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Capítulo II. Conceitos-Chave

5. Democracia Participativa

Numa época em que se assiste a um modelo de governação (democrática) muito fragilizado e desligado do seu vínculo contratual, e a um regresso ao “totalitarismo” e utilitarismo (Mill, 2005: 41), os cidadãos já não se veem apenas como meros eleitores nem como simples consumidores, mas, sim, como detentores de direitos e deveres que demandam luta e defesa, pois, segundo Augusto Santos Silva (2006) “participar significa

influir diretamente nas decisões e controlar as mesmas”. Os cidadãos já não se

identificam, necessariamente, com partidos políticos, mas com causas ou reivindicações específicas (Giddens, 2012: 67-68).

36 Embora, geralmente, seja consensual que os partidos políticos são um veículo para

a formação da vontade política das pessoas, há que pensar e aceitar outras formas extraparlamentares de representação, de resolução de conflitos e de tomada de decisões. A complexidade da realidade e a exteriorização de outras experiências de democracia demandam a revisão das formas de representação. A democracia representativa dá sinais de estar desajustada ao desenvolvimento da sociedade ou atrasada em relação aos relógios da história. Em consequência do que vem acontecendo, afigura-se impor novos mecanismos de representação que correspondam ao desenvolvimento da democracia social, onde se cruzem as relações verticais e horizontais.

Segundo Sigrid Robteutscher (2000) apud Viegas e Dias (2000: 233), “há um

consenso generalizado entre autores de proveniências muito diferenciadas: o sistema de representação política existente é deficiente e, logo, já não é adequado para expressar as disposições de um público diferente e para responder ao novo desafio de uma ordem social e económica em mudança global”. Então, que fazer? Uma resposta, muito comum

entre académicos e políticos, é a de reforçar o papel OSCs, pois estas preocupam-se em curar ou superar a democracia representativa das suas insuficiências.

A democracia, enquanto discussão da “res publica” (coisa pública), deve ter em conta a participação de todos aqueles que fazem parte da sociedade, ou que a “res

publica” diz respeito. De acordo com Forquilha & Orre (2011: 49), “o pluralismo político realiza-se não somente pelo pluralismo partidário, mas também através da existência de associações civis para diversos interesses e grupos existentes na sociedade moçambicana”. A participação dos cidadãos no processo político para influenciar a

formulação das políticas sociais, a recetividade do governo às demandas da população e a transparência com que trata os seus assuntos são indicadores da qualidade da democracia. Para além da forma mais elementar de participação política, que é o voto livre e periódico para a escolha dos representantes, um regime democrático deve oferecer aos cidadãos outras formas de participação e envolvimento no processo político. Como afirma António Teixeira Fernandes (2014), sem participação ativa, o poder tende a centralizar-se, restringido-se ao regime a aplicação de meras formalidades.

A democracia representativa – caracterizada pela sua configuração representativa, em que o poder das pessoas eleitas se circunscreve a um conjunto de regras designadas por Estado de direito embora, por um lado, represente progresso em relação aos sistemas despóticos e autocratas, por outro, desvela lacunas, incoerências e até paradoxos, o que torna imprescindível a democracia participativa e pluralista. Ou seja, a democracia

37 representativa, se tem caraterizado pela ausência ou pelo esvaziamento ao reduzir-se ao

simples facto de escolha de representantes por meio do voto sem a participação efetiva da sociedade. Dentro disso, acha-se imperioso que se encontre uma nova maneira de democracia que seja abrangente e inclusiva: a democracia participativa (Santos, 2007).

Para promover uma participação efetiva do maior número possível de pessoas, Robert A. Dahl (1992) defende a poliarquia, visto que as sociedades contemporâneas se apresentam como sociedades policêntricas, compostas de muitas organizações. Ele afirma que “em todo o processo de adoção de decisões obrigatórias, os cidadãos devem

dispor de oportunidades apropriadas e equitativas, para exprimir as suas preferências com respeito à solução final” (Dahl, 1992: 135). Advoga, ainda, que a “democracia assim percebida proporciona a cada povo autogovernar-se, acionar o desenvolvimento humano, sobretudo no que concerne à capacidade para exercer a autodeterminação, a autonomia moral e a responsabilidade pelas próprias escolhas (Dahl, 1992: 135)”.

Para que haja ou se faça sentir a democracia, é, portanto, imperativa a

participação política, isto é, a participação em muitas manifestações, a contribuição para

uma agremiação política e a discussão de acontecimentos políticos. A participação política é deveras importante no processo da construção da democracia, de modo especial para a nova democracia moçambicana, pois é por meio dela que os que são deixados à margem (não estão na Assembleia da República ou nos poderes decisivos, como o governo) são incluídos dentro do processo democrático, contribuindo para a definição de políticas de desenvolvimento da comunidade em que estão inseridos.

A participação política da sociedade civil nos processos decisórios é vista por muitos autores como um condimento necessário e imprescindível para o fortalecimento de uma democracia participativa. Para Boaventura de S. Santos (2003), a democracia é um projeto de inclusão social e de inovação cultural que se dispõe como esforço de criação de uma nova soberania democrática. Por sua vez, Pendone (1982) afirma que as necessidades sociais induzem à participação da sociedade civil na formulação e implementação dos programas do governo.

A democracia participativa é, portanto, o reconhecimento da importância da participação direta dos cidadãos a partir de uma articulação entre Estado e sociedade civil para a criação de espaços de resolução através de mecanismos de democracia liberal representativa. Desta maneira, a democracia é entendida como uma gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade (Santos, 2003).

38 Com o desenvolvimento de uma democracia participativa cada vez mais forte e

coerente, no dizer de António Teixeira Fernandes (1997), deseja-se a ampliação da prática democrática para além da mera expressão do voto. Diz este autor que,

“as sociedades não se podem compadecer com cidadanias

passivas. Reduzir a democracia a atos episódicos de quatro em quatro anos ou de cinco em cinco anos é assumi-la como um simples método ou procedimento, retirando-lhe todo o conteúdo substantivo. A atividade social exige decisões quotidianas no que concerne ao bem da coletividade. As decisões individuais são consonantes ou dissonantes com esse objetivo, mas, de qualquer modo, devem ser inseridas na prática democrática de uma sociedade desenvolvida e consciente de si mesma”.

Por sua vez, Diogo Freitas do Amaral (2014: 308) diz que,

“reconhecida a força da Sociedade Civil e a possibilidade de os

órgãos do Estado verem o exercício do respetivo poder dificultado pela atuação daquela, particularmente no momento da execução das medidas políticas antes definidas e aprovadas, a evolução tem sido no sentido de considerar os múltiplos grupos que integram a Sociedade Civil como parceiros sociais – desde logo, confederações patronais, confederações sindicais, profissões liberais, etc. –, levando em conta as suas propostas no momento da definição das medidas políticas. Há nessa evolução a intromissão, num Estado assente no modelo da Democracia Representativa, de elementos de um novo modelo de democracia, o da Democracia Participativa, também chamada Democracia Deliberativa ou Concertada”.

Atualmente, assiste-se a fortes desequilíbrios, na qualidade ambiental, na estabilidade das economias e dos sistemas políticos e na justiça social que comprovam a necessidade de mudança. Ora, a democracia participativa propõe uma mudança que restaura a capacidade de resiliências dos sistemas a partir da capacitação das populações, potenciando o seu capital humano e social. Nesse processo de capacitação, as OSCs assumem um papel central; porém, as suas iniciativas só serão efetivas se, em primeiro lugar, se centrarem nas pessoas com que trabalham – ou seja, na adoção da máxima “trabalhar com e não para” – e, em segundo lugar, cooperarem ativamente entre si e com as entidades do setor público e do setor privado – praticam o trabalho em rede.

É dentro da democracia participativa que se pode falar da boa governação, que é um novo protótipo de regulação social que veio suprir o paradigma previamente em vigor

39 baseado no papel privilegiado do Estado, enquanto ente soberano. O conceito “boa

governação” aparece como um instrumento de institucionalização da governação –

“governance”, e é tido como condição indispensável na promoção da solidez social. A matriz de “boa governação” – que implica, basicamente, a participação política ou dos cidadãos – surge para construir, retificar ou reformar falhanços do mercado, substituindo a lógica economicista pela social. É dentro disso que no período áureo do neoliberalismo se observa um crescimento exponencial de OSCs, muitas delas apostadas em oferecer algum alívio a populações desamparadas em consequência da progressiva extinção das redes de segurança proporcionadas outrora pelo Estado social, encontrando- se tais populações, por isso, atualmente incapazes de adquirir esse apoio no mercado.

De acordo com Cynthian Hewitt de Alcántara, no seu artigo “Uses and Abuseslof

the Concept of Governance” (1998: 1-5)8, a “governance” é um instrumento para

conceber um sistema mais efetivo de autoridade e de regulação no quadro da economia global, o que aventa ser a precondição para a sobrevivência da democracia nos PvDs. Ela concebe governação como a re-interpretação da agenda neoliberal para as instituições internacionais apoiarem o investimento público-privado nestes países. No contexto da democratização, globalização e organização supranacional, ainda na esteira desta autora (Alcántara, 1998: 8), o discurso da governação visa resolver não apenas os problemas dos PvDs, mas a crise internacional sobre o bem-estar e a governação no mundo. Essa abordagem centra-se sobre questões atuais de desenvolvimento, tais como os processos de financiamento, a observância da lei, a democratização, a participação de cidadãos na formulação de políticas entre outros.

Desde os anos 80, a governação a que o Banco Mundial chamou “governance” goza de uma reputação florescente. Ela aproveitou do desencanto crescente em relação à política, ao governo tradicional e à democracia representativa. De facto, os governos dececionam porque parecem que deixam de ter a mão sobre a realidade, sobre os desafios e os problemas das pessoas. A boa governação tem como objetivo resistir à globalização hegemónica que exclui muitas pessoas no processo de “design” de políticas de governação. Ela luta contra o contrato social de exclusão da minoria, da diversidade cultural, do ambiente. Em abono da verdade, a boa governação procura aliar a exigência de participação e de inclusão. A transparência é um dos dos principais pivôs para a boa bovernação, pois ela significa uma tomada e aplicação de decisões segundo as regras e

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40 procedimentos pré-estabelecidos e a disponibilidade, acessibilidade e compreensão da

informação pelos destinatários das decisões.

Podemos, assim, sumarizar dizendo que a boa governação tem a ver com a participação popular na governação, a transparência na gestão da “res publica”, alicerçada em resoluções tomadas sempre de acordo com a lei, regras e informação inteligível ao cidadão, equidade e inclusão, com particular atenção aos mais vulneráveis da sociedade, prestação de contas (“accountability”) e combate à corrupção, sobriedade na gestão do erário público, independência dos poderes públicos.

Pode-se, então, dizer que por democracia participativa e boa governação se prentende colocar o cidadão como agente participante e responsável do processo, quer como beneficiário da proteção social, quer como interventor nos mecanismos instituídos. Trata-se de tomar consciência sobre os problemas sociais e intervir proficuamente com ideias construtivas e sustentáveis diante do poder instituído, e não só. Como afirma José M. L. Viegas (2000: 142), com a democracia participativa torna-se “mais direta e

alargada a participação dos cidadãos na vida política, contribuindo, assim, para a afirmação e consolidação do exercício de cidadania por parte de todos os indivíduos; por outro lado, melhorar as instituições políticas na sua eficácia e transparência de funcionamento, de modo a aumentar a sua credibilidade junto dos cidadãos”.

Embora a democracia participativa seja incontornável no processo de boa governação, não significa que a representativa já não faça sentido, ou seja excluída. Há que fazer combinação delas, pois são complementares. Esta complementaridade implica uma articulação mais profunda entre a democracia representativa e democracia participativa. Supõe o reconhecimento pelo governo de que o precedimentalismo participativo, as formas públicas de monitoramento dos governos e os processos de deliberação pública podem substituir parte do processo de representação e deliberação tais como engendrados no modelo dominante de democracia (Santos, 2003: 65).

Segundo Digo Freitas do Amaral (2014: 309), nos dias de hoje, o Estado deve interagir com a sociedade civil na definição de políticas sociais. o Estado, através do governo, faz uso da boa governação/“governance”, um poder especial de conformação de rumos, objetivos e meios, com atenção aos pormenores, persuasão junto dos parceiros sociais, e procura de consensos que lhe afiancem a anuência franca dos destinatários das políticas públicas no momento em que se passar à concretização dessas políticas.

Boaventura de Sousa Santos diz-nos que há necessidade de renovação da teoria

41 confinem apenas ao ato de votar. Por renovação da teoria democrática, quer dizer, “a

articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa”. Para que

tal articulação seja possível, é preciso que “o campo político seja redefinido e ampliado”, pois, continua, “a teoria política liberal transformou o político numa dimensão sectorial

e especializada da prática social – o espaço social – e confinou-o ao Estado. Do mesmo modo, todas as outras dimensões da prática social foram despolitizadas e, com isso, mantidas imunes ao exercício da cidadania” (Santos, 2013: 225).

A nova teoria de democracia – que também se pode designar por teoria democrática pós-moderna para significar a sua rutura com a teoria democrática liberal – tem, pois, por objetivo alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais da interação social. A (nova) cidadania tanto se constitui na obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado como na obrigação política horizontal entre cidadãos (Santos, 2013: 233). Com isso, revaloriza-se o princípio da comunidade e, com ele, a ideia da igualdade na diversidade, a ideia de autonomia e a ideia de solidariedade.

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