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Capítulo I. Sociedade (Civil) Moçambicana face ao Capitalismo

3. Historicidade das Organizações da Sociedade Civil Moçambicana

3.1. Projetos da Sociedade Civil

3.1.1. Campanha Terra

A Campanha Terra tinha como objetivo principal a discussão de uma Lei de Terras que refletisse os anseios dos cidadãos e das comunidades, sobretudo na perspetiva de a terra continuar a ser, legalmente, um bem comum, e de as comunidades verem reconhecidos os seus direitos consuetudinários de uso e aproveitamento. À volta da Campanha da Terra, estiveram envolvidas cerca de 200 organizações, incluindo ONGs nacionais e estrangeiras, organizações comunitárias de base, instituições religiosas dos mais diversos matizes, académicos e pessoas singulares89.

A problemática da terra foi e continuará a ser vital para países como Moçambique, onde o sector agrário é uma fonte de rendimentos indispensáveis para a reprodução social e local de emprego para a esmagadora maioria da população. O fim da

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Jornalista, historiador e analista de questões socioeconómicas (falecido).

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Professor universitário, economista e investigador no IESE.

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Professor universitário, investigador e diretor do Grupo Cruzeiro do Sul (falecido).

89 Joseph Hanlon and Paolo de Renzio, ‘contested Sovereignity in Mozambique: the Dilemmas of Aid

Dependence’, Global Economic Governance Programme Working Paper, no.25, Oxford university, 2007, p.12, acedido em 06 de abril de 2011.

156 guerra civil entre a FRELIMO e RENAMO abriu a possibilidade da corrida para as

melhores e bem localizadas terras para a agricultura, exploração florestal e turismo cinegético. Na esteira do PRE, o Land Tenure Centure, cavalo de batalha da USAID, e algumas ONGs do Norte pressionavam pela titulação individual da terra como única forma de serem assegurados os direitos à terra.

A movimentação em torno da terra faz-se sentir em três frentes ao mesmo tempo: no seio da Igreja Católica, através da Cáritas e das Comissões Diocesanas para a Justiça e Paz, a nível do CCM, através da Organização Ajuda Mútua, e no interior da União Nacional dos Camponeses (UNAC), por força dos conflitos que iam surgindo (e continuam surgindo, como é o caso da ProSavana, as desterritorializações e Reassentamentos para dar lugar aos megaprojetos) com a privatização acelerada das machambas estatais e a tentativa de usurpação de terras das cooperativas. O elemento aglutinador das três frentes foi a discussão de uma nova Lei de Terras para Moçambique, cujo movimento catalisador foi a Campanha Terra. Em torno da Campanha Terra reuniram-se cerca de 200 organizações, como fizemos alusão, desde as ONGs nacionais e estrangeiras até às OCBs, passando pelas confissões religiosas (cristãs, muçulmanas e

maziones90), até académicos e pessoas singulares interessados numa causa comum para que o acesso e a posse da terra pelos mais pobres não ficassem dependentes de emissão de um título de propriedade; para o efeito urgia a necessidade de reconhecimento dos mecanismos costumeiros de gestão da terra e a construção de relações entre privados e famílias com base no princípio de vantagens mútuas (Palmer, 2005).

De acordo com José Negrão (2003: 7), a Campanha Terra acabou por estabelecer algumas das características básicas da nova imagem da sociedade civil moçambicana:

- a adesão por causas comuns, independentemente da diversidade de ideologias; - a possibilidade de participação das organizações comunitárias de base (OCBs) sem ter de ser obrigatoriamente pela mão de uma ONG urbana;

- a plena participação das Confissões Religiosas, quer sejam cristãs, muçulmanas ou locais/tradicionais;

- a oportunidade de definição de estratégias afins com o setor privado;

- a utilização das instâncias do Estado (poder legislativo para fazer a lei e poder executivo para aprová-la) sem ter, necessariamente, que recorrer ao poder político, no sentido de tomar o poder.

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157 Foi na sequência da Campanha Terra, terminada em 2000 (após os assassinatos do

jornalista independente e investigador de casos de corrupção Carlos Cardoso, como descamos antes, e do jovem economista que investigava o mega desfalque financeiro no Banco Austral, Siba-Siba Macúacua, e de mais de 100 cidadãos na cadeia de Montepuez no norte de Moçambique que protestavam contra os resultados das eleições presidenciais e parlamentares, alegando não terem sido livres, justas e transparentes), que várias forças da sociedade civil se uniram para exigir a moralização do Estado e o fim da corrupção. Desta feita, jornalistas, associações sócioprofissionais e numerosos membros das elites urbanas juntaram-se à dinâmica anteriormente iniciada. Como consequência, foi aprovada uma lei onde constava que a sociedade civil seria responsável pela seleção de três candidatos à Presidência da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que seriam votados pela própria Comissão e cujos membros fossem indicados pelos partidos representados no Parlamento Nacional. Este é um caso único em todo o continente africano e talvez mesmo a nível mundial (Negrão, 2003: 7).

A Campanha Terra, no fim da década de 1990, teve uma participação maciça e genuína de OSCs e culminou com a promulgação de uma nova Lei de Terra. Ela foi cuidadosamente orquestrada, em que participaram 15.000 ativistas voluntários formados, e as mensagens da campanha levaram à inclusão dessas preocupações na Lei da Terra. Dessa experiência podem tirar-se as seguintes lições de como participar com êxito numa discussão sobre políticas: importância da coesão em torno de uma causa comum, independentemente da diversidade ideológica; possibilidade de participação direta das OCBs, em vez de participarem por intermédio de uma associação urbana; participação efetiva de vários grupos religiosos – sejam cristãos, muçulmanos ou de religiões locais; uma oportunidade para definir estratégias compatíveis com as do setor privado; uso das instituições do Estado (desde as legislativas, para a aprovação da lei, às executivas, para formular a lei) sem a necessidade de tomada de poder; participação em pé de igualdade com as OSCs internacionais.