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Os tons do debate: reflexões sobre Cinema Negro no Brasil dos anos 1960 aos dias

2. AS TONALIDADES E ENTONAÇÕES DO CINEMA BRASILEIRO: PODE O

2.2. Os tons de um Cinema Negro brasileiro

2.2.2. Os tons do debate: reflexões sobre Cinema Negro no Brasil dos anos 1960 aos dias

Podemos encontrar as primeiras reflexões sobre a existência de um Cinema Negro brasileiro em meados da década de 1960. Reflexões que, num primeiro momento, partiram de críticos e cineastas oriundos do Movimento Cinema Novo. Podemos apontar um segundo momento, este contemporâneo, onde veremos esta discussão ser formuladas por cineastas negros, desta vez, e, ao mesmo tempo, que o debate adentra à academia. Veremos a partir de então algumas destas reflexões.

Obedecendo uma ordem cronológica, vamos encontrar o cineasta e crítico David Neves, presente na comitiva brasileira que participou da “V Resenha do Cinema Latino-Americano”. Neste evento, ele apresentou uma tese chamada “O cinema de assunto e autor negros no Brasil” - publicado no Brasil somente três anos depois, em 1968. Pode-se afirmar que foi um esforço inicial de refletir sobre a questão racial no cinema brasileiro. É o primeiro momento que vemos a tentativa de afirmação e/ou definição de um Cinema Negro brasileiro.

Neves (1968) no início de seu texto reconhece que dentro da produção cinematográfica nacional, até a metade dos anos 1960, não havia autores ou realizadores negros. Portanto, obviamente, o que nos leva a presumir que esta não seria a via de análise possível. No entanto, o autor aponta imediatamente que “filmes de assunto negro” são quase sempre uma constante no universo cinematográfico brasileiro, no qual, o autor apresenta três possíveis justificativas para o fenômeno.

O filme de autor negro é fenômeno desconhecido no panorama cinematográfico brasileiro, o que não acontece absolutamente com o filme de assunto negro que, na verdade, é quase sempre uma constante, quando não é um vício ou uma saída inevitável. A mentalidade brasileira a respeito do filme de assunto negro apresenta ramificações interessantes tanto no sentido da produção e de realização quanto do lado do público. O problema pode ser encarado como: a) base para uma concessão de caráter comercial através das possibilidades de um exotismo imanentes; b) base para um filme de autor onde a pesquisa de ordem cultural seja o fator preponderante; c) filme indiferente quanto às duas hipóteses anteriores; onde o assunto negro seja apenas um acidente dentro de seu contexto (NEVES, 1968, p. 75).

Como é possível observar, a constatação do crítico da inexistência de autores negros permitiu que sua formulação sobre um Cinema Negro fosse forjada a partir de uma abordagem essencialmente temáticas de filmes cuja cultura afro-brasileira esteja ali, como centro do enredo ou de forma adjacente como expressão dos aspectos da sociedade brasileira. Deste modo, Neves (1968), aponta como via de consequência, o que seria este o Cinema Negro emergente e os filmes que impulsionaram esta representatividade.

Pode-se ver que, culturalmente, a manifestação de um cinema negro quanto ao assunto foi até hoje episódica e só tem sido abordada como via da consequência. Digo foi porque, no panorama cinematográfico brasileiro, emergiram cinco filmes que serão, no método indutivo que proponho adotar aqui, as bases de uma modesta fenomenologia do cinema negro no

Brasil, os filmes são: Barravento, Ganga Zumba, Aruanda, Esse Mundo é Meu e Integração Racial. (NEVES, 1968, p. 75-76).

A partir de então, o crítico ao prosseguir sua análise, discorre sua argumentação para justificar a seleção destes filmes. Barravento (1962), de Glauber Rocha, é o primeiro a ser analisado por Neves (1968), na qual diz:

A história de Barravento é um pouco agitada e parecida ao aspecto formal do filme. Mais uma vez aqui, a intenção não foi a pesquisa não foi o ambiente negro, mas, das consequências do misticismo e das crenças, de uma coletividade de pescadores do litoral baiano. O fator negro não é a tecla sobre a qual se calca diretamente, mas, suas harmonias fazem, por vias indiretas, vibrar as cordas às quais aquele fator está mais ligado”. Assim, tratando-se do misticismo (candomblé, iemanjá, etc.) não se fala diretamente do negro? quantas referências não se fazem aos territórios de além do mar de onde todos vieram? a impressão é que todos extravasavam é a que nada além de costumes negros se passa em barraventos, isto é, procurando negar, chegamos à conclusão de um fato. (NEVES, 1968, p. 76).

Deste modo, é possível sintetizar sua análise nessa afirmação, pois para o autor a manifestação da negritude acontece de forma natural e não sendo a discussão principal do filme cuja a prioridade é abordar a relação de exploração econômica e social de uma comunidade pesqueira e a alienação religiosa que os impedem de lutar contra essa exploração.

Dizíamos que o estímulo central do realizador tinha sido não o negro com origem e cultura, mas como objeto e consequência (fatores onde a cor não age como dominante casual) ou instrumento para a demonstração de uma tese universal (a exploração humana do trabalho humano). O personagem central é um negro. Firmino Bispo dos Santos, mas, é porta-voz do realizador (branco) seu representante entre os demais personagens. Tema negro se manifesta portanto, por um condicionamento geográfico e social, mas e isto é importante, mesmo como acessório é aceito e prolongado através das longas meditações tanto éticas quanto estéticas, como a capoeira, o candomblé, a beleza da mulher negra, etc. (NEVES, 1968, p. 77).

Barravento (1962), fora lançado num momento em que o novo cinema brasileiro ressurgia e estabelecia novos parâmetros estético e discursivos. Como disse Neves (1968), foi uma “bomba reflexiva” no campo cinematográfico do período, principalmente. Nesse sentido, em relação ao filme de Glauber, o teórico Ismail Xavier destaca:

A sequência do triunfo de Aruã no mar, com a participação coletiva no trabalho como rito, marca um dos momentos de apoteose do filme, com um tratamento de imagem que retoma e intensifica a coreografia da sequência inicial, novamente ao som de batuques e cantos religiosos. (XAVIER, 2007, p. 45).

Jean-Claude Bernardet (2007) ressalta sua importância histórica por ter sido o primeiro filme de fato ter captado os aspectos essenciais da sociedade brasileira da época. “Um filme cuja estrutura transpõe para o plano da arte uma das estruturas da sociedade em que ele se insere” (BERNARDET, 2007, p. 79). Nesse sentido, o valor simbólico de Barravento (1962) está em sua concepção fundamentalmente histórica e relevante para a discussão racial no cinema brasileiro.

Ainda assim, na perspectiva da análise de Neves (1968), o filme de Glauber Rocha só não é a melhor representação do “gênero” – Filme Negro ou Cinema Negro – do que Ganga Zumba (1963), do diretor Carlos Diegues. No qual, o crítico considera realmente um filme negro “inteiramente baseado e desenvolvido sobre problema da cor. Nele, os personagens em função dela; vivem, lutam, morrem e se imortalizam por ela. Num sentido restrito, esse é o único filme de assunto negro feito pelo cinema novo” (NEVES, 1968, p. 77-78).

O filme de Cacá Diegues é uma adaptação de um romance homônimo do escritor João Felício dos Santos. A história se passa num engenho de cana-de-açúcar entre os séculos XVI e XVII. Um grupo de negros escravizados tramam a fuga para Quilombo dos Palmares. Uma comunidade de negros fugidos do regime escravista, situado na Serra da Barriga, no nordeste brasileiro. Entre eles, encontra-se o jovem Ganga Zumba, protagonizado novamente por Antônio Pitanga, futuro líder daquela república revolucionária. Neves (1968), destaca o interesse jovem cineasta Carlos Diegues para a discussão racial desde o início de sua carreira, desde de seu primeiro curta-metragem não finalizado, Domingo. Interesse que o acompanhou ao longo de sua carreira cinematográfica. “Domingo pode ser direta e tematicamente ligado a Ganga Zumba, que é, na verdade a demarrage definitiva da carreira de Carlos Diegues” (NEVES, 1968, p. 78).

Sobre curta-metragem Aruanda (1960), dirigido por Linduarte Noronha, o crítico apenas discorre sobre seu realizador fazer parte de um grupo de cinéfilos e críticos de João Pessoa, na Paraíba. No entanto, o filme chama atenção pela sua simplicidade narrativa ao descrever o cotidiano de um quilombo – o Quilombo Talhado – no qual, sobressai a força do tema proposto em discussão.

Como Barravento, ou, como filme Aruanda revela-se ao público pela sua tônica forte de força da natureza. É uma obra primitiva (às vezes até com exagero), mas, que ignora essa característica, isto é, não pretende ser mais nem menos o que é. Nesse tipo de filme o tema passa a ter prioridade na comunicação e a estrutura cinematográfica a depender da força e da sinceridade do autor primitivo. Aruanda trata de um quilombo. [...] A relação de Ganga

Zumba com Aruanda, pode ser visto, vem da temática e nesse sentido universal mas

específico de comunicação pode-se dizer que Aruanda é o Hallellujah do cinema brasileiro. (NEVES, 1968, p. 78-79).

Neves (1968) ao analisar o filme Esse mundo é meu (1963), de Sérgio Ricardo, simplesmente afirma ser um “filme-decorrência” e o resume em quatro pontos: “a) primitivismo formal; b) força natural e espontânea; c) musicalidade e ritmos contraditórios; d) problemas raciais” (NEVES, 1968, p. 79). Salienta que as condições de produções prejudicaram a realização do filme. Por outro lado, ressalta sua importância na sua ambiguidade inconsciente, no entanto, “procura, no plano da consciência tratar de um tema anti-racista” (NEVES, 1968, p. 79).

O último filme analisado pelo crítico e cineasta é Integração Racial (1962), dirigido por Paulo Cézar Sarraceni. Ele afirma que a proposta deste documentário avança na discussão racial em relação ao Ganga Zumba (1963), por exemplo, ao indagar o espectador sobre os problemas relacionado ao racismo no Rio de Janeiro, consequentemente, no país.

Nos momentos em que o tema negro dele participa verifica-se que pela primeira vez se procura um juízo crítico (digo “pela primeira vez” porque “Ganga Zumba” era mais um decantar as qualidades e possibilidades dos negros, pois já partia das origens) a respeito do problema e situação atual no Rio e indiretamente, no Brasil. [...] Em Integração Racial, pela soma de enquetes, verifica-se que na verdade no Brasil, um país liberal relativamente a esse problema, não é tão liberal assim e as coisas tomam outras cores quando abordadas de uma forma mais práticas. (NEVES, 1968, p. 79).

Ao longo do texto, Neves (1968) também destaca uma característica anti-racista na cinematografia nacional. “O cinema brasileiro, tem felizmente uma interessante tradição anti- racista” (NEVES, 1968, p. 76). Porém, não deixa de reconhecer e criticar duramente rastros de um racismo velado de certo setor cinematográfico brasileiro que baseia-se em padrões estéticos equivalente ao que o autor denomina de um “arianismo escandinavo”, alegando com isso, uma busca de universalidade. A ação objetiva deste tipo de representação, de acordo com Neves (1968), era a Companhia Cinematográfica de Vera Cruz, fundada em 1949, em São Paulo, que estabeleceu este tipo de estética representativa, instituindo-se uma espécie de padrões ou regras, nas quais, as produções dificilmente conseguiram se libertarem delas.

Entretanto, cabe-nos fazer uma ponderação à análise de Neves (1968), pois os sinais e/ou intenções do branqueamento do cinema brasileiro são anteriores a existência da Companhia de Vera Cruz. Este modelo de práxis cinematográfica, no qual, é possível identificar uma negação à diversidade multirracial e multicultural do país, remonta desde o período do cinema mudo no Brasil (Carvalho, 2003). O exemplo já citado da Revista Cinearte é emblemático nesse sentido.

Portanto, faz sentido que filmes como Barravento (1962), Ganga Zumba (1963), Aruanda (1960) ou até mesmo Bahia de todos os Santos (1960) – que não está na lista do Neves (1968) –, sejam produções que, de alguma maneira, atinjam um patamar de importância histórica por fazer um esforço para romper uma fórmula industrial estabelecida no período, sendo o pontapé inicial de uma movimento que ganhou legitimidade mundial.

O pesquisador Noel Carvalho ao analisar a tese de David Neves afirma que é um “misto de texto analítico e manifesto, seu argumento é de fundação e constrói fronteiras entre o filme negro, o filme indiferente à questão racial e o filme racista. Este último corresponderia à tradição iniciada pela Vera Cruz” (CARVALHO, 2008, p. 55). Numa conclusão ou síntese baseado no texto do crítico, Carvalho (2008), escreve:

Para ele, os filmes do Cinema Novo são anti-racistas porque: 1) não representavam o negro como fizeram os outros (chanchadas, Vera Cruz) até aquele momento; e 2) produziam uma identificação entre o realizador (branco) e os personagens negros, sem que a cor fizessem qualquer diferença. (CARVALHO, 2008, p. 55).

Este texto é um dos primeiros (senão o primeiro) que encontramos que buscou refletir sobre a questão racial no cinema nacional. Embora, reconheçamos sua importância e relevância histórica, e como observou Carvalho (2008), ele apresenta bases fundadoras para se pensar um cinema negro no Brasil. Entretanto, analisado sob outra perspectiva, ele não oferece ou aponta para uma mudança estrutural dentro campo audiovisual no que se refere a atuação do artistas afro-brasileiros em outras áreas da cadeia de produção do cinema, principalmente as instâncias de poder que correspondem as funções de direção, roteirização ou a produção, por exemplo.

Nessa perspectiva, teremos no final da década de 1970, a publicação de outra reflexão importante sobre a questão racial e o cinema brasileiro, no qual, é possível encontrar bases para a discussão de um Cinema Negro no Brasil. O texto “O preto-e-branco ou colorido: o negro e o cinema brasileiro” (1979), do também crítico e cineasta Orlando Senna.

Apesar de serem contemporâneos, Senna (1979) escreve um texto completamente antagônico ao de David Neves (1968), ao que se refere sua análise sobre o cinema nacional, sobretudo a questão racial. Nesse sentindo, proporcionando reflexões significativas e problematizando questões que ainda podem ser discutidas na atualidade. Em suma, ele divide a historiografia do cinema brasileiro em três fases. Como bem observado por Carvalho (2008), o crítico utiliza-se de metáforas raciais para denominar cada uma delas. A primeira fase, chamada de Cinema Branco, corresponde ao período de 1898 a 1930. Segundo o autor, este momento foi marcado por surto regionais de produções concentrados em Recife (Pernambuco), em Campinas (São Paulo) e Cataguases (Minas Gerais) e foram abordados diversos aspectos da sociedade brasileira. No entanto, ao que se refere a temas que perpassasse questões étnicas o tratamento foi ambíguo e inconsistente.

Segundo Senna (1979), aos temas indígenas coube as adaptações de algumas obras de José de Alencar como “O Guarani” (1857), “Iracema” (1865) e “Ubirajara” (1874). Em relação ao negro, houve uma completa diluição. O autor destaca os registros da versão de A cabana de Pai Tomás (1910), de Antonio Serra, e de uma adaptação do livro “O mulato”, em 1917, do diretor italiano Vittório Capellaro.

De acordo com Carvalho (2003), esta época os negros apareciam somente às margens do enquadramento. “O negro aparece neles de forma lateral, isto é, quase sempre nas bordas e no fundo dos enquadramentos e sem nenhuma função dramática” (CARVALHO, 2003, p. 162).

Portanto, Senna (1979) é contundente ao afirmar o que se filmou neste primeiro período do cinema brasileiro foi a “civilização europeia abaixo do equador”.

O cinema brasileiro permanece impermeável à questão racial, refratário ao fenômeno do pluralismo cultural da jovem República e, em consequência, etnocêntrico. Um Cinema Branco, difundido subjetivamente um modelo onde não havia lugar para o negro. (SENNA, 1979, p. 213)

A segunda fase é denominada por Senna (1979) de Cinema Mulato. Esclarece que, ao enxergar o cinema com enorme poder de alcance das massas, grandes nações produtoras de filmes investiram em produções para propagar seus posicionamentos ideológicos. O cinema brasileiro, a partir da década de 1930, assume esta característica. É neste período que foi fortemente estimulada a construção de uma identidade nacional, de uma unidade brasileira. Dentre os diversos intelectuais que se debruçaram nesta elucubração está o pernambucano Gilberto Freyre, com sua obra “Casa-grande & Senzala”. Entre as suas contribuições, é a partir dela que se consolida no pensamento social brasileiro a ideia de uma democracia racial na sociedade brasileira. Esta argumentação consistia na defesa de um país constitutivamente miscigenado (culturalmente e racialmente), isto é, a formação social do Brasil é fruto das relações e interações entre brancos, negros e índio. É importante ressaltar que esta relação não foi constituída de forma consentida, como defende o sociólogo pernambucano, mas alicerçado por meio da violência e estupros. Antes visto como obstáculo para o desenvolvimento de uma “civilização” brasileira, no entanto, a miscigenação adquire um status positivo, não é mais impeditivo para consolidação do Brasil como nação, e mais, torna-se umas das justificativas para afirmar a inexistência do racismo, em decorrência da convivência harmoniosa entre as diferentes etnias – incluindo relações sexuais entre membros da Casa-grande e a criadagem da senzala desde o período da escravidão. (Araújo, 2000).

Gilberto Freire atende esta necessidade imediata (Casa Grande & Senzala, de 1933), equacionando a questão segundo um prisma patriarcalista e formulando a teoria da “democracia racial”. Organizando, aquecendo e propalando componentes do sistema ideológico da oligarquia acuada, Freire nega a existência de racismo no Brasil, ignorando ou diluindo a luta libertária dos negros escravizados (como se fosse possível apagar da História o Quilombo de Palmares – enclave negro com leis e sistema próprios, quase um século de luta armada de Ganga Zumba a Zumbi – ou as revoltas baianas de 1807 a 1844). (SENNA, 1979, p. 214)

Foi nesse espírito que o cinema brasileiro, a partir do anos 1930, ganhou força com ascensão da Chanchada e o estabelecimentos das primeiras indústrias cinematográficas como a Atlântida e Vera Cruz, por exemplo. Segundo Senna (1979) foi neste período o processo de um despertar de um interesse meramente exótico do corpo negro no cinema brasileiro. Sobretudo a mulher negra, transformando-a apenas num mero objeto sexual.

Entretanto, é possível afirmar que resquícios desse cinema ainda permanece no âmago das produções cinematográficas nacional. As ideias freyriana ainda estão presente no imaginário comum da sociedade, conscientemente ou não. São incontáveis as produções no início deste século que refletem esse discurso e sua construção imagética do negro nos filmes.

A incidência dessa utilização do corpo negro cresce geometricamente da chanchada da Atlântida até a pornochanchada dos anos 70, que ocorre na mesma época em que a 'indústria da mulataria' se organiza e aumenta seus lucros. Em toda uma linha de comédia a mulher negra é vista numa situação de senzala, sempre servindo a um Senhor, satisfazendo sua luxúria, limpando a casa e fazendo a comida (a presença de um ator do porte de Grande Otelo nesta linha de comédia não é bastante para descaracterizar esse tratamento - mesmo porque a lucidez, o talento e a garra dos nossos grandes artistas negros nunca conseguiram furar o bloqueio que o cinema impõe às suas aspirações e reivindicações). Difundindo uma imagem colonial e estereotipada do negro - animal de carga ou objeto sexual - esta parcela do cinema brasileiro evoca e confirma o sentido pejorativo da palavra mulato (que vem de mula) (SENNA, 1979, p. 214-215).

A normalidade da prática do racismo impõe sua lógica de funcionamento no campo, que mesmo, reconhecendo o talento artístico de Grande Otelo, ele sempre estará sujeito ao retrato de uma imagem colonial de si e os estereótipos convencionais do negro.

Nesse sentido, cabe ressaltar as preocupações estéticas e sociais desses filmes, de acordo com Senna (1979), eles induziam e reforçavam o lugar de subalternidade do negro na sociedade brasileira. Tendo como exemplos, segundo autor, os seguintes filmes: A escrava Isaura (Eurides Ramos, 1949) – a primeira adaptação aconteceu em 1930 de Antônio Marques da Costa –, Favela dos meus amores (Humberto Mauro, 1935) e a segunda versão de Osvaldo Censoni, em 1958. Sua crítica também recatai sobre o filme Orfeu do Carnaval (Orphéé Noir, 1959), dirigido pelo cineasta francês Marcel Camus, baseado na peça teatral de Vinícius de Morais.

O ângulo fechado sobre as escolas de samba cariocas não permite uma visão de conjunto, oculta as relações opressivas entre o asfalto e a favela e impõe a favela como o lugar ideal para o negro, o seu lugar, onde poderá viver feliz mamando o mel e o néctar de sua musicalidade – enfim, um Olimpo negro, como está sugerido na inspiração mesma da obra a mitologia grega. (SENNA, 1979, p. 215).

Por fim, Senna (1979), afirma que sendo esta fase da “mulataria” e reconhecer a inserção de uma parcela de atores afro-brasileiros como jamais visto não foi o suficiente para que houvesse um equilíbrio da presença negra nas telas, ou seja, que a manifestação ou traço da multirracialidade brasileira fosse presente com equidade nessas produções. Todavia, o que se viu foram poucas as produções que confortaram a ideologia do branqueamento que permanece até nos dias atuais como padrão de normatividade, beleza e estética.

Melodramáticos, melosos, evasivos, este filmes fundamentam, na expressão cinematográfica nacional, a tolerância da Cultura Dominante quanto à presença material da camada negra em nossa população. O que não significa que a presença física do negro no Cinema Brasileiro passe a corresponder percentualmente à presença física do negro na sociedade. Esse equilíbrio percentual tão pouco é alcançado no Cinema Novo e na Embrafilme dos anos 70, apesar da considerável ampliação do gueto negro que se verifica nas telas de a esta parte. (SENNA, 1979, p. 216).

A terceira fase é denominada Negro/Povo e, corresponde especificamente, ao período do