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Capítulo II. Conceitos-Chave

2. Sociedade-Providência

Antes de entrarmos no cerne desta questão, ou seja, da sociedade-providência, é indispensável que falemos do Estado-providência/social. Se se fala hoje de sociedade- providência é porque algo está a falhar no que diz respeito ao Estado-providência. Por isso, é incontornável o seu entendimento.

Na visão de Thomas Marshall, a terceira geração dos direitos ocidentais seriam os “direitos sociais”. Para garantir aos indivíduos o acesso aos benefícios sociais

21 fundamentais (saúde, educação, trabalho, etc.), surge o Estado de bem-estar social,

também conhecido por “Estado assistencial”, ou, então, welfare state. Este tipo de Estado possui dois aspetos interrelacionados. Do ponto de vista económico, busca-se a regulação do mercado através da intervenção ativa do Estado. Do ponto de vista social, procura-se oferecer aos indivíduos um conjunto de políticas financiadas pelo governo visando garantir a segurança social (Marshall apud Shell, 2006: 129).

O Estado-providência surge como um produto de processos de ajustamento económico e da situação de diferentes classes sociais em contexto socioeconómico capitalista, assumindo-se, nas palavras de Esping-Andersen, como um mecanismo de “welfare capitalism” (Esping-Andersen, 1990 apud E. V. Rodrigues, 2000: 187). A intervenção estatal, associada ao conceito de democracia, aprofunda a noção dos direitos e de justiça, retirando o cunho caritativo e assistencialista da sua intervenção e diminuindo o potencial estigmatizante dos seus beneficiários, com efeitos importantes na elevação da autoestima individual (E. V. Rodrigues, 2000: 188).

O Estado-providência lançou âncoras nos domínios da educação, da saúde, dos transportes, do emprego, da economia, entre muitos outros. Muitas destas áreas, sendo áreas absolutamente relevantes para a promoção do bem-estar social, são financeiramente insustentáveis numa lógica lucrativa, cabendo ao Estado e a sua capacidade redistributiva uma ação promotora (E. V. Rodrigues, 2000: 191).

Para Filipe Carreira da Silva (2013: 12), o Estado-providência consiste na realização concreta, através de leis e subsequentemente por intermédio de medidas políticas, de um conjunto de direitos que têm como objetivo cumprir certas funções sociais de assistência a todos e, sobretudo, aos mais desfavorecidos e vulneráveis. Refere- se, portanto, à implementação de direitos sociais.

A base do funcionamento do Estado-providência estava alicerçada na ideia de solidariedade e interdependência das gerações e classes. Assim, as gerações ativas pagavam para os beneficiários mais idosos (reforma) e mais jovens (educação), com a contrapartida de virem a beneficiar dos mesmos mecanismos, assim como as classes abastadas contribuíam para financiar os mais pobres, na contrapartida de garantia dos seus próprios riscos e da sua segurança (E.V. Rodrigues, 2000: 188).

Todavia, as transformações económicas (especialmente a globalização e a informatização dos sistemas produtivos) e as mudanças sociais (como o desemprego generalizado e o aumento da longevidade dos cidadãos) colocaram em crise a capacidade

22 do Estado Social em financiar as políticas sociais: o Estado passou a ter mais despesas do

que arrecadação (Shell, 2006: 131).

Esta crise, chamada geralmente “crise fiscal” do Estado, levou os governos a adotar duros programas de ajuste, fortemente inspirados nas ideias do neoliberalismo que defendiam a volta da economia aos princípios de livre mercado, a não intervenção do Estado na economia e cortes nos gastos sociais. Apesar de não ter havido um abandono completo do welfare state, estudos como o de Esping-Andersen mostram que as políticas de ajuste tiveram impactos diferenciados nos diferentes modelos de Estado social, levando em conta as diferentes regiões em que estão situados. Nos países escandinavos, por exemplo, a reforma do Estado intervencionista foi muito positiva, principalmente porque se moldou aos novos desafios, como o estímulo para a inserção da mulher no mercado de trabalho. Já os países anglo-saxónicos desmantelaram o welfare state, seguindo o caminho neoliberal. Esta proposta tinha como objetivo uma política de combate ao desemprego atrelada à flexibilização do mercado de trabalho. Os países da Europa Continental não conseguiram manter o modelo tradicional do welfare state, nem a flexibilização do trabalho por causa da pressão dos sindicatos. Porém, tomaram algumas atitudes dentro de um modelo intervencionista, como a redução do trabalho para gerar maior emprego, rendimento e diminuição dos impostos (Esping-Andersen, 1996).

A “crise” do Estado social é uma das grandes questões do século XXI. Reinventar formas de proteção social e promoção da democracia no contexto de uma sociedade que apresenta profundas transformações, por conta das mudanças económicas e também sociais em curso, é um dos desafios políticos da atualidade.

Eduardo Vítor Rodrigues (2000: 188) corrobora esta visão ao afirmar que,

“este funcionamento aparentemente equilibrado começa a ser

posto em causa pela rutura demográfica das últimas décadas, que põe em causa mecanismos de funcionamento e de sobrevivência do Estado Providência: o número de idosos pensionistas tem vindo a aumentar drasticamente e o número de ativos empregados diminuiu de forma acentuada. Assim, os ativos (eles próprios cada vez menor contingente contributivo, fruto do aumento do desemprego) começam a não ser suficientes para manter o indispensável suporte financeiro do Estado Providência, abrindo-se caminho ao re-questionamento da sua própria natureza e do seu próprio campo de ação”.

Por sua vez, Filipe Carreira da Silva (2013: 36-40) afirma que ainda que a crise seja apenas a última gota de um copo que está agora a transbordar e que levou décadas a

23 encher, isto é, que as causas do seu desaparecimento sejam estruturais e não apenas

circunstanciais, a verdade é que o cenário do fim do Estado-providência é uma realidade que se impõe nos dias que correm. Ele elenca três razões da insustentabilidade do Estado- providência/social:

i) o Estado-providência induz à situações de dependência dos seus apoios. O problema aqui é o da perpetuação de situações de exclusão social e pobreza: casos de famílias em que várias gerações haviam vivido não do rendimento do seu trabalho, mas de apoios sociais do Estado, foram explorados e apresentados como prova indesmentível de como o Estado Social cria clientelas dependentes dos seus serviços, desincentivando a entrada no mercado de trabalho. A passagem de welfare ao workfare, isto é, de um sistema de apoios sociais garantidos a todos os cidadãos à um sistema em que tais apoios só estão disponíveis a quem tem um emprego, foi uma tentativa de solucionar este problema particularmente comum nos países anglo-saxónicos;

ii) o Estado-providência é acusado de promover um modelo de sociedade avesso à mudança e à inovação. Mais do que dependentes, “os filhos de welfare” seriam, assim, indivíduos acomodados, sem capacidade de empreender a mudança necessária para enfrentar os desafios do mundo de hoje. Este tipo de crítica cultural é mais comum em países da família “liberal”, ainda que não seja impossível encontrar ecos deste tipo de argumento em analistas e decisores políticos noutros países, incluindo Portugal;

iii) os beneficiários de prestações sociais tendem a tomar por adquiridos os direitos sociais e respetivos apoios e garantias. É criticado aqui o facto de que tais beneficiários se esquecem da natureza do contrato social por detrás do Estado- providência – para que uns possam beneficiar de certos direitos sociais, outros deverão ter contribuído com os seus impostos e descontos para que tal possa acontecer. Nesta perspetiva, os direitos sociais não são incondicionais, nem são necessariamente para sempre: são antes fruto de um compromisso intergeracional, condicionado à existência de uma situação económico-financeira e política que os sustente. Na ausência destas condições, falar em “direitos adquiridos” é, nesta ótica, um contrassenso.

Entretanto, pode dizer-se que, no atual momento da vida socioeconómica, por si só, o Estado não consegue cobrir todos os riscos sociais. Daí que seja chamado a encontrar mecanismos de parceria com instituições privadas, abrindo caminho a um designado “welfare mix”, resultante quer do enfraquecimento do Estado, quer da incapacidade do mercado. Para Gómez, abre-se desta forma o caminho para a intervenção de um terceiro setor de decisiva importância para a cobertura dos riscos sociais e do bem-

24 estar geral. É aqui onde entramos na necessidade de uma articulação com a sociedade-

providência (Gómez, 1998 apud E.V. Rodrigues, 2000).

Partimos do princípio de que, nos dias de hoje, no âmbito político e, sobretudo, socioeconómico, parece ser óbvio que o Estado já não consegue, per se, fazer cobro a todos os problemas sociais, como já afirmamos. Relativamente à centralidade da sua intervenção, o Estado tem vindo a encontrar mecanismos de parceria com instituições privadas, dando origem a um designado “welfare mix”, decorrente quer da fraqueza do Estado, quer da incapacidade do mercado. Por causa disso, surge a necessidade da intervenção de um terceiro setor (OSCs/economia solidária…), de decisiva relevância para fazer cobro aos riscos sociais.

Dentro disso, é a este nível que se enquadra a hipótese da economia solidária, que tenta estabelecer um novo compromisso entre a economia monetária e a não-monetária. Ou seja, hoje, num mundo dominado pelo neoliberalismo (económico), mais que nunca, os atores sociais assumem um papel especial quando o Estado não consegue, por si só, cobrir todos os problemas ou riscos sociais resultantes da sua própria fraqueza e da incapacidade do mercado. Daí a grande necessidade de encontrar meios de parceria com instituições privadas. Estes parceiros, pelo conhecimento que possuem das carências do povo, podem incrementar uma solidariedade direta diferente da do Estado (solidariedade mecânica). Caminha-se, portanto, de um welfare state para um welfare mix, onde não há mais políticas de proteção social focadas para as comunidades, mas políticas de proteção social sugeridas pelas próprias comunidades (E.V. Rodrigues, 2006: 145).

Esta reconfiguração do Estado social tem resultado da necessidade de se dar resposta aos novos desafios, ou seja, aos novos problemas sociais trazidos por estas mudanças. Estas mudanças estão na origem dos chamados “novos riscos sociais”. Se as sociedades dos anos 50 viram nascer o moderno Estado-providência para dar conta dos velhos riscos associados à invalidez, velhice, doença ou desemprego, as sociedades de hoje, ainda e sempre a braço com essas “velhas” eventualidades, veem-se confrontadas com os novos desafios dos respetivos esquemas de proteção social, a saber: o papel das mulheres e dos novos modelos de família, as mudanças no mercado laboral, a insuficiência da cobertura da segurança social e os problemas de regulação da oferta privada e da defesa dos interesses dos consumidores de apoios sociais (F. C. Silva, 2013)

Que resposta dar a estes (novos) problemas? Uma das formas de responder ao duplo desafio das receitas decrescentes e das despesas em crescendo foi o de se transferir algumas das funções do Estado em matéria social para o setor privado ou para o chamado

25 “terceiro setor”, isto é, para o conjunto de organizações que, não sendo públicas,

desenvolvem atividades de interesse público. Basta pensarmos no caso das IPSS (Instituiçoes Particulares de Socilidariedade Social) em Portugal, no âmbito do cuidado aos idosos, para facilmente percebermos a importância deste setor. Se em países como Portugal o papel da Igreja em matéria de proteção social é tão antigo como a própria Igreja, tendo algumas das suas instituições de proteção social vários séculos de existência (por exemplo, a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa fundada em 1498), o recurso ao setor privado para substituir e/ou complementar o Estado nas suas funções sociais não constitui novidade (da Silva, 2013: 72).

Podemos assim dizer que o cenário do fim do Estado-providência parece, pura e simplesmente, longe de ser realista. A sua presença surge na sociedade cada vez mais necessária, ainda que já não como prestador de serviços, mas como regulador, que é uma nova vocação que implica desafios financeiros e administrativos de monta. Cremos que é dentro disso que Eduardo Vítor Rodrigues (2000: 197) constata que,

“As formas de Estado Providência nunca foram muito percetíveis,

tendo-se desenvolvido, por compensação, formas correlativas de Sociedade Providência, tal como é referido por Boaventura de Sousa Santos. Este modelo de Sociedade Providência, típico dos países frágeis e sem tradição de implementação de políticas sociais, carateriza-se pelo surgimento de formas de organização e de mecanismos de compensação criados a partir dos grupos sociais e das suas instituições, núcleos de vizinhança ou formas complementares de organização paralela ao Estado, como as mutualidades ou as várias instituições ligadas à Igreja, já para não falar nas virtualidades do associativismo local”.

Por sua vez, Boaventura de Sousa Santos (1995) define a sociedade-providência como o “conjunto de redes de (re)conhecimento mútuo e de entreajuda fundadas

baseadas em vínculos de consanguinidade e de proximidade ou vizinhança, através das quais pequenos grupos sociais cambiam bens e serviços numa base não comercial”.

Podemos assim dizer que, num mundo dominado pelo neoliberalismo (económico), mais do que nunca, os atores sociais assumem um papel especial quando o Estado não consegue, por si só, cobrir todos os problemas ou riscos sociais resultantes da sua própria fraqueza e da incapacidade do mercado. Daí a grande necessidade de encontrar meios de parceria com instituições privadas. Estes parceiros, segundo Ferreira et al., 1993: 59, “pelo conhecimento que possuem das necessidades da população,

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Estado”. Caminha-se, portanto, de um welfare state para um welfare mix, onde não há

mais políticas de proteção social focadas para as comunidades, mas políticas de proteção social sugeridas pelas próprias comunidades (E.V. Rodrigues, 2006: 145).

Neste novo contexto, Estado e sociedade civil são chamados a entenderem-se na definição, acompanhamento e controlo de políticas públicas. Dito por outras palavras, embora objetivamente distintos, Estado e sociedade civil não são concebidos como

realidades isoladas, mas complementares. Interagem, sendo essa interação

imprescindível, por um lado, para melhor definir consensualmente as várias políticas públicas, caminhos de futuro para todos – seja na área da educação, da saúde, da cultura, da habitação –, e, por outro, para mais facilmente se obter confiança geral sobre a execução das políticas públicas, bem como sobre os modos da sua efetivação concreta no mundo dos factos e das situações reais da vida.

A robustez da sociedade civil no avanço de ações de âmbito social, geralmente aceites pelo poder político nos diversos Estados e, mesmo, pela comunidade internacional global, apresenta, porém, tonalidades distintas, conforme as conceções ideológicas que sustentam os diferentes Estados. Todavia, ao longo do século XIX, após as revoluções liberais, com o aquartelamento das empreitadas públicas nas áreas da segurança interna e externa, da organização da justiça, dos negócios estrangeiros e das finanças, o Estado liberal começou a abandonar as tarefas sociais. Assim, “Limitando-se às tarefas de

garantia dos direitos pessoais e dos direitos de natureza política, o Estado Liberal não desenvolvia, por definição, tarefas de assistência aos mais fracos e vulneráveis da sociedade, nem empreendia tarefas no âmbito da saúde ou da educação” (do Amaral,

2014: 298). Entendia, portanto, não ser sua competência estrutural, entrar nessas áreas. Por isso, no Estado liberal, as tarefas de solidariedade social fossem só realizadas num quadro estritamente privado. A solidariedade surgia tanto no ambiente familiar como no de instituições religiosas, como ainda no de múltiplas instituições de voluntariado social, que cedo começaram a desenvolver-se especialmente nos Estados Unidos da América. A “questão social”, a que a industrialização acelerada no século XIX conduziu, exigia respostas que doutrinariamente lhe foram dadas através dos movimentos socialistas, da doutrina social da Igreja e dos partidos comunistas (do Amaral, 2014: 298). O Estado social, que começou a afirmar-se especialmente nos diferentes Estados europeus ao longo do século XX – antes da I Guerra Mundial, mas sobretudo após a II Guerra Mundial –, transformou estruturalmente a fisionomia do Estado, ao permitir o nascimento de uma nova categoria de direitos sociais, que são direitos à obtenção de

27 prestações específicas do Estado. Porém, o Estado social não previu (em certos países

periféricos e, até, semiperiféricos) as consequências económico-financeiras da amplitude da concretização, quase sempre em regime de monopólio estatal, dos direitos sociais, em termos de universalidade. Filipe Carreira da Silva (2013:25) diz a este propósito que “No

centro da crítica da ideologia neoliberal encontra-se o Estado Social, acusado de ser a causa maior dos problemas sociais e económicos dos anos 70; o reverso da medalha, isto é, a solução passava pela sua dissolução e substituição por um modelo de Estado mais amigo da economia, da iniciativa privada e da autonomia individual”.

Por isso, após mais de meio século de concretização dos direitos sociais subordinada à “condição do possível”, o Estado social teve de concluir – em alguns países (como Portugal, Espanha ou Grécia), e não em todos (como Alemanha, Áustria, Suíça, Países Nórdicos) – que as suas receitas, nomeadamente as provenientes dos impostos, eram insuficientes para cumprir com as inúmeras tarefas sociais que assumira. A crise económico-financeira que eclodiu em alguns Estados europeus, a partir de 2007- 2008, é disso prova. A Terceira Via proposta antes por Anthony Giddens (1990) na Grã- Bretanha, sem pôr em causa o Estado social, fazia apelo à força da sociedade civil e às solidariedades que nela se desenvolviam, abrindo caminho para um novo modelo de Estado social: o Estado garante de direitos. Neste modelo de Estado, não é necessário que sejam os serviços públicos estatais a assegurar aos cidadãos as prestações correspondentes a todos os seus direitos sociais: o que é preciso é que o Estado seja garante dessa concretização, estimulando, para o efeito, a sociedade civil a atuar, isentando-a de impostos ou conferindo-lhe outros benefícios, sobretudo se ela agir sem fins lucrativos. É daqui e deste modo que surge a “welfare mix”.

Uma sociedade civil solidária (sociedade-providência/“welfare mix”), que percebe e realiza a solidariedade como empreitada de todos, tenderá a dar lugar à um Estado social garante de direitos, isto é, um Estado que não é apenas prestador de serviços sociais, mas que também cria as condições necessárias para sua efetivação através de uma vasta rede de instituições ou organizações particulares. Hoje, a sociedade civil sente, cada vez mais a importância do voluntariado social que tende a abrandar as consequências negativas já apontadas no que diz respeito ao Estado Liberal.

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