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3. RESISTÊNCIAS E RE-EXISTÊNCIAS DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO

3.2. As disputas do campo audiovisual: racismo e poder em questão/tensão

3.2.5. Dimensão interna das obras: temas e engajamento racial

Os depoimentos dos cineastas entrevistados apresentam uma dimensão da variedade de temas explorados – e que ainda serão explorados. Variam da experiências do cotidiano à questões de gênero, passando também pelos referenciais da cultura afro-brasileira.

Tenho gostado muito de repensar o “Lápis de Cor”. O processo da infância, mas no campo da ficção. É uma questão que tenho gostado muito de rever, assim. Eu estou escrevendo algumas coisas, mas para o campo da ficção né, a infância. E tem temas que surgem (trecho do áudio não compreensível) cotidianamente: a questão do abordo mesmo, por inúmeras experiências; a questão da violência policial, por experiência também. Eu e meu companheiro

sofremos violência policial. Então tem uma série de coisas que surgem na pele. Que não tem como escapar a narrativa. Tem outra coisa também que eu tenho pensado é ausência da memórias das famílias negras. Quando falo memória, não falo memória oral, mas de registro fotográfico, sabe. (ANDRADE, 2016).

Eu acho que tem a questão do cotidiano, ele está bem presente e vai continuar presente em alguns filmes. Tem a questão da periferia também, retratar a periferia, de personagens digamos, pouco representados ou marginalizados. Acho que de certa forma um pouco de humor em situações cotidianas, do dia a dia. Acho que é meio que isso. Os temas principais. (OLIVEIRA, 2016)

As relações. Isso está muito forte. Desde o meu primeiro trabalho um ponto que embora eu ainda não tenha... eu só fui entender isso depois, são as relações, o outro. Eu entrar no mundo do outro e entender o outro. E eu digo entrar no mundo do outro não só na dimensão de dentro de uma dramaturgia, mas a dimensão do diretor para com esse outro. Então quando eu fiz o “Aurora...” eu queria saber quem é esse outro negro de classe média. Quando eu fiz o Frames pra entender esse outro fotojornalista, quando eu fiz o Marcas da Vila que foi sobre vítimas... como vivem hoje os familiares das vítimas do incêndio que teve na Vila Rubim? É... como vivem esse outro hoje? Quando eu fiz o Sombras do Tempo que tem um discurso bastante amplo, mas é entender esse outro dentro daquele universo ali, daquele homem que vive numa casa de uma maneira surrealista. E no Entreturnos também, quem é esse outro que é o cobrador de ônibus? porque eu ando de ônibus e vejo todos os dias o cobrador de ônibus e queria saber quem é esse outro. Então, esse outro ele é não apenas o diretor querendo saber de quem é esse universo, mas dentro da história quem é esse cobrador, porque quer entender quem é aquela dona do bar, sabe. E essa dona do bar querer saber quem é aquela caixa de supermercado, e a caixa de supermercado querer saber quem é aquele andarilho que vem de fora para trabalhar com a dona do bar. Eu sinto que as minhas obras, elas têm uma grande interrogação em cada uma delas, de saber quem é esse outro. [...] Então, as minhas obras se pautam por isso: pelas relações humanas e por entender como essas relações se articulam dentro desse mundo onde nós vivemos. (FERREIRA, 2016)

São muitos. Até o festa da Mão Negra teve essa coisa de olhar para as manifestações do movimento negro mesmo, pensar ali o “Dê sua ideia, debata”; o Marcha Noturna tem essa coisa tem essa coisa mais plástica e tal, mas o Mumbi é uma parada bem mais introspectiva. E aí, eu estou discutindo esse lugar da auto reflexão mesmo e essa coisa do destino do ser no mundo, né. De como uma pessoa vai se sentir útil ou não, qual o rumo que ela quer dar a própria vida. Então é uma pegada bem existencial, obviamente, de uma mulher preta dentro do audiovisual tendo uma crise existencial. Basicamente o corpo preto é meu tema principal. Mumbi é uma mulher preta que está em uma crise existencial e ela vai e pira no quarto dela, vai e volta e consegue sair da pira dela com ela mesma ali. O “Jerusa” a gente já tem ali uma parada que é da solidão das mulheres negras, essa relação intergeracional. O Peregrinação, que a gente lança agora, um documentário que olha para o candomblé como uma ferramenta de resistência política no cenário nacional e tem outras coisa aí pra frente. Mas são sempre temáticas que passam pelo corpo preto. Isso não significa dizer que são temáticas que passíveis de dialogar com outros pertencimentos raciais, mas são temáticas que perpassam o corpo preto. Eu sintetizaria dessa forma. Mas é uma coisa tão livre, eu posso falar sobre biscoito de limão a qualquer momento, sabe (risos). (CRUZ, 2016)

Por outro lado, ao serem questionados sobre se consideram suas obras possuem um engajamento racial, apenas o cineasta Edson Ferreira acredita que não. Pois seu interesse no momento está mais relacionado com questões sociais, de uma maneira geral, todavia reconhece uma preocupação na elaboração das personagens. Viviane Ferreira confirma sua posição mais engajada e enfatiza que esse é o objetivo principal de suas obras. A Larissa Fulana de Tal também que não há como desassociar de sua obra uma perspectiva política, principalmente por iniciar sua carreira dentro de um coletivo negro em que estas questões estão em pauta. E por fim, o André Novais Oliveira acredita que também suas obras trazem uma abordagem racial a

partir da experiências cotidiano das famílias negras. E todos demonstram uma preocupação na construção de suas personagens negros para não reproduzir uma representação caricata ou estereotipada destes personagem.

Como eu iniciei, assumi a direção dentro de um coletivo e faço parte dele, a Tela Preta, não tem como desassociar do processo de militância, do debate, né, tanto da reflexão do lugar que eu ocupo, bem como do lugar que o negro está na tela, atrás das câmeras e aí uma série de estatísticas que a já está ausente ao um lugar periférico. Então, existe, sim, um posicionamento político, mesmo que por vezes não bem colocado ou evidente ... é.... não bem colocado, mas evidente. Aí eu tento, sinceramente, nos debates questionar muito mais o processo de que construção de personagem, a humanização do sujeito processo de feitura do filme. (ANDRADE, 2016).

Sim, e é o objetivo. Eu tenho um cuidado pra construir uma narrativa e uma estética muito próxima a normalidade, muito próxima ao fluxo do cotidiano, porque não acho que a nossa existência seja anormal. Então essa coisa de ficar construindo excepcionalidades é um negócio que não me cativa. Gosto de construir a narrativa e construir a estética dentro da normalidade e simplicidade da nossa existência. Gosto da simplicidade. Acho que tanto Mumbi como Jerusa dialoga muito em simplicidade. Tem um elemento que é importante, eu nunca começo uma reflexão audiovisual preocupada em como seria a ação do sujeito branco naquela história. Porque eu sempre estou preocupada com a existência do sujeito negro e eu parto desse princípio, porque eu parto de mim, eu parto do meu universo. Eu não me exijo construir narrativamente histórias que obrigatoriamente eu tenha que colocar lá um sujeito branco pra contrapor, pra fazer o papel do filho da puta, ou do racista porque eu acho que a gente não precisa disso. Porque pra mim interessa muito mais olhar pra nossa existência, identificar as mazelas deixadas pelo racismo e também identificar a cura entre a gente. (CRUZ, 2016).

Eu digo que eu sou um diretor negro e eu entendo o realizador negro, o diretor, especificamente o diretor, não só como aquele... por exemplo, o edital de curta afirmativo do Minc tem dois caminhos: do diretor negro e do diretor negro que vai tratar questões próprias da cultura afro-brasileira. A minha vertente não está focada, não porque eu não quero, mas é porque não são questões que me chamam a atenção no momento que é discutir a questão da africanidade. Agora, dentro do meu escopo de realização, de formatação de roteiro e de pensar a história, me pauto por alguns paradigmas que eu quero romper...por exemplo: o Entreturnos é um filme que trata de periferia e dentro da periferia, dentro do discurso do Entreturnos, eu tenho um casal branco de periferia. Então seria talvez para um realizador branco seria muito fácil colocar personagens negros. A dona de um bar, que é outra personagem, é branca. Dos quatro personagens principais do filme eu tenho um negro. Mas é um negro que tem um protagonismo muito grande, de todos os quatro personagens, o personagem do Luiz Miranda no caso, é o personagem que talvez dos quatro tenha uma vivência maior de questões próprias daquele mundo periférico e ele consegue articular e transitar por aquela situação própria do filme de uma maneira que os outros não têm. Além disso eu busco trazer para o horizonte dos meus projetos, não apenas nisso, mas tratar o negro não como subalterno, então por exemplo...são questões muito pontuais, no Entreturnos eu tive dois personagens médicos que eram negros, um dos personagens acabou não entrando no corte final do filme, mas eu cheguei a filmar, que foi com a Elisa Lucinda, e era uma atriz, uma personagem médica negra. Eu tenho o caso de um assalto dentro de um ônibus em que o assaltante é branco. Então eu procuro inverter essa lógica. Meu próximo projeto por exemplo, eu tenho uma personagem que é branca, mas ela é casada com uma mulher negra. Elsa é casada, quer dizer, eu ainda tenho a questão da comunidade LGBT. Eu tenho um personagem que é branco mas que vive uma situação periférica. Então eu me pauto em uma tentativa de romper paradigmas nessas questões. [...] Então essa é a minha preocupação hoje. E de causar um estranhamento quando a pessoa olhar. (SILVA JR, 2016).

Eu acho que tem sim e acho que tem uma coisa que é direta e algumas pessoas acham que não é direta, mas é direta. E é uma coisa bem característica de uma coisa de detalhes. De tomar bem cuidado com os personagens negros que estão sendo inseridos nos filmes. Então tenho todo esse cuidado e essa meio que uma guerra simbólica de colocar pra fora os

personagens negros que nem sempre estão envolvidos em questões de tráfico de drogas, com violência, com coisas que...questões sociais, né. Então acho que tem esse cuidado que eu acho muito importante e que tenha a representatividade de mostrar personagens negros, de mostrar uma família negra como o “Ela Volta na Quinta” ao invés de mostrar uma família branca, eu acho que isso é algo totalmente político. Eu diria que está sendo feito mais vezes e é simplesmente representar a família negra no filme. Acho importante. E tem no caso da Filmes de Plástico no todo tem obras mais diretas também como o “Rapsódia para o Homem Negro” do Gabriel. E tem projetos mais pra frente e eu acho que virão de uma forma mais direta também. Eu gosto de pensar assim, que só essa questão da representatividade acho que é algo muito importante. (OLIVEIRA, 2016).