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3. RESISTÊNCIAS E RE-EXISTÊNCIAS DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO

3.2. As disputas do campo audiovisual: racismo e poder em questão/tensão

3.2.7. Sobre preconceito e racismo no campo

“Porque às vezes a gente passa e não faz a leitura, né. Às vezes, pra caminhar a gente chama de qualquer outra coisa, menos de racismo” (CRUZ, 2016). Esta frase, extraída do depoimento da diretora Viviane Ferreira, sintetiza a crueldade do racismo que se convencionou a chamar de “à brasileira”. A sua manifestação velada e/ou “sutil”, como disseram os entrevistados, reflete a perversidade de sua ação. O racismo como qualquer outro trauma deixa suas marcas. O indivíduo negro enquanto vítima, muitas vezes arma-se em um mecanismo de defesa que prefere ignorar para minimizar o trauma por ter vivenciado uma experiência racista. É possível perceber a partir dos depoimentos que se sucederam certo desconforto em rememorar algumas experiências vivenciadas pelos entrevistados. Na cautela do falar, nas palavras escolhidas, etc. mas que não deixam de demonstrar que no jogo das relações sociais brasileiras suas assimetrias são estabelecidas numa relação de poder, cuja o parâmetro quase sempre está associado a cor da pele.

Ah, tipo festa de festival, essas paradas assim. Já aconteceram algumas coisas estranhas assim. E alguns comentários eu vi um aqui e ali que você fala assim, sabe? se isso não for racismo eu não sei o que é. Então tem casos. Tem casos específicos, pontuais que você vê, tipo o Rio Grande do Sul nas vezes que eu já fui lá, tenho grandes amigos lá, mas já sofri algumas coisas lá bem estranhas. De maneira geral assim, de estar em ambientes muito elitistas. Ir com filme pra Cannes, por exemplo, se sentir meio constrangido. Festivais internacionais eu acho que pelo menos pra quem é do Brasil que vai não tem uma coisa tão direta. O racismo às vezes não é direto. [...] você entra em um ambiente assim e você é a única pessoa negra do local ou uma das únicas pessoas negras do local cheio de gente, sabe. Tem alguma coisa errada aqui. Então essas coisas de pensar assim, né...essa questão assim, sabe. (OLIVEIRA, 2016)

Sobre a questão do preconceito, eu acho é... tem uns que são mais sutis, tem outros que são mais escancarados. Acho que cotidianamente ocorrem, né. Principalmente quando você é uma mulher negra jovem. Tem a questão de ser muito jovem. Ser mulher jovem. Acho que vai ser acumulando: ser mulher, negra, jovem. Então, as coisas se acumulam, bastante assim. Aconteceram duas situações comigo. Eu tenho certeza que foram por conta disso. Primeiro foi meu processo com o Lápis de Cor. Quando o Lápis de Cor foi selecionado no Canal Futura, a gente tinha que fazer um pitching. É... e aí, nesse processo, inicialmente tinha passado pela seleção escrita, depois da seleção escrita, trocou alguns e-mails, eu fui pro Rio. Fiquei dois dias no Rio pra apresentar o projeto, Lápis de Cor pro Futura, e quando chego lá, quando fui defender meu projeto, tinha eu e outro menino negro entre os 20 jovens selecionados. E aí o selecionador pontuou, né, como o meu tema tratava... como sou uma mulher negra, falando sobre a infância negra, o cara fez questão no meio da minha apresentação de dizer que cinema não é militância, que não estava ali para resolver o problema da minha irmã. Eu senti que isso foi o fato do meu lugar de fala, né, [...]. (ANDRADE, 2016)

A diretora Viviane Ferreira chama a atenção para o racismo institucional dentro do campo audiovisual. Como afirma a cineasta, um racismo travestido de “boas intenções”, mas tão violento quanto na relação interpessoal. Sendo assim, o habitus do agentes do campo, nesse sentido, é construído a partir da naturalização ou consolidação de práticas e comportamentos racistas que são estabelecidos nos demais campos sociais. Portanto, configura-se em ações que independentemente do campo ele faz presente.

Teve uma situação recente no festival de gramado, essa é bem importante da gente dialogar porque trata-se de racismo institucional, e o racismo institucional é muito violento porque ele é sempre travestido de boa intenção. Ele é sempre transvestido de quem está realizando a coisa mais justa. Nos últimos dois anos a gente tido um boom de jovens cineastas negras, você tem uma coisa que a gente tá chamando de um cinema negro no feminino em função das últimas obras que têm se destacado. E aí vem eu, a Larissa Fulana de Tal, Yasmin Thayná, vem a Tamyres, a Renata Martins, a Joyce Prado e tem um time feminino aí burilando e construindo essa coisa do cinema negro no feminino. E aí começou a acontecer um fenômeno impressionante. Todas nós começamos a vivenciar de sermos chamadas pra ir participar de mesas e mostras, festivais e os nossos filmes não. A gente ia pra falar de cinema negro, chegava na mesa, tipo, todo mundo que está na mesa tem filme sendo exibido e a gente não tem. Independente de ser processo competitivo ou não. Isso fala muito do racismo institucional. Eu fui para o festival de gramado e o festival teve a pachorra de colocar na mesa pra discutir cinema negro, era inclusão e acessibilidade. E na mesa tinha uma pessoa que fazia a discussão das ferramentas de acessibilidade: legenda, libras e uma outra pessoa que falava sobre essa coisa do cinema para deficientes visuais e auditivos e eu estava lá para falar de cinema negro. E eu fiquei pensando, comecei a mesa dizendo “eu não sei se eu estou nessa mesa porque vocês consideram pertencimento racial uma deficiência ou se vocês consideram o cinema negro importante para ser acessível por todos. Eu vou preferir acreditar que é porque o cinema negro tem uma importância que deve ser acessada por todo mundo”. Pra você entender o tamanho do “não saber”, o tamanho da estranheza que a gente causa nesses espaços já estabelecidos. Hoje ficou feio você ter um espaço cinematográfico e não falar de cinema negro. Tá feio, pega mal. O festival de Brasília acabou de protagonizar uma outra situação absurda. Vai procurar fundação Ford para buscar financiamento e a Ford pergunta: “Ok, mas e cadê o cinema indígena? cadê o cinema negro? Como que eu vou dar dinheiro para um festival de cinema no Brasil que não tem o diálogo?”. Aí o festival de cinema de Brasília falou: “não, tudo bem, a gente faz uma mesa de cinema negro”. Aí a Ford: “tudo bem, se é pra fazer uma mesa a gente mesmo organiza”. Aí a Fundação Ford vai junto com a Secretaria de Cultura do estado de Brasília e chama cineastas indígenas e cineastas negros para um diálogo sobre estado de arte desses dois cinemas dentro do festival de Brasília e faz questão de deixar explícito que não foi uma iniciativa do festival de Brasília, e sim que foi uma exigência da Fundação Ford pra ter financiado o festival de Brasília. (CRUZ, 2016)

O relato do cineasta capixaba evidencia uma ocorrência bastante comum que está enraizado no imaginário social brasileiro. Isto é, pressupõe-se que determinados espaços sociais e simbólicos da sociedade são ocupados somente por sujeitos negros ou negras. Deste modo, quando há indivíduos em espaços em que “normalmente” não corresponde com seu fenotípico, o racismo atua para recoloca-lo de maneira simbólica em seus devidos “lugares”.

Às vezes eu percebo...eu nunca percebi uma situação muito emblemática assim, mas já passei por situações onde eu fui dar entrevista por exemplo, pra falar do filme , no caso o Entreturnos, e….na verdade é uma situação emblemática sim, embora eu tenha dito que nunca passei...que eu vou relatar agora é bastante concreto de eu ir dar entrevista para um veículo de comunicação e a pessoa não achar que eu era diretor, achar que eu fazia outra coisa...que eu era jogador de futebol...que eu era sambista e não acreditar que eu seria um diretor de um longa-metragem. E já vi também situações onde eu acabei sendo mais

reconhecido pelo fato de ter no elenco por exemplo atores conhecidos e aí eu já fui visto de outra maneira. No caso, atores conhecidos, leia-se Luiz Miranda e o Milhem Cortaz, atores de mais renome nacional. E aí eu percebi que o Edson foi visto de uma maneira diferente. É lógico que quando você está no meio, principalmente onde a parcela de brancos é maior e você diz que é diretor existe uma certa inquietação quanto a isso, e ao mesmo tempo, é curioso porque é meio paradoxal, como se a nós negros fosse renegado no sentido, digo, uma visão branca de que para nós é isso... é arte, é samba, é futebol, e isso ser visto como uma forma menos vitoriosa, se a gente for colocar nesses jargões, hoje em voga do “vencer na vida” do “ter sucesso”. Então quer dizer, a nós acaba sendo reservada essa fatia dentro do mercado, dentro de uma possibilidade de você ter alguma ascensão social. (SILVA JR, 2016).

Assim como ocorreu com Edson, Larissa também relata que vivenciou experiência semelhante ao estar hospedado em um hotel e ser confundida com a recepcionista. E, acrescenta à discussão, o reforço do imaginário social brasileiro, como dito acima, em que sua posição de mulher negra determinasse sua incapacidade intelectual de ser cineasta.

Acho que tem outro ponto, não necessariamente o audiovisual, mas os espaços que acabo frequentando pelo audiovisual, eles criam... (trecho do áudio não compreensível)... eu tenho percebido bastante. Por exemplo, semana passada eu fui para Sampa, para São Paulo para participar de uma roda de conversa que o Sesc me convidou para falar sobre criações negras, né; sobre processo de criação. Aí eu fiquei num hotel tal... (trecho do áudio não compreensível), e aí, cara, dois momentos: o hóspede do hotel pensaram que eu era recepcionista, se eu trabalhava no hotel. Claro, as pessoas negras que eles veem lá são as pessoas que trabalham naquele lugar. Ou das pessoas duvidarem, né. Tipo, teve um branco que me pediu ajuda para usar o meu computador. Aí perguntou o quê que eu fazia, mostrei um trailer pra ele. Aí o filho dele: “foi ela mesmo que fez?”. Aí nos espaços você vai causando choque né. O hotel que você chega. A mulher fica assustada porque você chega com um produtor negro também... Aí, ficou assustada na hora que eu cheguei também. As pessoas que te reparam. Enfim, acho que são pelos espaços que eu frequento também. Desde de alguns bares específicos a alguns espaços culturais. (ANDRADE, 2016)

De uma maneira geral, André também aponta para a discriminação do campo cinematográfico em relação a representação, ao passo que, em alguns momentos, ele se considera um corpo estranho em um espaço, um ambiente que é hegemonicamente brancos e elitizados. Experiência que de alguma forma exemplifica o conflito da existência do corpo negro em espaços tradicionalmente não ocupados, logo a manifestação do racismo se dá como apontado por Sodré (2000): “[...] daí implica sempre o racismo uma desterritorialização. Abandonando o seu lugar predeterminado, o Outro (o migrante, o diferente, o negro) é conotado como o intruso que ameaça dividir o lugar do Mesmo hegemônico” (SODRÉ, 2000, p. 261).

Essa coisa do racismo e você constatar que a grande maioria dos filmes são feitos por pessoas brancas. Acho que é uma dificuldade até em se adaptar, entendeu. Não se adaptar mas se sentir representado dentro do cinema. Pra se sentir confortável dentro desses ambientes...tem aquela coisa da impressão de que você está invadindo, né. Um local que era pra ser seu também. Então eu acho que tem essa dificuldade assim de romper barreiras e de tirar estereótipos. (OLIVEIRA, 2016).