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1. IMAGENS, PODER E TERRITÓRIOS NA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

1.2. Espaço, lugar(es) e territorialidade(s) no campo audiovisual

1.2.1. Campo cinematográfico, (des)territorialização e racismo

Em síntese, o negro é exótico, como um animal a ser observado, mas não serve para ter aproximação. (SODRÉ, 2009, p. 258)

Tendo em vista a compreensão do território, como espaço dominado e/ou apropriado, de acordo com Haesbaert (2004), sua manifestação na atualidade se dar de forma multi-escalar e multi- dimensional, portanto, sua compreensão perpassa à via da multiplicidade, ou seja, de uma multitterritorialidade. Entretanto, como ressalta este autor, para além dos impactos da exploração capitalista, das políticas neoliberais e da globalização exacerbada, que intensifica o processo da violência às “minorias”, sejam elas minorias étnicas, de gênero e sexualidade, como aponta Appadurai (2009), pensar a partir da concepção da multiterritorialidade, “é a única perspectiva para construir uma outra sociedade, ao mesmo tempo mais universalmente igualitária e mais multiculturalmente reconhecedora das diferenças humanas” (HAESBAERT, 2004, sem página).

Todavia, se o território, também, é funcional e simbólico, ou seja, a ação de domínio no espaço realizam funções e produz significados (HAESBAERT, 2011), certamente a produção de uma subjetividade hegemônica está presente num campo, como o campo audiovisual, em que o negro é sempre o Outro. Uma relação de alteridade que muitas vezes se manifesta de forma estapafúrdia sob um olhar oriundo da construção de um imaginário simbolicamente inferior, subalterno, feio, incapaz, etc.

Embora, tenhamos salientado, as lutas entre os diversos agentes sociais (pretendentes e dominantes) podem assumir formas diferenciadas devido as características variáveis de um campo social, isto é, “as variáveis nacionais fazem com que mecanismos genéricos tais como a luta entre pretendentes e dominantes tomem formas diferentes” (BOURDIEU, 2003, p. 119). Assim, como nos propomos analisar a presença ou lugar(es) de realizadores negros e negras no campo audiovisual, bem como, por exemplo, disputas simbólicas em torno do reconhecimento pelos agentes legitimadores de uma categoria cinematográfica especifica, denominada Cinema Negro. A variável local – ou do contexto social que nos cerca – que queremos refletir são sobre as dezenas de pesquisas que apontam para práticas racistas neste campo de produção cultural, interpretada por nós também como disputas por territórios, por vezes simbólicos e por vezes físicos.

Fundamentalmente, segundo Munanga (2000) o racismo nasce quando justificam que caracteres biológicos têm condições de determinar certos tipos de comportamentos. E, “o estabelecimento da relação intrínseca entre caracteres biológicos e qualidades morais, psicológicas, intelectuais e culturais que desemboca na hierarquização das chamadas raças em superiores e inferiores” (MUNANGA, 2000, p. 25). Segundo este autor, os elementos dessa hierarquização ainda sobrevivem, ignoram os progressos da ciência, e permanecem intactos no imaginário coletivo das novas gerações. Munanga (2000) salienta ainda que o racismo se metamorfoseou ao longo dos séculos e que na contemporaneidade estaríamos sob uma nova forma de racismo: “o racismo construído com bases nas diferenças culturais e identitárias” (MUNANGA, 2000, p. 27).

De acordo com Sodré (2000), o racismo é um eficiente instrumento na produção de exclusão social, assim como, “o mecanismo civilizatório (portanto, ocidental e cristão) de rejeição existencial, ou seja, consciente e subconsciente, da alteridade” (SODRÉ, 2000, p. 258). No entanto, em sua análise, este autor, afirma que toda e qualquer tipo de prática racista exacerba- se precisamente no instante da proximidade. Na medida que consolidou-se o Outro na posição de subalternidade e o Mesmo como hegemônico. Deste modo, Sodré (2000) observa que “essa operação limita-se a situar o Outro como uma diferença a ser mentalmente reconhecida e respeitada, desde que à distância (territorial, sensível) [...]” (SODRÉ, 2000, p. 259). Nesse sentido, está colocado uma dimensão espacial ou territorial do racismo que sugere ao Outro o não pertencimento de determinados espaços ou lugares, nas quais, estabeleceu-se que este Outro seria um “intruso” ou um “corpo estranho”, portanto, implicando no processo de desterritorialização.

A semelhança sugere proximidade de territórios de corpos, daí implicar sempre o racismo uma desterritorialização – do Mesmo ou do Outro. Abandonando o seu lugar predeterminado, o Outro (o migrante, o diferente, o negro) é conotado como o intruso que ameaça dividir o lugar do Mesmo hegemônico. O Outro é aquele que supostamente “não conhece” o seu lugar – assim se expressa o senso comum discriminatório –, isto é, aproxima-se demais, rompendo com a separação dos lugares e todas as configurações possíveis (ego, corpo, vizinhança, etc.) e deste modo conspurcando a pureza pressuposta de uma hierarquia territorial. O nojo racista ao Outro decorre de seu deslocamento territorial: ele (o negro, o índio, etc.) está ali onde não deveria, assim como um sufê preparado por um grande cozinheiro, antes lindo no prato sobre a toalha da mesa, poderia inspirar nojo se colocado sobre o lençol da cama. (SODRÉ, 2000, p. 261).

Deste modo, ao transportar para o campo audiovisual podemos identificar semelhanças nesse processo, pois, de uma lado, forja-se uma estética dominante, ou seja, a constituição de um padrão estético eurocêntrico (SHOHAT; STAM, 2006), que, consequentemente, dificultam a consolidação do indivíduo afro-brasileiro como sujeito de sua própria história, sendo tratado historicamente como objeto exótico, como destacamos no início deste tópico, embora reconheçamos importantes avanços nos últimos anos. De outro, a ocupação de espaços de poder no campo por um grupo social de representação racial simbolicamente hegemônica, atrelado ao fato de um poderio econômico, têm impedido, de uma maneira geral, de profissionais negros do audiovisual atingir estas instâncias de poder no campo. Assim, no contexto brasileiro em que a ideologia do branqueamento se estabeleceu, inicialmente, por bases científica e, posteriormente como política de Estado, transformar esta realidade ou extinguir as “fronteiras territoriais” implica reconhecimento das relações raciais assimétricas, bem como o estabelecimento de lugares de trânsito, como afirma Sodré (2000):

Racismo é uma das designações possíveis para o muro cognitivo e estésico (de estesia ou estese, enquanto controle da vida sensível, das superfícies sensoriais do corpo, do direcionamento adequado do olhar) que guarda essa pele, ultrapassável apenas pela vigorosa mobilidade territorial do Outro. Contornar esse desdobramento violento do mal-estar individualista, que é o racismo, implica engendrar lugares de trânsito (ético-políticos) entre as singularidades. (SODRÉ, 2000, p. 264).

Por fim, o debate de uma categoria ou gênero Cinema Negro tem crescido nos últimos anos. Uma vez que, esta afirmação acirre as lutas dentro do campo, principalmente pelo que está em jogo, embora, podemos considerar, num primeiro momento, um movimento anti-racista frente ao que já discutimos acima. Entretanto, assim nos adverte Shohat e Stam (2006): “o direito à representação própria tampouco garante uma representação não-eurocêntrica. O sistema pode simplesmente ‘usar’ o ator para ativar o sistema de códigos dominantes, muitas vezes a despeito de suas objeções” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 279). Deste modo, uma discussão e/ou reflexão sobre o tema que ultrapassa a esfera da representação e ocupe os diversos lugares do campo audiovisual, merece nossa atenção. Principalmente, num estágio em que a Ancine têm sinalizado para mais investimentos em políticas públicas de fomento para a consolidação da

indústria cinematográfica39, ao mesmo tempo, que há um cenário emergente de cineastas afro- brasileiros como nunca houve na história do cinema nacional, e também, surgiram as primeiras experiências em políticas públicas de fomento à produção audiovisual destinados a profissionais negros, apontando para resultados animadores no âmbito do produto audiovisual, quanto na ampliação de um público com recorte identitário. Portanto, o que implica a afirmação de Cinema Negro brasileiro? O que está em jogo neste debate? Podemos falar em um Cinema Negro brasileiro?

39 A ANCINE publicou dois estudos sobre as atividades econômicas do setor audiovisual, na qual, revelam que no

ano de 2014, o setor foi responsável por injetar R$ 24,5 bilhões na economia brasileira. Representantes do órgão sinalizou que continuará os investimentos em produções nacionais para fortalecer o mercados interno e possibilitar maiores vendas para o mercado exterior. Mais informações, disponível em: <http://www.ancine.gov.br/sala- imprensa/noticias/estudos-da-ancine-apontam-que-o-mercado-audiovisual-brasileiro-segue>

2. AS TONALIDADES E ENTONAÇÕES DO CINEMA BRASILEIRO: PODE O