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Capítulo III. Revisão da Literatura sobre Sociedade Civil

1. Historicidade do Conceito de Sociedade Civil

Na atualidade, como veremos, muitos autores olham para a sociedade civil como a “grande ideia do século”, concluindo que não existe solução para os problemas sociopolíticos e económicos que não passe pelo envolvimento da sociedade civil. Todavia, aqueles que são céticos perante esta ideia argumentam que este é um conceito confuso e corrompido pelas elites que dele se servem para justificar agendas ideológicas radicalmente diferentes e profundamente ambíguas. Acrescentam ainda que, sendo um conceito que nasceu num contexto específico da história europeia, tem, por conseguinte, pouco significado em noutros contextos culturais, políticos e económicos diferentes.

A livre interpretação do seu conteúdo permitiu que a sociedade civil passasse a ser utilizada para inumeráveis fins e compreendida com múltiplos significados, onde, simultaneamente, é encarada como um objetivo, um meio e um veículo de mudança, o que deu origem ao desarmonizado conjunto de opiniões à sua volta. Apesar de não existir um consenso teórico em relação à sua abrangência, muitos teóricos, e não só, concordam em afirmar que não existe solução para os problemas sociais, económicos e políticos no século XXI que não envolva a sociedade civil numa ou mais vertentes.

A palavra “sociedade civil” é um conceito que vem sendo discutido nos meandros académicos, desde Thomas Hobbes, Kant, Hegel, Marx e Gramsci e outros que tentaram explicar as várias transformações dinâmicas e ruturas que o conceito de sociedade civil tem sofrido. As várias perceções académicas reforçam a complexidade de entender o conceito de forma uniforme e consensual (Bobbio, 1982).

Os primeiros pensadores da teoria da sociedade civil começam por revisitar a definição dos estudos clássicos e medievais de São Tomás de Aquino, do homem como “animale sociale et politicum”, e tinham como finalidade “corrigir com o humanismo

medieval cristão, as teorias compactas da `polis´ helénica e da `civilis´ romana que faziam assentar a plena cidadania, reservada apenas a alguns, na dura relação do senhor com o servo, e do´pater familias´ com a sua gente” (Castro, 1999). Partindo deste

princípio surgem, nos últimos quatro séculos, as mais diversas contribuições sobre o conceito de “sociedade civil” que visavam acompanhar a evolução da vida social, colmatar os problemas que resultavam da crise e da queda dos paradigmas do conceito de ordem social, bem como dos problemas resultantes da transformação social.

John Locke é um dos autores ligados à origem e ao desenvolvimento do conceito de “sociedade civil”. Alude a esta como sinónimo de sociedade política e elabora os

43 direitos individuais, apesar de ter sobre estes uma visão claramente imersa em

pensamento religioso (Fernandes, 2014; Bobbio, 1999). Locke afirma que o estado de natureza9, que substitui o modelo de “tábua rasa”10, tem que dar lugar ao contrato social11 definido como “papel pelo qual cada contratante ou associado renuncia à sua

‘liberdade natural’ em benefício da comunidade (corpo político) para receber, em troca, a liberdade civil e beneficiar do bem comum que daí resulta”12.

Neste domínio, a sociedade civil é entendida como uma associação política, instituída por vários homens, organizada em oposição ao estado de natureza que, ao ser analisado, deixa a descoberto as suas insuficiências no domínio da reciprocidade do contrato e do consentimento. Dentro disso, estes homens constituem-se com o fim de conseguirem preservar, promover e/ou aumentar os próprios interesses civis, nomeadamente: a vida e a segurança, a liberdade, a igualdade e a posse dos bens externos (dinheiro, terra, etc) que são, segundo Locke, em conjunto com o estado de natureza e o estado de sociedade civil, a “vontade de Deus”. E é, de acordo com argumentos de António dos Reis Rodrigues (2003), com a passagem do homem do estado natural para o estado civil que se origina a sociedade.

Entretanto, com o aparecimento da burguesia como classe dominante, mas não dirigente, torna-se possível fazer a distinção entre a esfera política ou do Estado, na qual predomina a aristocracia e a burocracia, e a esfera económica ou do mercado, onde existe o domínio da burguesia. É Hegel quem, em 1820, determina a rutura nas suas lições sobre a “Filosofia do direito” e se distingue dos seus predecessores, que fizeram o uso indiscriminado do termo sociedade civil e sociedade política sem uma clara distinção entre o Estado e a sociedade civil (Bresser, 1998).

Hegel (Bobbio, 1999; Hegel, 1997) cria o conceito moderno de sociedade civil. Define-o como sendo uma associação legalmente constituída por indivíduos iguais e livres que perseguem os seus objetivos, e que se distingue pela liberdade subjetiva, autonomia pessoal, direitos individuais, reconhecimento e respeito mútuos, satisfação das necessidades, sistema de trocas, normas legais racionais, moralidade abstrata e uma estrutura mínima de autoridade pública. Considera, entretanto, o Estado como condição

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Entende-se que no princípio dos tempos os homens viviam em plena liberdade e igualdade entre si. Nasciam livres, independentes e eram governados somente pela sua própria razão, encontrando-se apenas proibidos de roubar, destruir a vida, a liberdade e a propriedade dos outros.

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Teoria sustentada por Locke que afirma que o homem ao nascer tem uma mente que é “tabula rasa in

qua nihil est scriptum” (uma folha em branco onde nada está escrito), sendo o conjunto de fenómenos e de

experiências, e a sua própria existência, que vai criando o conteúdo da vida sobre esta original superfície.

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Noção introduzida por Jean-Jacques Rousseau na obra com o mesmo nome.

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44 para realização da sociedade civil ou da “sociedade burguesa”. O Estado racional

hegeliano tinha o papel de regular e vigiar, de modo a manter equilibradas as forças espontâneas de auto-organização da sociedade civil e evitar que elas pensassem apenas a satisfação dos seus próprios interesses sem contribuir para a prossecução do bem comum.

Embora Hegel encare a “sociedade civil plenamente desenvolvida” como uma entidade que se encontra fora do “Estado racional”, a sua visão não é dual “Estado e

sociedade civil” mas tríplice: família, sociedade civil e Estado, entidades que representam

os três patamares de aperfeiçoamento e evolução, muitas vezes sobrepostos uns aos outros, no sentido da moralidade objetiva13, em que o Estado representa o culminar da moralidade ou da ética que resulta do cumprimento integral das responsabilidades de cidadania. O Estado, apesar de incluir a sociedade civil como um momento, transcendia-a e dotava-a com a racionalidade necessária.

Para autores como Armando Marques Guedes (2005) e John Keane (2001), a grande inovação de Hegel foi justamente o facto de ter conseguido combinar duas vertentes na sua compreensão da sociedade civil: uma vertente “sociológica”, na qual a sociedade civil é tida como uma esfera ética de vida social “independente”; e uma vertente política, em que ela era encarada como um patamar de mediação no interior de uma comunidade governada por um Estado racional. Este facto ofereceu duas grandes novidades na ideia da sociedade civil:

i) Tornou as associações e a opinião pública emergente em ingredientes centrais da sociedade civil, uma vez que ambas funcionavam como meios de ligação e comunicação “intermédios” entre indivíduos e Estado;

ii) Atribuiu aos indivíduos (pelo menos, àqueles que, de forma elitista, classificava como “conscientes” e “reflexivos”) um papel central na edificação de sociedades civis como as “modernas”.

Segundo Marques Guedes, como resposta a uma crescente desigualdade social, fruto das mudanças sociais a que se assistia na época e que a Revolução Industrial iria acelerar, Hegel sugere uma resposta “corporativista”, em que o “Estado incorpora o

espírito da unidade dialéctica individual e representa a racionalidade objectiva, que é

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Luiz Bresser Perreira (1998), na comunicação “Sociedade Civil: Agente de Reforma e Objecto de Auto- democratização” apresentado ao III Congresso Internacional do Centro Latino-Americano de Administração para o Desenvolvimento, disse que para Hegel a família é o espírito moral objetivo ou natural, cuja substancialidade se desvanece na perda da sua unidade, na divisão e no ponto de vista relativo; tornando-se a Sociedade Civil uma associação de membros (indivíduos independentes) numa universidade formal, por meio das carências e da regulamentação exterior para satisfazer as exigências particulares e coletivas. Este estado exterior converge e reúne-se na constituição do Estado, que é o fim e a realidade em acto da substância universal, e da vida pública nela consagrada.

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regulada pelos sentimentos de amor e desinteressada das preocupações com todos, perseguindo o objetivo do bem-estar coletivo e uma via não instrumental da autoridade pública” (Guedes, 2005: 23).

Por sua vez, Karl Marx representa um novo estágio no progresso do discurso da sociedade civil. Aceitando Hegel, mas longe dele, colocou no centro da sua análise uma sociedade civil que considerou, especialmente, um domínio de conflito e de luta entre as classes organizadas. Foi muito crítico em relação ao conceito hegeliano de Estado e, apesar de deter a distinção Estado e sociedade civil, declinou a visão de que o Estado “racional” fosse uma comunidade política totalmente inclusiva (ocasião em que a vontade e a liberdade humanas se realizam plenamente) e contestou a sua supremacia sobre a vida histórica e social ao passar para a sociedade civil o papel organizador do Estado concebido por Hegel. Sendo assim, se Hegel funda o conceito moderno de sociedade

civil, Marx e Engels estabelecem a relação fundamental entre o Estado, ao inverter o

papel da sociedade civil que, de objeto de mudança social ou momento de realização enquanto ideia, se transforma em agente de transformação do Estado (Bobbio, 1999).

Marx reduziu virtualmente a sociedade civil hegeliana, um conceito altamente complexo e estruturado, a uma esfera económica de produção e troca onde as relações sociais protagonizadas pelas duas “classes emergentes” (a burguesia e o proletariado) se baseiam na definição da posição que ocupam nas atividades de produção que se traduzem na estrutura de classes capitalistas14. A burguesia, ou a classe dominante, passa a deter todo o poder político e a determinar o Estado que, além de não representar a totalidade de interesses da sociedade como um todo, é subserviente às forças da sociedade civil, visto que representa o interesse particular da classe dominante e sustenta a ordem económica dominante (Bobbio, 1999).

Segundo Bhikhu Parekh, a universalidade que o Estado diz representar nada era senão o interesse particular da classe dominante mascarada de sociedade como um todo. Os trabalhadores não são realmente livres e teriam de lutar pela abolição de classes e pela reconstituição radical da sociedade civil, de modo a reclamar para si o poder alienado pelo Estado e a governar as suas relações coletivas democraticamente. Deste modo, a sociedade civil seria substituída por uma economia planificada baseada no princípio

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Apesar de Marx concordar que a sociedade civil emergiu com a separação pós-feudal do domínio do Estado (vida pública) do domínio privado, considerou que as caraterísticas que se encontram no coração da sociedade civil - individualismo, prossecução dos próprios interesses, satisfação das necessidades próprias, direitos e liberdades – estavam profundamente distorcidas, o que se traduzia no crescente grau de importância do modo de vida capitalista, no qual as relações entre indivíduos se baseavam nas relações sociais de produção em que sucediam as diversas tentativas de controlo de uma classe sobre a outra.

46 “cada um deve contribuir de acordo com a sua habilidade e para cada um de acordo com

as suas necessidades” (Parekh, 2003: 18), que Marx identificou como sociedade

“comunista”. Nesta sociedade, os indivíduos eram a unidade base; contudo, eram socialmente conscienctes e motivados, sem serem demasiado interessados em si próprios. Gozavam da máxima liberdade, mas usavam-na para enriquecer e expandir o seu poder como ser humano, em vez de acumular riqueza ou aumentar o consumo.

Em suma, a sociedade civil moderna é, para Marx apud Franco (2002: 12), “a

forma económica pela qual a burguesia cria um mundo à sua própria imagem e, portanto, fornece a base para a construção do Estado (burguês), cujo poder nada mais é do que a força organizada e concentrada da sociedade burguesa, caraterizada pela sua divisão de classes, forças produtivas e relações de produção”.

Esta visão economicista de Marx em relação à sociedade civil fez com que ele – tal como os marxistas subsequentes – ignorasse o potencial democrático das associações de cidadãos, entre eles a imprensa independente, a liberdade de reunião e o direito de voto, que foram por ele interpretados como formas de consolidação do poder burguês.

Passada a fase do iluminismo escocês, os pensadores políticos deram maior importância às virtudes do cidadão individual autónomo, em substituição da formação moral da sociedade. Alexis de Tocqueville é a figura chave na introdução do moderno “individualismo liberal”, paradigma dominado pela ideia de igualdade que, apesar de apresentar um rol de grandes virtudes e vantagens, tende também a isolar e atomizar os indivíduos (Parekh, 2003). Desse modo, a única forma de manter a sociedade unida seria engendrar fronteiras e laços de solidariedade através da criação de uma rede extensiva de associações voluntárias.

Para Tocqueville, sem participação ativa por parte dos cidadãos em instituições igualitárias e associações civis, assim como em organizações politicamente relevantes, não haverá como manter o caráter democrático de cultura política. Por esta razão, considerou as associações civis um contributo-chave para a eficácia e estabilidade do governo democrático, devido à torrente de efeitos positivos causados a nível interno sobre os seus próprios membros individuais e a nível externo em toda a política. Tocqueville está certo de que uma sociedade civil pluralista, auto-organizada e independente do Estado, é uma condição fundamental da democracia (Parekh, 2003: 19).

Foi muito, provavelmente, António Gramsci um italiano neomarxista da primeira metade do século XX, que trouxe a moderna interpretação sobre a sociedade civil, como esfera existente entre a estrutura económica e a do Estado, no período que se seguiu à II

47 Guerra Mundial. É um discurso que se demarca das análises anteriores pela transparência

e congruência filosófica com que demonstra as suas conclusões, apesar de apresentar numerosos pontos de convergência com as teses hegeliana, marxista e liberal, o que levou alguns autores a concluírem que se tratou de uma síntese de ideias (Bobbio, 1999).

Na visão gramsciana, a sociedade civil é um espaço distinto do Estado e do mercado, onde se exteriorizam forças de rebelião contra a ortodoxia existente, forças essas que se esgrimem pela formação e consolidação das “identidades nacionais de classes” e pela construção da hegemonia “cultural” e “ideológica”, com recurso às diferentes OSCs, desde famílias, igrejas, escolas, associações... Este espaço “autónomo” e livre da influência do “poder do capital” oferece aos cidadãos a oportunidade de usufruírem de uma “livre expressão da vontade popular” e de emancipação da lógica capitalista, através dos movimentos tanto de contestação como de defesa, que tornam possível a persuasão de uma reforma cultural e dos costumes (Bobbio, 1982: 17).

O renascimento do termo “sociedade civil” na década de 1980, no âmbito de mudança pós-comunista sobretudo da Europa do Leste, aparece primeiro através de intelectuais e ativistas políticos do Leste europeu, como Kolakowski, Michnik, Vadja, Mlynar e Havel, sendo depois abraçada por académicos do Ocidente com tendência à esquerda como Habermas, Arato, Cohen e Keane. Em comum, estes dois grupos oferecem a visão e a perceção da sociedade civil como domínio da liberdade, para quem advogam uma total expansão com a maior crispação possível do Estado ou “sociedade política”, reconhecida como esfera de coerção (Bobbio, 1999).

Jürgen Habermas, talvez o mais influente deste grupo de autores, combinou na sua teoria a tradição marxista que expõe a sociedade civil como uma esfera de domínio, com a tradição liberal que enfatiza o seu papel no aumento da autonomia pessoal. Através de uma série de construções teóricas, incrementou um modelo que admite separar as estruturas que compõem o “sistema” (Estado e economia) das estruturas do lifeworlds ou “mundos-de-vida” (atores sociais) (Habermas, 1990). Embora se refira a uma oposição bipolar, esta não é uma teoria dualista, uma vez que não só distingue as estruturas do “sistema”, o Estado e a economia, das estruturas do “mundos-de-vida”, como também as diferencia entre si ao torná-las uma parte integrante das dimensões opostas, porém complementares, do público e do privado. No “sistema” o público é o Estado, e o privado é a economia. No interior do “mundos – de – vida”, o público é a participação política dos cidadãos (formação da opinião pública, etc), e o privado é a família (Vieira, 1996), onde se pode verificar que os “…princípios de ‘igualitarismo’ e ‘persuasão’ produzidos e

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reproduzidos por ‘interações simbólicas’ e ‘comunicação’, estes lifeworlds contrariam profundamente com a ‘natureza hierárquica’ e ‘coerciva’ do ‘poder’, as caraterísticas que dariam corpo aos princípios próprios do Estado” (Guedes, 2005: 32).

Na distinção analítica que nos proporcionou a lógica do sistema e a do “mundos-

de-vida”, Habermas situa a sociedade civil como local de disputa entre os princípios

divergentes que compõem a lógica das duas estruturas na construção e organização da sociabilidade, através de movimentos “de ‘resistência’ e ‘emancipação’ numa luta contra

o poder que não era concebido como inteiramente independente dos que se opunham, e vice-versa” (Guedes, 2005: 33). Isto conduz a que os atores da sociedade civil se

organizem em “movimentos sociais de cidadãos”, e levem a cabo na esfera pública ações políticas de reação baseadas na “ação comunicacional” e na “democracia discursiva”, características das “deliberações” e dos “diálogos democráticos”.

Esta ideia fez com que os movimentos sociais fossem considerados “embriões da

democracia” (Vieira, 1996), uma vez que disputam com o Estado e com o mercado a

preservação de um espaço autónomo e democrático de organização, reprodução da cultura e formação de identidade e solidariedade. Esta ideia é partilhada por muitos autores e ativistas de esquerda, que consideram a sociedade civil como “a base social de

uma esfera pública democrática através da qual a cultura de desigualdade pode ser desmantelada” (Edwards, 2004: 9) e por filósofos como John Keane que se têm

esforçado para construir uma nova visão da sociedade civil onde se respeitem as diferenças entre grupos, promovendo o engajamento não violento, não “a partir de cima” (através da autoridade do Estado baseado no respeito pela Constituição e leis do direito internacional) mas “a partir da base” (através da canalização de tendências violentas para a vida associativa não violenta) (Keane, 2001).