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3. RESISTÊNCIAS E RE-EXISTÊNCIAS DO CINEMA NEGRO BRASILEIRO

3.1 Entrevistados: trajetória, vida e obras

3.1.4. Viviane Ferreira

Viviane Ferreira da Cruz é roteirista, diretora e advogada. Nasceu em Salvador, na Bahia, tem 30 anos de idade. Atualmente, ela reside em São Paulo. Há quase 10 anos saiu da cidade baiana com o objetivo de estudar cinema na capital paulista. Segundo a cineasta, sua paixão pelo cinema iniciou ainda na infância. Como era “viciada” por televisão, seu programa favorito era as sessões de filmes: “Cinema em casa”, “Sessão da tarde”, “Tela quente”, “Supercine” e até o “Corujão” – que é exibido na madrugada. Mas sua primeira experiência numa sala de cinema ocorreu aos nove anos. Ficou encantada com todo processo ritualístico de fruição que o cinema proporciona.

Aos 15 anos já estava decidida que queria estudar e trabalhar com cinema. Ao comunicar o desejo para sua mãe, que era manicure, no primeiro momento não respondeu. “Ela parecia que não tinha ouvido direito”, lembra Viviane. Mas depois de três dias sua mãe a informou que estava aberta inscrição para um curso de “Cine TV e Vídeo” gratuito organizado pela ONG chamada Cipó Comunicação Interativa. Dias depois a mãe da Viviane a matriculou na escola, após ser aprovado no processo seletivo iniciou o curso na ONG.

Foi um deslumbramento o período do curso. Ao terminá-lo estava convicta da profissão que queria seguir. “Depois da Cipó eu decidi que tinha que ser cinema, que eu queria fazer cinema para passar na televisão” lembra a cineasta. Nesse mesmo período, ela também fazia o curso de Formação Básica em Teatro com o grupo Bando de Teatro Olodum. Também foi a época que se aproximou da organização de mulheres negras de Salvador.

Após terminar o curso na Cipó Comunicação Interativa, continuou buscando se aperfeiçoar dentro da linguagem audiovisual. Ganhou uma bolsa para custear uma oficina de Direção de Arte com Vera Hamburger, dentro da programação do Festival do Minuto no Diretoria de Imagem do Som do estado da Bahia, conhecido como Dimas. Novamente, ganhou outra bolsa, por meio da articulação de alguns amigos, para oficina de “Direção para Cinema”.

Viviane, desde sua adolescência, foi atuante nos movimentos sociais e movimentos estudantis. Participou ativamente de uma grande greve que ficou conhecida como “A Revolta do Busão”. O engajamento social dela ainda permanece, principalmente em relação as pautas ligadas ao feminismo negro e do cinema negro.

Em sua trajetória para formação profissional em cinema esbarrou em alguns obstáculos. Quando foi prestar vestibular, na época, em Salvador, só havia o curso de cinema na faculdade particular. Foi quando decidiu ir para São Paulo prestar vestibular para o curso de cinema da Universidade de São Paulo (USP). Ela era aluno de um cursinho particular cujo tinha ganhando uma bolsa de 85%. No meio do ano, o cursinho extinguiu as turmas de humanas. Ela solicitou uma transferência para São Paulo para não perder a bolsa.

Eu lembro que na época falei com Samuel Vida, com Luiza Bairros e Vilma Reis, com a galera mais velha do movimento negro de Salvador pra falar desse meu desejo de sair e estudar cinema e que significava estudar cinema para contar histórias pretas. Eu nunca tive dúvida da função política que eu tava escolhendo, fazer cinema. (CRUZ, 2016)

Assim, aconteceu. Com apoio do grupo de Mulheres Negras de Salvador, principalmente de Luiza Bairros, ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que a época trabalha no governo do Estado da Bahia, e de alguns membros do Movimento Negro, conseguiram um local para ela morar em São Paulo.

Em seu primeiro vestibular não passou por um ponto. A frustração foi enorme. Ela quis continuar em São Paulo para tentar de novo ano seguinte. Assim o fez, conseguiu um novo emprego e continuou estudando. Em sua segunda tentativa ao vestibular da USP, reprovou de novamente.

Desta vez, Viviane não quis esperar mais um ano para tentar um novo vestibular. Foi até Reticom Escola de Cinema e negociou uma prova para tentar uma bolsa. Digo negociar porque, de acordo com a cineasta, a escola não trabalhava com esse tipo de modalidade. E assim, aconteceu, fez a prova e conseguiu uma bolsa de estudos, entre 2006 e 2008. A Escola tinha uma parceria com o Instituto Stanislavsky para uma especialização, ela continuou estudando durante o ano de 2009 e 2010.

Paralelamente, ganhou uma bolsa do Programa Universidade para Todos (PROUNI) do governo federal para o curso de Direito na Universidade Paulista (UNIP). Também nesta época, como ela diz: “para garantir o exercício da militância” se aproximou do Instituto do Negro Padre Batista, lá começou a frequentar o grupo Banzu, também composto por jovens negros universitários. Formou-se em direito em 2013, atua na área do Direito e Audiovisual, com ênfase em direito cultural advogando nos seguintes temas: direitos humanos, juventude, processos educacionais e gêneros e relações raciais.

Sua produção cinematográfica reúne cinco curtas-metragens e um média-metragem. Não muito diferente do início de carreira dos cineastas citados nesta pesquisa, seus primeiros filmes foram financiado com recursos próprios. O que a cineastas denomina de “Filmes-ansiedade”. “Eu divido a minha trajetória cinematográfica com relação aos recursos em duas etapas: uma é a etapa dos filmes-ansiedade e a outra etapa dos filmes-sem ansiedade” (CRUZ, 2016). Dê sua ideia, debata (2008) foi seu primeiro filme. Foi lançado no “Encontro de Cinema Negro – Brasil África e Caribe”, festival criado por Zózimo Bulbul. No evento reunia vários cineastas negros de África e da diáspora. Estava presente o “olheiro” do Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO), o maior festival de cinema do continente africano, que é realizado em Burquina Faso, ao conferir a exibição do filme da Viviane, selecionou-o para a próxima edição do festival africano. No anos seguintes lançou Marcha Noturna Pela Democracia Racial (2009), Festa Mãe Negra (2009), Mumbi 7 Cenas Pós Burkina (2010), Sambalaiando (2012) e Peregrinação: partindo de nós próprios para chegarmos à nós mesmos (2013). Seu mais recente trabalho é o curta-metragem ficção O Dia de Jerusa (2014), pela primeiro vez acessou uma verba de fomento de produção audiovisual. O projeto foi contemplado pelo edital de Fomento ao Cinema da Prefeitura Municipal de São Paulo.

O dia de Jerusa (2014) teve uma relevante circulação por festivais e mostras pelo Brasil – percorrendo também o circuito alternativos, como mostras universitárias, feministas e de Movimento Negro. Atingiu seu auge ao ser selecionado para 67º Festival Cannes, integrando a programação do Shot Film Corner. Ainda na França, o filme foi exibido em Paris no Nollywood Film Festival. O curta-metragem também circulou em mostras pela Alemanha, Suíça, Bélgica e Martinica. Ele também foi exibido na TV Brasil dentro do programa Nação.

A diretora é sócia-fundadora da produtora Odun Formação & Produção. A seleção para o Festival de Cannes garantiu a participação no Marché Du Film, a parte comercial do festival em que diversos profissionais da cadeia produtiva do cinema se reúnem para consolidar parcerias e negócios, foi a oportunidade de apresentar a proposta de trabalho que se concentra

no fortalecimento da valorização da cultura afro-brasileira. Ela também é presidente da Associação Mulheres de Odun, organização feminista que trabalha em prol da democratização dos bens culturais com recorte de gênero e raça.

A cineasta afirma que tem como referência os cinemas de Zózimo Bulbul e Glauber Rocha. No entanto, a influência de Zózimo não se resume somente a sua produção cinematográfica. Está principalmente na defesa veemente de um Cinema Negro brasileiro, da qual, ela o considera o precursor, no Brasil. O que podemos observar desde o início desta pesquisa, nesta geração de jovens cineastas negros, Viviane, tem se tornado uma das principais referências nesse debate. Chegou a publicar recentemente três artigos, como vimos no capítulo 2, sobre o tema no site noBrasil: “Cinema Negro: totem sempre vem de longe”; “Meia Lua e uma Rasteira: a peleja entre Poder Institucional e o Cinema Negro”; “Cinema Novo e Cinema Negro: da Estética Da Fome à Estética do Faminto”. Têm participado de diversos debates em festivais e mostras alternativas de diversas cidades do Brasil sempre defendo esta perspectiva do segmento audiovisual brasileiro. Embora, tenha-se aberto espaço para o debate em grandes festivais como o Festival de Cinema de Gramado e Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ela salienta que o Cinema Negro brasileiro, isto é, esta produção de autores negros e negras continua com dificuldade de circulação, principalmente em mostras competitivas.

A gente precisa discutir a qualificação da inserção do cinema negro nesses espaços. Eu tenho dito em muitos lugares “olha, eu escolhi fazer filme, eu não escolhi ser palestrante”. Então o rolê de ficar me chamando pra falar de cinema negro sem exibir meu filme não vai rolar. Por que eu escolhi fazer filme, não fui fazer um curso de oratória pra sair por aí palestrando sobre fazer cinema negro, sobre o que vem a ser cinema negro, eu escolhi fazer filmes. (CRUZ, 2016)

Em seu currículo há direções de alguns videoclipes de artistas independente, assim como atuações em outros projetos assumindo outras funções. Principalmente com seus conterrâneos do Coletivo Tela Preta, na qual, possui bastante proximidade. É presidente da recém criada Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), que integra profissionais do campo do cinema de todo país. Atualmente, Viviane está trabalhando no roteiro de seu primeiro longa-metragem, chamado Um dia com Jerusa. Este ano ela ingressou como aluna regular no programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Brasília.