O trabalho na pesca pode resultar em ausências demoradas da residência e requer maior vigor físico em algumas ocasiões. A coleta de mariscos é realizada durante o dia, segundo ritmo das marés, o que favorece o retorno à residência para manter as atividades domésticas (Foto 1). Muitas vezes, marisqueiras transportam os filhos para as atividades de coleta e organizam trabalho familiar com participação das crianças. São as condições históricas e sociais, os valores, as tradições, o acesso ao ensino e a situação econômica que proporcionam essa divisão do trabalho por sexo, definindo uma condição de gênero essencial para análise do trabalho (BRITO, 1999) em que a mulher assume a centralidade no desenvolvimento dessa modalidade de pesca artesanal.

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Foto 1- Mariscagem no arenoso da praia – vista panorâmica local de trabalho na praia da atividade de coleta de mariscos em Ilha de Maré, Ba, 2007

Alguns riscos verificados:

Ausência de EPI ou sistemas coletivos de proteção; alguns usam bonés, não há orientações sobre vestes adequadas...

Ambiente pode estar contaminado por poluição orgânica: fezes e urina de animais.

Luminosidade pela luz solar excessiva: intensificada pelo reflexo no mar; reflexo na areia úmida; além do fato de que o uso de óculos escuros impede a identificação do marisco em função do mimetismo.

Mulheres e crianças em posturas antiergonômicas durante longas jornadas;

Coluna sempre em flexão para raspar a areia e coletar o marisco. A atividade em genuflexão e coluna em flexão se estende durante toda a jornada. A exposição ao sol é frequente, mesmo quando o tempo encontra-se nublado; é comum a exposição às intempéries.

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Foto 2 - Instrumentos de trabalho: balde e saco com o marisco para transporte; colher ou gancho para raspar a superfície da areia; sexta para lavar o marisco;

e rede para extração de mariscos

Fonte: elaborado pelos autores.

Para Araújo e Rotemberg (2011) é fundamental dar visibilidade às diferenças de características e condições de trabalho entre homens e mulheres para evitar a naturalização da divisão sexual no trabalho e a referência masculina na análise dos condicionantes e determinantes dos agravos à saúde. Nesse sentido, o perfil das particularidades do adoecimento das marisqueiras não se deve aos aspectos biológi- cos da condição feminina e sim à divisão sexual do trabalho resultante de processos históricos e sociais que determinam essa diferenciação.

O trabalho da pesca artesanal é regulamentado por meio da inscrição na colônia de pescadores sediada no povoado de Porto do Cavalo e, dessa forma, a filiação ao regime previdenciário como pescador artesanal pode ser estabelecido. O trabalho precoce inicia na infância, criança em geral com quatro a cinco anos acompanhando a mãe, e de forma sistemática a partir dos sete anos de idade. Nos relatos, o trabalho precoce tem uma relação com o abandono das atividades escolares. Comumente, os agentes entrevistados informam a ocorrência comum do trabalho precoce na região (Foto 3).

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causa da maré... Se a gente fosse estudar não dava pra gente comer, não dava pra gente se vestir. (Marisqueira da Comunidade de Bananeiras)

Foto 3 - Trabalho precoce comum nas atividades de extração de mariscos

Fonte: elaborado pelos autores.

A exposição aos riscos ocupacionais se inicia precocemente a partir dos cinco, seis ou mais anos de idade. O tempo maior de exposição aos riscos ao longo da vida e as características psíquicas e biológicas da criança intensificam efeitos tóxicos, deformidades, cânceres, dentre outros.

O trabalho do idoso encontra-se presente, sendo limitado pelas condições de saúde necessárias para a coleta de alguns mariscos. Verificou-se a ocorrência do trabalho da gestante e nutriz durante as visitas aos locais de mariscagem, sem orientações de pro- fissionais de saúde sobre estratégias de proteção da maternidade, do feto e da criança. Quanto ao conteúdo do trabalho originário do saber popular informal, observou- se que os pescadores artesanais não aprendem o ofício em escolas técnicas e sim por meio dos pais e avós que portam saberes oriundos da tradição. Associado a isso, há uma alta taxa de analfabetismo que dificulta o apresendizado por meio do ensino formal. No entanto, o saber tradicional condiciona a sobrevivência dessas comunida- des com riqueza de informações e estratégias de pesca muitas vezes desconhecidas na esfera do saber técnico.

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Processo de trabalho: objeto e meios de trabalho