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DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO SEGUNDO

CAPÍTULO SEGUNDO

COMO O PAI DE FILOMESTO O MANDOU A TERRAS ESTRANHAS EM COMPANHIA DE UM MERCADOR, PELA LÁ APRENDER E COMO COM UMA TORMENTA SE APARTOU DO

MERCADOR, FICANDO SÓ EM UM ERMO

Nos tempos passados, logo quando esta ilha se descobriu, depois de estendidas as novas pelo mundo de como se descobrira e da muita fertilidade, frescura e bons ares dela, vieram (como tenho dito), pera a povoar, de muitas partes homens nobres e fidalgos de várias qualidades e cavaleiros de muita conta, e não degradados, como alguns, ou envejosos, ou pouco curiosos, ou praguentos e maliciosos querem dizer contra a verdade sabida; porque, se alguns no princípio, ou depois, vieram de baixa condição e sorte, sempre foram conhecidos por tais e não se fez deles a nobre povoação da terra, pois só serviram aos nobres como criados mandados e não como senhores servidos.

E é esta ilha uma lagoa tão pequena, que nenhum dos de baixa progénie que a ela vieram, querendo-se fazer ou apregoar por fidalgos ou maiores do que são ou foram seus avós, se quiserem muito brazonar das armas e, nadando, bracejar nela, não dêem logo com os cotovelos em terra e, tomando pé, lhe não apareça a cabeça e rosto em cima da água, por onde seja descoberto, visto e conhecido. Em terra, como esta, onde sabem também muitos inventar faltas a bons e nobres manifestos e sabidos, não se pode crer que se dêem nela fidalguias, nem nobrezas postiças a maus, vis e baixos conhecidos, dos quais se não fez a povoação da terra pera eles mandarem nela, senão pera servirem. Abasta que, se alguns vãos e baixos aqui em algum tempo queriam pretender grandes fidalguias, como eram conhecidos por quem eram, quanto mais procuravam ser subidos, tanto mais eram de todo logo escarnecidos e abatidos.

Os primeiros que a povoaram foram pessoas de muita qualidade, entre os quais vieram alguns fidalgos e grandes homens, como homiziados por feitos de homens honrados, que em sua pátria fizeram, e outros, como envergonhados, não de culpas que tivessem, senão das que tiveram seus senhores, em cuja casa eles eram fidalgos e cavaleiros (porque o que a lei não proíbe a vergonha o defende). E outros também, por não terem tantos bens do mundo pera em suas terras viverem como quem eram, vieram povoar as alheias, dissimulando quem foram, disfarçando-se alguns a seu modo (como já tenho dito), antre os quais veio um mui prudente barão, amigo de ciências e grandezas, como, por alguns anos que viveu nesta ilha, deu suficientes mostras de quem era. O qual, vivendo aqui casado com uma nobre e virtuosa mulher, filha de virtuosos e nobres, houve dela um filho que os imitou bem nas virtudes, e, porque sua mãe, indo um dia em romaria, o ouviu chorar no ventre algumas vezes, nascendo ele, um grande sábio (como pronóstico do que havia de ser) lhe pôs nome Filomesto, composto de grego e latim, que quer dizer amador triste; e bem se viu neste triste princípio quão tristemente havia ele de viver toda a vida triste, porque o edifício, que há-de ser muito alto, logo no começo lhe vemos os alicerces mui profundos.

Criou-o sua mãe com mimos e seu pai com doctrina, e, entendendo que os filhos desta terra, com o viço que ele tinha, se tornavam viciosos, logo de pequeno o mandou a terras estranhas. E prouvesse a Deus que o mesmo usassem aqui todos os pais com seus filhos, pois temos clara experiência que, criados em terra estranha, lhe ficam naturais e honrados, e nesta se tornam estranhos e abatidos.

Foi Filomesto encomendado a um honrado mercador, que naquele tempo aqui arribou com contrários ventos e tempestades, pera que lá, em outra parte, fosse aprender as ciências e bons costumes, que nesta terra se não ensinavam, por entenderem todos aqui mais em roças de bravos matos (que já vedes, Senhora, quantos haveria naquele tempo em toda esta ilha, pois ainda agora são tão cerrados e medonhos em algumas partes longe dos povoados) e em

Capítulo Segundo 6

agricultura dos campos e em criações de gados, que em letras, nem livros, que nela não havia. E pera também o tirar da conversação de outros moços, filhos da terra, a que não lembra o que adiante devem ser e é razão que sejam, senão o que ao presente são e querem ser, gastando o tempo em jogos e passatempos, que no mesmo tempo brevemente se acabam, sem ficar deles mais fruto, nem proveito, que o tardio arrependimento de tempo tão perdido e mal gastado.

Partido Filomesto, filho deste alto homem (como depois se soube pelas suas obras, que deram sempre testimunho de quem ele era) em companhia daquele mercador estrangeiro, a que ia de seu pai e mãe encarregado com grandes dádivas e promessas, e bem provido do necessário pera o estudo e pera seu caminho, postpondo pai e mãe e filho as saudades naturais do corpo aos artificiais proveitos da alma, (como depois vieram dele novas certas) passada sua viagem mui comprida, foram ter a um promontório, que estava ainda muito longe da terra pera onde eles navegavam, vendo-o primeiro de muitas léguas, sem entenderem o desastre que nele lhes estava guardado. E conhecendo o mercador e marinheiros (por serem cursados naquela viagem) que ainda lhes restava longa costa pera andar antes de chegar à terra e porto mais perto de suas casas, determinaram fazer aguada e tomar refresco na terra alheia, antes que à sua chegassem.

Chegando-se perto dela, saíram todos em um pequeno barco que dentro, no navio, traziam, e, saltando no areal de uma enseada, que ali a terra com duas pontas fazia, começaram uns a apanhar marisco, outros a ajuntar lenha do mato, que junto à costa estava; e, ferindo fogo, fizeram seu comer do que acharam na terra e do que no navio levavam. Depois de haver comido com muito prazer de todos, como viam o tempo sereno, que não põem tempo em fazer de si mudança, se deitaram a dormir, estendidos pelo feno, de que aquela rocha estava coberta.

Filomesto, não podendo dormir como os outros, ou por sua pouca idade ou pelo que havia de acontecer dele (como, Senhora, vos contarei adiante), foi-se por antre o mato após os passarinhos, que sobre os ramos das árvores cantavam, ora parando-se a ouvi-los, ora tirando- lhes as pedras, cuidando tomar algum; correndo, de quando em quando, após eles, se alongou tanto do porto donde saiu, que, quando quis tornar, não soube atinar a que parte lhe ficava. Parecendo-lhe que ia bem, se ia mais alongando, que a pressa que ele levava por chegar à companhia que deixara, essa o alongava mais dela.

Acordando depois o mercador e mareantes e não o achando, chamaram por ele, cuidando que estivesse perto, encoberto antre algumas ervas ou árvores que ao redor deles estavam; mas, como viram que não respondia, adivinhando-lhe o coração o que era, apelidaram toda a mais companhia, e, por diversas partes, cada um a grandes vozes, começaram a bradar por Filomesto. A Filomena de uma parte e o Eco só da outra por ele respondiam, que ele não os ouvia pera lhe dar a reposta (sic) desejada.

Estando todos nesta agonia triste, começou-se a levantar um grande vento e, com ele, o mar, com uma tormenta tão furiosa, que o navio viera dar à costa, se logo com muita pressa lhe não valeram com se recolherem a ele no barco que a terra os trouxera, despregando só um pequeno seio de uma vela, com intenção de tornarem a ancorar no mesmo lugar, tanto que abrandasse aquela fúria do tempo, a qual afirmavam os pilotos não duraria muito pelos sinais que viam e razões que davam. Mas como os ventos e as ondas são sem razão, as coisas do mar de maravilha acontecem da maneira que se cuidam, e, por mais que os pilotos presumam de as entender, poucas vezes acertam. Ao menos, desta vez, se enganaram estes pilotos com os tempos fortes e enganosos, porque duraram tanto, que nunca mais lhe deram lugar pera poderem tornar a buscar ali o que com tanta pena deixavam, temendo muito todos que alguma besta fera matasse a Filomesto, chamando-se o mercador falso a si mesmo e mal cumpridor da promessa que a seu pai fizera, chorando com muita dor sua morte, tão temida em terra tão solitária e erma de todo humano emparo, e tão povoada de brutas alimárias e salvagens, porque eles lha tinham por mui certa no lugar onde o deixavam.

Mas quem estava destinado pera passar muitas mortes não era razão, ou não permitia seu fado, que com só uma delas pusesse fim a tantas.