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DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO QUARTO

CAPÍTULO QUARTO

COMO, POR CONSELHO DO MAIORAL DO FATO, FOI LEVADO FILOMESTO PELOS PASTORES À CORTE DE NARFENDO, ONDE FOI CRIADO E ENSINADO E, DEPOIS,

ARMADO CAVALEIRO

O maioral do fato aconselhava aquela noite a Filomesto que quisesse consentir ser levado e apresentado ao senhor daquela terra e do gado que eles ali apascentavam, do qual receberia grande honra e gasalhado. Consintiu (sic) Filomesto nisso, porque um estrangeiro, e só, a tudo obedece em terra alheia; e, com seu consentimento, ordenaram os pastores sua ida pera o dia seguinte em que na cidade se fazia uma grande e solene festa, querendo lá levar o que sem ela estava.

E ao outro dia, logo em amanhecendo, deixando alguns por guarda do gado, pondo os dois lobos, que Filomesto matara, sobre duas bestas de seu serviço e a Filomesto, que de fina grã estava vestido, como do mar saíra, sobre um branco palafrém do serviço do maioral, pondo-lhe por sela umas peles pretas de cordeiros, ia sobre cordeiros o cordeiro Filomesto, parecendo mais coisa do Céu que da Terra. E, passando muitas serras e malhadas de pastores, se ajuntavam com estes outros de cada uma, por acompanhar a Filomesto, espantados do que dele os primeiros lhe contavam.

Já passava de horas de vésperas quando chegaram à cidade, e, começando a entrar por ela, se puseram nesta ordem: Iam alguns pastores diante com as bestas que levavam sobre si os lobos atravessados mortos, com as bocas abertas com umas estacas antre os queixos, com que pareciam mais feroces, e logo detrás ia Filomesto, como tenho dito, em seu palafrém branco, assentado na sela dos cordeiros o cordeiro, rodeado de muitos pastores, vestidos de seus gabões girados, todos com seus cajados altos. E, começando a entrar pelas ruas, acudia grande multidão de gente às portas e janelas, e pelas praças, pera ver aquela novidade nunca vista; e, passando adiante, os iam seguindo, até que chegaram a uma grande praça, defronte dos paços de Narfendo (que assi se chamava o senhor daquela terra), o qual estava encostado em um cochim de carmezim, que em cima de um dorsel do mesmo estava sobre o peitoril de umas baixas varandas, vendo os jogos e danças que, passando por ali, diante dele, se representavam.

Acabara, então, de passar uma dança de fermosas donzelas, quando os pastores chegaram com seu fermoso donzel. Pareceu isto a Narfendo e a todo o povo a mais estranha e notável invenção de toda aquela festa, como, na verdade, o era.

E ajuntando-se muita gente ao redor dos pastores naquela grande praça, começou o maioral deles (que, ainda que de rústico ofício, era de bom entendimento) a falar com Narfendo, em alta voz e com a devida cortesia, desta maneira:

“Benigno e alto senhor, a quem, por vossa real condição, vossos vassalos servem mais com livre amor de filhos que com servil temor de súbditos ou escravos, porque em vós sempre sentiram todos obras de bom pai e senhor. Nós, os pobres e baixos pastores, lá nas serras, onde andamos, não estamos tão longe deste conhecimento e amor, que vos não desejamos servir com ele, como os maiores e mais privados de vossa casa. Um caso estranho nos aconteceu, de que todos pasmamos: porque, vigiando anteontem (sic) de dia vosso gado, uma loba nos desinquietava, e correndo com os cãis depós ela, a deixamos ir, por ser já quase noite, tornando-nos a recolher pela melhor guarda dele; foi ter esta loba onde este donzel estava, perdido naquela serra, a qual ele matou, como se fora um Hector ou Aquiles. E sendo, já de madrugada, acometido o gado desse lobo, o perseguimos também, até o vermos diante de nós ser morto às trochadas pelo mesmo donzel, que nos pareceu guarda enviada do Céu pera defender nosso gado. E como os pescadores do mar e dos rios vos trazem e apresentam

Capítulo Quarto 10

os peixes reais, e os moradores da terra fazem o mesmo dos que saem à costa, por vos serem direitamente devidos, a vós pertencia que trouxéssemos também esta caça real deste donzel, não do mar, nem da terra, mas do Céu, donde parece vindo, que naquela grande serra antre nossos pastos achamos, defendendo nossos gados com sua fortaleza e valentia e espantando a nós com isso e muito mais com sua fermosura. Aqui vos oferecemos este real presente e os lobos, por esta ave de altanaria mortos, pera que deis vosso favor e emparo (sic) a quem lhes deu a morte a eles e a vosso gado vida, e a nós quietação e seguro de seus contínuos sobressaltos”.

O grande contentamento que Narfendo e todo povo recebeu não se pode contar, nem encarecer com palavras. E, pondo os olhos ora na lindeza de Filomesto, ora na ferocidade dos animais mortos, ora no bom pastor, que por tão gentil maneira o caso representava, mandou Narfendo que subissem onde ele estava. E, entrando em um pátio dos paços e subindo por uma espaçosa escada de mui polido mármore, se apresentaram nas varandas diante dele, o qual recebeu este pastoril presente nos braços, com mostras e palavras de tenro e verdadeiro amor, que teve com Filomesto, de quem soube por extenso as particularidades de sua viagem e a perda de seus companheiros, que ele com grande tormenta, que sobreviera, tinha por perdidos, pera ele vir a ser ganhado em sua presença, onde, então, se achava.

Pelo que, dando Narfendo grandes dons aos pastores, que, contentes, se tornaram pera os pastos de seus gados, o recolheu em sua casa e mandou ensinar e adestrar nas ciências e armas como filho, nas quais tanto aproveitou Filomesto em poucos anos, que os mais sábios nas ciências daquela cidade lhe davam obediência e os mais destros nas armas lhe reconheciam avantagem e o temiam, pelo que veio por sua mão a querê-lo armar cavaleiro pera o mais honrar.

E aparelhado pera este auto solene todo o necessário, conforme a seu poder e riqueza e ao grande amor que a Filomesto tinha, o levou uma véspera de festa, já de noite, todo vestido de branco, em sinal de inocência e limpeza, que tal ofício requeria, com muitas tochas acesas, acompanhado de muitos e principais cavaleiros e de todo povo, de seus paços até a igreja principal daquela cidade, onde foi ter a vigília antre os nóveis cavaleiros costumada.

E, segundo o antigo costume daquela terra, entrando na igreja, lhe lavaram a cabeça, como que dali por diante havia de ter mais apurado siso, e, deitado em um leito limpo e brando, logo o mudaram a outro, áspero e sem limpeza, pera conhecer que dos mimos e regalos da mocidade se passava à idade e estado em que se haviam de sofrer desgostos e trabalhos, os quais ele havia de ter, dali por diante, por seu leito e descanso. E alevantado deste segundo leito, foi armado de armas brancas, e, posto em pé, as velou aquela noite com todos os cavaleiros, de que foi também velado, encomendando a Deus todos seus feitos e sucessos, pedindo-lhe que o fizesse idóneo pera aquela ordem de Cavalaria em que entrava, porque só Deus tem poder sobre todas as coisas e, principalmente, nos feitos das armas, que em sua mão está dar vida ou morte e fazer de fraco forte e de forte fraco, e faz pobre e rico, fere e sara, humilha e alevanta. Esta oração fez Filomesto com os geolhos em terra, e todo o mais tempo da noite esteve em pé, rogando todos os cavaleiros a Deus por ele, como homem que entrava no caminho da morte.

Em amanhecendo, ouviu missa, continuando em sua petição pera que o Senhor endereçasse seus feitos a seu santo serviço.

Acabada a missa, chegou-se a ele Narfendo, que neste solene auto era seu padrinho, armado em umas ricas armas, e lhe perguntou se queria receber a ordem de Cavalaria; respondeu que si, ainda que indigno dela. Tornou-lhe a perguntar Narfendo se a manteria como se devia manter; tornou a responder Filomesto que a todo seu poder o faria. Então, lhe calçou Narfendo as esporas e lhe cingiu a espada, fazendo-lhe jurar três coisas na cruz dela: a primeira que não arrecearia morrer por seu Deus e por sua lei; a segunda, por seu senhor natural; a terceira, por sua pátria.

E, havendo Filomesto jurado isto, lhe arrancou Narfendo a espada, que lhe cingira, e com ela nua lhe deu de pancha (103) uma porrada na cabeça sobre o elmo, com que a tinha ornada e armada, mostrando-lhe que, com o livre arbítrio do cavaleiro cristão, que Deus deixou e pôs na mão de cada um homem, que é homem e accepta qualquer cargo, quanto mais este, deve subjectar seu juízo à razão, pera sofrer todo trabalho de sua livre vontade, e fazer juízo de si mesmo, sem esperar ajuda nem juízo doutrem, que o force e governe. E depois lhe deu com a mão uma pescoçada, por que lhe lembrasse as três coisas que tinha jurado, como antigamente

Capítulo Quarto 11

usavam dar os circunstantes pescoçadas uns a outros, quando se recebiam alguns desposados, pera lembrança do que uns a outros no matrimónio prometiam. E tornando-lhe Narfendo a meter a espada em sua mão, e ele na bainha, lhe disse mais que Deus o guiasse e lhe deixasse cumprir o que ali lhe prometera. E, depois, o beijou na face, e o mesmo fizeram por sua ordem todos os mais cavaleiros que o velaram, em sinal de fé, paz e irmandade. Acabado isto, e outra oração que fizeram, se foram pôr a cavalo e tornaram pera os paços de Narfendo, que a todos festejou com um sumptuoso banquete.

E, depois de vésperas, se fizeram grandes justas e torneios, em que Filomesto, a juízo de todos, levou a honra e prémio, e o mesmo levava sempre em semelhantes empresas e exercícios, nunca sendo por isso invejado de algum, como comummente acontece; antes, por sua humildade, comedimento e modéstia, amado e venerado de todos, principalmente de Narfendo, que muito mais o amava e estimava.