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CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

No documento Revisão de texto e reformulação de índices (páginas 101-105)

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

DE UMA AVENTURA QUE ACONTECEU A FILOMESTO, EM QUE FOI CAUSA DE NARFENDO, SEU GRANDE AMIGO, VENCER A SEUS IMIGOS, E DO QUE AMBOS

PASSARAM ATÉ SE TORNAREM A DESPEDIR PERA SEMPRE

Nunca ninguém deixe passar ocasião alguma de fazer o bem que pode, porque, como Deus não permite nenhum mal sem castigo, assi não deixa nenhum bem sem galardão, ou tarde ou cedo. Da semente que cada um semeia, dessa mesma recolhe. Encontram-se os bens e os males em casos não cuidados, e, logo quando se faz o mal, sai abrolhando a justiça de Deus e o castigo dele; e, pelo contrairo, fazendo-se o bem, logo se enxerta nele o devido galardão, e, juntamente andando a igual passo a par, ambos vão crescendo.

Lá traz Deus uns rodeios tão compridos e armados de longe, pera chegarem seus juízos a seu tempo devido, por seus passos contados, que, estando o mau próspero e mais seguro, subitamente lhe dá o mate aos pés de seu regnado, e quando menos o espera.

Quem fez obra virtuosa lhe vem nascendo à porta, da parte do divino favor e ajuda, o prémio e paga dela, melhor do que o ele sabe buscar, nem desejar com seu saber humano. Também quem faz benefício ao digno, parece que, quando o dá, o recebe, pois faz alicerce e fundamento, sobre que arma edifício de merecimentos diante de Deus e dos homens, que, se não é logo, ao longe vem a pagar e servir com grande abundância as mercês, que, de perto, receberam. Como aconteceu a Narfendo, que criou e favoreceu a Filomesto, menino e moço, como a cegonha cria o filho no ninho, e depois, sendo velho, veio a ser dele favorecido, como agora, senhora, irei contando.

Partido Filidor, que por agora deixarei em seu caminho, e convalescido, depois, Filomesto, se partiu também pera o regno de Narfendo, seu antigo amigo, desejando de o ver, antes que pera esta terra viesse; e, atravessando, em uma fresca manhã, uma serra mui alta, que lhe fez lembrar a outra, em que nesta ilha vira a primeira vez a Tomariza, transportado com esta lembrança em amorosos pensamentos, e acabando de decer com eles, ao pé dela viu vir contra si seis cavaleiros, que chegando a ele, lhe perguntaram quem era e pera onde ia e donde vinha. Ao que cortêsmente respondendo, disse: — “Não sei, senhores cavaleiros, donde venho, nem pera onde vou, nem quem sou agora, nem quem soía ser em outro tempo, tal me tem tornado o meu cuidado; mas, se podeis escusar saberdes o meu nome, agradecer-vos-ei muito a ver-me por escusado dessa vossa pergunta.”

Ouvindo esta resposta os cavaleiros, cuidando que os desestimava, se indignaram, dizendo um deles: “Não andamos, cavaleiro, por esta terra pera usar cortesias, nem ouvi-las, nem o vosso cuidado poderá escusar nosso descuido em nosso ofício; dizei-nos, logo, quem sois, sem mais prolongas”. Ao que disse Filomesto: — “Força parece isso, com que me quereis fazer perder o meu direito, que eu sempre até aqui soube sustentar antre outras mores forças.”

“Agora o vereis” — disseram eles, arremetendo pera ele, juntamente com estas palavras e com as armas, que Filomesto recebeu como mestre velho neste ofício, havendo-se de tal maneira com seus contrairos, que prestes os fez ser de contrairo parecer, com que se puseram em fugida, uns por montes, outros por vales, como faz a manada das fracas ovelhas, quando antre si vê o lobo que as espalha.

E alcançando um, cujo cavalo não era tão ligeiro como o desejo de quem ia nele, se virou pera Filomesto, pedindo perdão de seu erro; do qual soube que ele e seus companheiros eram corredores do campo do exército de um rei, que com grande poder ia sobre Narfendo, e como e onde daí a quatro dias estava antre eles limitado o prazo pera dar a batalha. Se nalgum tempo Filomesto, antre seus contínuos pesares, teve contentamento, foi ouvindo isto, por chegar em conjunção de poder fazer algum serviço a quem o criara.

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E, deixando o cavaleiro, se foi caminhando pera aquele campo, de que era informado, onde, chegando uma noite antes do quarto dia aprazado, se deteve em um outeiro, do qual, vindo a manhã, viu os dois exércitos a ponto de guerra com grandes gritas e som de tambores, clarins e trombetas, que não só animavam os soldados e cavalos dos dois contrairos reis imigos mas também o cavalo e coração do amigo de Narfendo, com o qual orgulho, descendo do outeiro, se foi pôr no meio daqueles dois temerosos exércitos.

E vendo a grande avantagem do contrairo, assi em número de gente, como em armas, estando perto deles, em alta voz lhe disse: “Ó rei imigo de Narfendo, que queres com tirania passar os limites de teu regno e tomar o alheio, não cuides que está a justiça em maior cópia de gente e mais forças, que eu só te mostrarei o contrairo; manda contra mim dez, vinte ou mais cavaleiros, dos mais escolhidos de teu soberbo exército, e verás como no vencimento deles aparece tua sem justiça e se abate tua soberba."

Estas e outras palavras dizia Filomesto, bizarro batalhador antre aquelas batalhas, ouvindo de ambas as partes, pondo a uma ousadia e a outra espanto, quando ao exército de Narfendo trouxeram os seus corredores do campo um dos seis que de Filomesto fugiram, do qual souberam os duros golpes daquele cavaleiro do pelicano, que esta divisa trazia por timbre nas armas Filomesto, depois que se namorou de Tomariza, por rasgar seus peitos e coração por amor dela, o qual, por amor de Narfendo, os estava também então oferecendo à morte. De que houve grande rumor e diferentes opiniões naquelas companhas, dizendo uns que podia ser Filidor, amigo de Filomesto, o que pouco havia os ajudara já contra seu contrairo em outra guerra; outros suspeitavam se seria o mesmo Filomesto; e, com qualquer destas coisas que fosse, se alvoraçavam e animavam.

Mas, se estes cobravam esforço, o exército contrairo o perdia, vendo-se desonrar e afrontar de um só cavaleiro, de cuja valentia davam também testimunho os corredores do campo, que dele escaparam vencidos.

Mas, não sofrendo o rei afrontado mais afrontas, mandou sair a ele quatro cavaleiros mais afamados e abalizados de todo seu exército, que lhe prometeram trazer-lho logo preso, se assi puderam cumprir por obra sua promessa, que faltou, faltando a eles a vida, que passou pela ponta da lança e fio da espada de Filomesto. O que vendo Narfendo, disse aos seus: “Já que Deus nos favorece, e, por ventura, é aquele cavaleiro Santiago, ou anjo do Céu, enviado em nossa ajuda, aproveitemo-nos da ocasião e do tempo, pois não o é de esperar mais um só momento”. E, mandando logo abalar seus esquadrões contra os de seus imigos, com que já Filomesto só andava travado às lançadas, fazendo neles grande estrago, se travaram aquelas gentes guerreiras de tal maneira, que, não podendo sofrer o novo esforço que os de Narfendo cobraram com a suspeita de ser Filidor ou Filomesto, ou algum guerreiro sobrenatural, que Deus lhe mandava, e principalmente os duros golpes que dava e grandes proezas que Filomesto, desconhecido na dianteira, como bravo leão fazia, viraram as costas e se puseram em fugida, com que perderam o campo e fazenda, e quase todos a vida, senão alguns poucos, a que a obscura noite no alcance foi piedosa madrinha.

Acabado este feito, recolhendo-se Narfendo com sua gente, por mais que mandou buscar o cavaleiro do pelicano, o não puderam achar em toda aquela noite, por se ele apartar do exército, a qual passaram aqueles cavaleiros, e toda a infantaria, com festas, tangeres e cantares e grandes fogueiras, antre as quais se abrasavam com os ferventes desejos de saber quem seria o cavaleiro do pelicano, que, só, lhe dera tal socorro, a que todos atribuíam a vitória daquele dia, dando diversos pareceres de quem poderia ser, estando em tudo escuros, como a mesma noite, até chegar a manhã do claro dia, que aclarou suas dúvidas e alumiou seus entendimentos, cumprindo seus desejos.

Toda aquela noite, por mandado de Narfendo, com lanternas, tochas, fachas e luminárias se andou buscando por todo o campo o cavaleiro do pelicano pera lhe darem as devidas graças do benefício recebido e o agasalharem e honrarem, como merecia, mas nunca puderam dar com ele; até que pouco antes de amanhecer os descobridores do campo e atalaias o foram achar mui longe, pera contra aquela parte onde os imigos fugiram, que ele foi perseguido, fazendo neles grande dano, por ver se podia prender seu rei, o qual não achando, se esteve toda aquela noite vigiando o campo, pera atalhar a alguma volta ou salto que os contrairos dessem.

Andando passeando, lhe veio ao pensamento ir-se, sem se dar a conhecer com Narfendo, por arrecear ser dele ali impedido; e, pelo contrairo, cuidava o muito que lhe devia e não ser

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bem negar-lhe aquele gosto, que ele teria com sua vista, lembrando-lhe a criação e amor com que sempre dele fora tratado, com o que se determinou de lhe falar despedindo-se cedo dele, pera poder melhor prosseguir a jornada começada de vir ver a esta ilha a sua Tomariza, que tanto amava.

Andando nestes vários pensamentos, sendo já quase manhã o viram as atalaias e descobridores do campo, e chegando a ele com muita pressa e cortesia, descendo-se de seus cavalos, se prostaram diante, pedindo-lhe que, pois Deus o mandara ou do Céu ou da Terra, pera por seu meio lhe dar aquela vitória tão grande, houvesse por bem não negar sua vista ao rei, a quem dera tal socorro; ao que ele, respondendo que era contente, pois era o que mais ganhava em ir ver a face de tão bom senhor como era el-rei Narfendo, se foi em sua companhia, que cada vez ia mais crescendo, porque se ajuntavam aos corredores do campo os cavaleiros e soldados que o andavam saqueando, os quais, esquecidos de seu próprio interesse, tinham por maior riqueza a vista daquele cavaleiro, a quem todos a uma voz iam louvando, fazendo-lhe os capitães do exército grandes cortesias.

E, assi, com muitos tangeres de tambores, trombetas, sacabuchas e charamelas, e com infinitos cantares e folias do povo em seu louvor, o foram acompanhando até onde estava el-rei Narfendo, que, saindo de sua tenda grande espaço, o veio receber ao caminho com muita alegria e cortesia, o qual vendo o cavaleiro do pelicano, se apeou de seu cavalo, e o mesmo fez logo el-rei; e, alevantando a viseira, se pôs de geolhos pera lhe beijar a mão, mas conhecendo Narfendo que era o seu Filomesto tão buscado e desejado, que ele, de pequeno, em sua corte criara, arremeteu com os braços sobre seu pescoço e, como fora de si, em voz alta disse: "Ó Deus, este é o meu Filomesto”? E assi estiveram ambos mudos grande espaço.

Mas como o que perde um sentido de vista ou ouvido, cobra no outro dobrada melhoria, a mudeza dos dois amigos fez falar melhor a todo aquele exército, execitando-se (sic) todos em dar com grandes vozes e gritos louvores a Deus por tal ventura, celebrando o nome de Filomesto, que enchia todos aqueles campos e vales, onde também o Eco fazia seu ofício.

Tanta gente carregou sobre aquela parte por ver este cavaleiro, que quase o houveram de afogar a ele e a el-rei juntamente, se não foram os homens da guarda, que, pondo-lhe as pontas das alabardas diante, com grande trabalho os apartaram.

Tornados Narfendo e Filomesto a seu acordo, com amorosas palavras, acompanhadas de infinitas lágrimas de tenro amor, se foram pera sua tenda, dizendo el-rei que de boa vontade folgara de ser vencido naquela guerra pelo ver, quanto mais tendo a vitória que ele lhe dera, e que já então, pois o alcançara ver, morreria contente.

E assi contentes se estiveram no campo três dias, recolhendo dele todos os despojos, armas e riquezas dos imigos, que foram muitas, no fim dos quais se tornaram pera a corte, não querendo Narfendo seguir o alcance dos contrairos, nem tomar-lhe seu regno, como então pudera fazer, tendo por maior regno e interesse a vista e companhia do seu desejado Filomesto, com que conversou e se alegrou algum tempo, fazendo todo o povo grandes festas, mais por ter tal hóspede que por ter tal vitória.

Passados alguns dias, estando em um serão Filomesto só com Narfendo (como os prazeres duram pouco), lhe declarou Filomesto seus amores e seu intento, e como a força deles o forçava partir-se, a vê-los nesta terra, por fugir também naquela, onde estava, das esperanças mal tomadas, com que ainda o importunava e perseverava a malditosa Ricatena, o que chegou a Narfendo a par de morte, dizendo sobre isso mui sentidas máguas, cheias de estranhíssimas saudades.

Mas não podendo acabar com Filomesto que ali ficasse e conhecendo as mortais e incuráveis feridas de Cupido, houve de consentir em sua ida, com prometimento da tornada, pera que lhe pediu Filomesto que o deixasse ir sem o saber o povo, pois estava certo que impediria seu caminho.

E praticando ambos o modo que nisso teriam, assentaram antre si um dia, em o qual foram caçar a uma montanha, onde havia muitos cervos e porcos monteses. Sendo lá, com grande companhia de fidalgos e monteiros, apartou-se Filomesto e seu escudeiro com Narfendo, embrenhando-se, e, sós, se despediram com amorosos abraços e suspiros, acompanhados de tristíssimas lágrimas, com esperanças e promessas de se tornarem a ver muito cedo.

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Partindo-se tão cedo Filomesto, porque a pressa que o amor de sua amiga, ou imiga, Tomariza lhe dava não lhe consentia fazer muita detença com amigos, pela qual razão, alcançando assi pesadamente licença de Narfendo, que muito o amava, se despediu naquela soidosa montanha dele, com infinitas lágrimas de ambos e saudosas saudades, mais estranhas que jamais até ali teveram, como que adivinhavam ser aquela a sua última despedida e que não se haviam de tornar mais a ver, como, de feito, nunca mais se viram, porque os cuidados dos amores de Filomesto e a morte de Narfendo, que depois sucedeu, apartaram estes dois tão grandes amigos pera sempre.

Tornou-se Narfendo, cheio de mágua e dissimulação, pera casa e, ainda que vinham os seus, alegres, com porcos e veados e muita caça, acompanhava-os a tristeza de não poder achar a Filomesto aquele dia, e muito maior foi quando nos seguintes o não acharam, com que o prazer de sua vista se tornou tristeza, que é o fim e remate que têm todos os contentamentos desta vida triste.

Dizia meu pai, contando isto, que, se desta maneira se não despedira Filomesto, nunca o povo consentira em sua partida, porque, como naquele regno se elegia o rei por votos, que davam no mais digno, e não por herança, estava entendido e certo ser eleito Filomesto por morte de Narfendo (que dali a poucos dias com saudade dele sucedeu) e, assi, impedido pera nunca poder vir ver a sua Tomariza nesta terra, sendo feito rei naquela. Mas onde está natural e verdadeiro amor, e não fingido, é como a natureza, que com pouco se contenta e tudo despreza.

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