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Capítulo I. Sociedade (Civil) Moçambicana face ao Capitalismo

3. Historicidade das Organizações da Sociedade Civil Moçambicana

3.1. Projetos da Sociedade Civil

3.1.3. Observatório de Pobreza e G20

Com a Constituição de 1990, desenvolveu-se um maior espaço para o associativismo e a defesa de interesses setoriais. É neste contexto de reformulação do papel do Estado e reestruturação política, com o gradual reconhecimento da legitimidade da sociedade civil e dos grupos de interesse, que se estão a desenvolver mecanismos de consulta entre o governo, a sociedade civil, o setor empresarial e os parceiros internacionais sobre as políticas de desenvolvimento económico e social, com destaque para a luta contra a pobreza. Gradativamente, a sociedade civil tem aumentado a sua

160 capacidade de influenciar os processos de planificação e as políticas do governo,

enquanto o governo tem vindo a aumentar os canais de interacção com os cidadãos. O Observatório de Pobreza (OP)91 foi outra iniciativa do governo em 2003, para entrar em diálogo com a sociedade civil relativamente à implementação da estratégia de combate à pobreza e para a concretização dos ODM. Dadas as especificidades de Moçambique, o fórum OP, que continua a existir, inclui o governo de Moçambique (GdM), os parceiros de desenvolvimento e a sociedade civil. Coube ao grupo da sociedade civil definir por quem e como devia ser representada neste fórum e o grupo escolheu uma representação alargada, incluindo organizações religiosas, sindicatos, setor privado, redes, fundações e instituições de pesquisa.

A experiência do Observatório de Pobreza é a seguinte: como espaço criado, tem certas limitações em termos de influência da sociedade civil, dado que o governo define a agenda e é principalmente um fórum consultivo, com pouco espaço para influenciar a definição da agenda; a nível nacional, a institucionalização da representação das OSCs no

OP foi gradualmente cooptada e foi questionada a representatividade do grupo G20 de

atores não estatais; a nível provincial, as OSCs foram gradualmente ganhando uma plataforma, especialmente através de grupos temáticos de trabalho; a experiência recente (2011) mostra um renovado empenho da sociedade civil a nível nacional, com base nas críticas feitas a anteriores órgãos representativos.

A participação da sociedade civil na definição de políticas sociais dá-se em

espaços criados (formais, instituídos pelo governo) e em espaços conquistados

(alternativos aos formais devido a limitação destes). Dentro dos espaços criados, há dois de crucial importância, ambos estabelecidos em 2003 pelo governo e apoiados pelos parceiros de desenvolvimento: o OP e o G20.

O Observatório de Pobreza surge na sequência do movimento pelo cancelamento da dívida externa. Em 1996, foi lançado pelo Banco Mundial e pelo FMI, a iniciativa HIPC (Highly Indexed Poor Country), cuja finalidade era eliminar o que se chamava “Dívida Insustentável dos Países Mais Pobres e Mais Endividados” ou então, reduzir a dívida destes países até ao limite do valor actualizado líquido da dívida considerada

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O Observatório da Pobreza, estabelecido em 2003 como mecanismo governamental, dava à sociedade civil espaço para dialogar com o governo e os PDs. Os Observatórios de Pobreza passaram mais tarde a ser designados Observatórios do Desenvolvimento. Foi o resultado de uma longa luta da sociedade civil para entrar em discussão sobre políticas com o GdM, mas a aquisição do direito de participação da sociedade civil na formulação do documento estratégico PARPA – em Moçambique, onde a sociedade não tinha participado plenamente no processo de formulação da primeira geração de documentos estratégicos de redução da pobreza (PARPA I) – catalisou a nova dinâmica de participação da sociedade na discussão de políticas sociais.

161 sustentável, ou seja 150% do volume das exportações e 250% dos rendimentos do

governo. Nesse mesmo ano, a comunidade doadora internacional aderiu à iniciativa e os termos tradicionais de reescalonamento da dívida pelo Clube de Paris e outros credores bilaterais foram, tanto quanto possível, alterados em conformidade com esses limites92.

Moçambique foi um dos países mais beneficiados com a iniciativa HIPC, tendo a sua dívida baixado de 5,6 biliões para sensivelmente 1,3 biliões de dólares americanos em 1998. O ratio dívida – exportações foi estimado de 200% a 220% para que a iniciativa fornecesse uma solução de saída para o país. Os resultados imediatos alcançados foram satisfatórios e entre 1996 e 2000 a taxa anual de inflação baixou de 47% para 2% e o PIB cresceu em média 10% por ano. Em 2000, o país foi alvo das maiores cheias que a história registou até a essa altura, tendo sido elevadíssimos os prejuízos nas zonas sul e centro, que, literalmente, ficaram submersas por mais de um mês. Como consequência, o Banco Mundial e o FMI decidiram acelerar o alívio da dívida ao perdoar a totalidade do pagamento do serviço da dívida nesse ano e o Clube de Paris adiou o pagamento para quando Moçambique estivesse em condições. Vários credores bilaterais anuíram. Dessa forma, Moçambique reunia as condições para entrar na 2ª fase da iniciativa HIPC, também conhecida por HIPC 2 (Negrão 2003).

Nesta 2ª fase, as Instituições de Bretton Woods disponibilizaram-se a conceder perdão parcelado da dívida, desde que o país continuasse a seguir estritamente o programa aprovado por elas. Os credores do Clube de Paris predispuseram-se a conceder o alívio da dívida em condições claramente preferenciais. Para a aprovação final da passagem para o HIPC 2, foram requeridas quatro condições pelo Banco Mundial e FMI: elaboração de um Poverty Reduction Strategy Paper (PRSP), que em Moçambique foi designado por PARPA (Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta), que conta com a participação da sociedade civil, do sector privado e do cidadão em geral; implementação de um conjunto de medidas relativas ao desenvolvimento social, reforma do sector público e do quadro legal e regulador das actividades económicas; manutenção de um clima macroeconómico estável sobre o controlo do FMI; e confirmação de outros credores de participação no alívio da dívida (idem).

Em 25 de Setembro de 2001, o Banco Mundial e o FMI concluíram que Moçambique tinha satisfeito as quatro condições apresentadas em 2000 e deu os passos necessários para entrar na 2ª fase, tornando-se assim o 3º país do mundo a alcançar esta

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Negrão (2003), Divida Externa, Artigo apresentado na 2ª Conferência da Sociedade Civil Africana, Maputo.

162 fase (depois da Bolívia e do Uganda). A dívida externa passou a ser de 750 milhões de

dólares americanos, tendo sido perdoados para o efeito cerca de 73% do montante inicial. O serviço da dívida passou de 100 milhões por ano em 1988 para uma média de 56 milhões entre 2002 e 2010, o que significa uma passagem em média de 23% das receitas do Estado para 10% entre 2000 e 2010; estima-se em 7% entre 2011 e 2020. A poupança, realizada com a diminuição do serviço da dívida a pagar pelo orçamento, permitiu o aumento de despesas do Estado no PARPA. Em termos numéricos, o Estado pôde disponibilizar mais cerca de 130 milhões de dólares americanos por ano para atividades do PARPA (idem).

A tão desejada plena participação da sociedade civil, do sector privado e do cidadão em geral na conceção do PARPA foi, no entanto, reduzida em consulta esporádica e, muitas vezes, somente com caráter informativo sobre o que se estava a fazer ou já tinha sido realizado. A conceção do PARPA passou a seguir os padrões do neoliberalismo aplicado ao terceiro mundo e as linhas mestras foram desenhadas por um especialista da Universidade de Harvard que se deslocou a Maputo para o efeito. Como consequência, foi ignorada, toda a problemática dos investimentos a realizar para a formação do capital nacional. Com a finalidade de colmatar estas lacunas, a sociedade civil aceitou participar no Observatório da Pobreza, criado pelo governo como fórum para o acompanhamento da implementação do PARPA. O Observatório da Pobreza moçambicano era composto por três grupos de atores: governo, doadores e a sociedade civil em sentido lato (idem).

A seleção de quem deveria constituir o conjunto da sociedade civil coube à própria sociedade em coordenação com o governo. O governo deixou às OSCs a selecção dos seus representantes, onde tanto o setor privado como os sindicatos deveriam estar presentes. Passada a fase da concentração interna, foram identificados os representantes da sociedade civil para o Observatório da Pobreza de Moçambique: 04 representantes das confissões religiosas (02 cristãos e 02 islâmicos); 02 representantes das centrais sindicais (OTM e Sindicatos livres); 03 representantes das associações do setor privado (Associação Comercial, Associação Industrial e CTA); 06 representantes de organizações do 3º Nível (Fórum Mulher, UNAC, GDM, LINK e Teia); 06 representantes das organizações do 2º Nível (FDC, KULIMA, ORAM, Khindlimuka); e 01 representante de um Instituto de Investigação autónomo (Cruzeiro do Sul) (idem).

O Observatório de Pobreza tinha em vista dois objetivos: colmatar a lacuna que se abriu pela não participação da sociedade civil na conceção do PARPA, e estabelecer à

163 escala nacional um sistema de monitoria e avaliação da Pobreza (e não só do PARPA) que

tivesse por finalidade a elaboração do RAP (Relatório Anual da Pobreza) com maior incidência nos pobres. Contudo, o PARPA formulava um problema de doadores como se de um problema moçambicano se tratasse, ao qual dá uma solução também de doadores como se de uma solução moçambicana se tratasse. Ele parte da ideia de que Moçambique é um país com pobres. Conclui, por conseguinte, que o objetivo do desenvolvimento deve ser a eliminação desses pobres. Creio que se trata de intenções nobres, mas extremamente problemáticas como definição de um problema moçambicano.

Para Elísio Macamo93 (2006), na perspetiva moçambicana, o problema da pobreza

não se pode colocar em termos de existência de pobres que precisam de ser eliminados. O problema que se coloca é de um país pobre que deve articular a eliminação da pobreza com o desenvolvimento. O alívio à pobreza, portanto, não podia, nas condições atuais do país, ser um fim, mas sim um meio para se chegar ao desenvolvimento. Diz ainda que De na avaliação que uma comissão conjunta do Banco Mundial e do FMI fez ao PARPA – Juergen Reitmaier, Michael Hadjimichael (ambos do FMI) e Callisto E. Madavo e John Page (da IDA) – recomendou-se a sua aprovação. A recomendação baseou-se em três argumentos: o PARPA, na opinião desta comissão, representa um avanço significativo em relação aos primeiros documentos apresentados pelo governo moçambicano; este último demonstra um forte comprometimento com os objetivos da iniciativa; finalmente, o PARPA é propriedade de Moçambique. Trata-se, como é óbvio, dum eufemismo diplomático que tem pouco a ver com os pobres e com o desenvolvimento de Moçambique.

A melhoria que se verificou nos documentos apresentados pelo governo moçambicano não consistiu numa elaboração mais clara da estratégia de combate à pobreza. O que se verificou foi o ajustamento da estratégia moçambicana à ideologia neoliberal que informa a ação do FMI. Com efeito, a comissão conjunta de avaliação elogia, principalmente, a insistência do governo moçambicano na disciplina fiscal e financeira como condição sine qua non do combate à pobreza. Mesmo a questão da propriedade do programa é bastante problemática. O governo devia ter desenvolvido um programa mais de acordo com a leitura nacional do problema. Contudo, uma vez que se tratava de satisfazer uma condição essencial para beneficiar do perdão da dívida, não havia muito espaço de manobra. De resto, o próprio FMI tratou de garantir a

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164 convergência de estratégias preparando, de antemão, guiões que serviram de ponto de

referência para a elaboração dos PRSP (idem).

Infelizmente, contrariando as expetativas, os PARPAs (I, II) não têm cumprido a sua função de instrumentos de redução da pobreza no país. Provavelmente, o problema de base, está na própria conceção deste tipo de planos e levam-nos a partilhar a opinião de autores para quem os conceitos centrais destes planos, nomeadamente “participação” e “empoderamento” (aqueles que distinguiram dos seus antecessores, os planos de ajustamento estrutural) foram reconfigurados ao serviço de receitas de desenvolvimento, que continuam a seguir um modelo único (“one-size-fits-all”), e foram esvaziados do seu conteúdo político de modo a tornarem-se aceitáveis para todos, estabelecendo-se, assim, uma forma de consenso que deixa pouca esperança em relação à sua real contribuição para a eliminação da pobreza.

Após a aprovação do PARPA em 2006, previa-se a divulgação do mesmo inserido na estratégia de comunicação. Isso não se fez. Num projeto da Christian Aid e Trocaire e num trabalho conjunto realizado pelas organizações religiosas de Moçambique, nomeadamente o Conselho Islâmico de Moçambique, o CCM e a Igreja Católica, de fevereiro de 2006 a Março de 2008, constataram-se que o PARPA I e II não tinham sido divulgados. Os próprios administradores distritais tinham vaga ideia sobre a natureza dos documentos. O que sabiam era o quadro do discurso de políticas sobre o combate à pobreza. Esse tipo de posicionamento discursivo, muitas das vezes, marcha contra o planificado que desrespeita o rítmo do processo doméstico de políticas.

Em 2007, o governo de Moçambique aprovou uma Lei de Proteção Social. Existe algum compromisso no PARPA II, no sentido de se expandir a cobertura da proteção social, embora através do seguro social, por um lado, e da assistência social, por outro. Este PARPA (II) aloca recursos adicionais à proteção pocial, principalmente para a construção da capacidade institucional do Ministério da Mulher e Ação Social (MMAS), como o ministério que dirige a assistência social. No entanto, apenas 0,6% do total das despesas do âmbito do orçamento estatal se destina diretamente à assistência social. Os compromissos existentes estão longe de serem políticas abrangentes de proteção social. Ademais, embora Moçambique seja signatário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual reconhece a proteção social como um direito, esta não é, porém, tratada como tal no PARPA. Ao nível macro das políticas governamentais de proteção social, é ainda vista como um privilégio (Brito et al., orgs., 2010).

165 Apesar de um crescente número de experiências regionais positivas no

desenvolvimento de programas e políticas de proteção social abrangentes, estes empreendimentos ainda enfrentam muitos desafios de Moçambique. Estes incluem a falta de vontade política; a sensibilização e a análise acerca das causas limitadas, consequências e grau de vulnerabilidade; as potenciais vantagens económicas e sociais da proteção social; as barreiras institucionais; as limitações orçamentais e a percepção do risco político (Waterhouse & Lauriciano apud Brito et al, 2010: 30).

A abordagem mais coerente e global para a proteção social em Moçambique inclui a falta de vontade política e uma visão, comummente mantida por políticos e funcionários públicos superiores, de que os pobres deveriam ajudar-se a si próprios para sair da pobreza. Em parte, isso reflete a falta de tradição ou de experiência do Estado em desempenhar um papel na proteção social. Reflete também um temor de que pessoas não merecedoras se tornem dependentes de esmolas – sugerindo uma limitada análise das causas da vulnerabilidade em Moçambique, bem como uma visão indiferenciada dos pobres que são e que não são capazes de trabalhar.

Por sua vez, o G20 surge em 2004 como um grupo constituído por 20 OSCs que compunham o 1º painel que participou no Observatório da Pobreza, mas actualmente é constituído por mais de 20 Organizações. O G20 é uma “plataforma das Organizações da

Sociedade Civil Moçambicana para a participação nos Observatórios da Pobreza ao nível central, provincial e distrital onde tem representações” (G20, 2005: 5). Por

conseguinte, o G20 passa a ser entendido como um “fórum” que congrega várias OSCs actuando em prol do desenvolvimento do país. Tem como estrutura funcional uma Assembleia, o Grupo de Coordenação, um Secretariado, um Grupo Técnico e Pontos Focais ao nível provincial e distrital (apenas em alguns distritos para os pontos focais).

O G20 considera-se uma organização legítima na sociedade moçambicana a representar os cidadãos e as respectivas organizações que fazem parte desta plataforma e comungam dos seus propósitos. Ele encontra a sua legitimidade, para além de criar espaços por meio de encontros abertos à discussão de assuntos inerentes à problemática da pobreza, na procura das preocupações de base que afetam os cidadãos que depois as canaliza para as respetivas OSCs (que compõem o G20) junto do governo e dos parceiros. O G20 afirma, no entanto, que, pelo facto de serem estes a estabelecer uma relação mais estruturada (como interlocutor) com o Governo e Parceiros por meio do Relatório Anual de Pobreza (RAP) e de Observatórios de Desenvolvimento (OD) – que abordaremos em frente – , reforça a sua legitimidade, e ao mesmo tempo, congrega vários

166 estratos das OSCs moçambicana a lutar por uma causa de extrema importância na

sociedade em geral e ser também um interlocutor válido junto do governo e parceiros internacionais (G20, 2005).

Atualmente, o G20 atua através de vários mecanismos, nomeadamente: os Observatórios de Desenvolvimento a nível central, provincial e distrital; os Relatórios Anuais de Desenvolvimento (RAD), capacitação (geralmente nos pontos focais), lobbies, Advocacia e divulgação de matérias ligadas a pobreza. A Organização afirma que o seu papel é exercer “pressão” e procurar influenciar o processo de formação de políticas públicas por meio de RAP e OPs/ODs e consciencializar a sociedade moçambicana sobre as questões inerentes à pobreza. A título de exemplo, ela afirma que não está preocupada com escolas construídas pelo governo ou pelos privados (OSCs), mas, sim, com o número de pessoas que têm acesso à educação ou a que distância estas escolas foram construídas relativamente às povoações.

O OP, que começou a nível nacional e se alargou às províncias, e passou a chamar-se OD, está concebido para ser um espaço de consulta do governo, onde o governo e os parceiros de desenvolvimento são os atores principais e onde a sociedade civil participa anualmente através de fóruns. A agenda e a calendarização são da responsabilidade exclusiva do governo. As queixas comuns de outros participantes nesse espaço têm sido: avisos de última hora, falta de informação prévia sobre os principais documentos e desigualdade na atribuição do tempo, dando à sociedade civil e ao setor privado pouco tempo para prepararem a sua participação e apresentar opiniões.

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