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DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO SÉTIMO

CAPÍTULO SÉTIMO

COMO FILOMESTO LIVROU DE UNS SALTEADORES UM IRMÃO DO MERCADOR QUE O LEVARA DE SUA TERRA, QUE DEPOIS ACHOU, E CONHECEU EM CASA DE SEU PAI,

SENDO SEU HÓSPEDE

Ia uma tarde Filomesto atravessando uma comprida e fragosa serra e, assomando seu escudeiro, que diante dele caminhava, no alto dela, descobriu dali com sua vista como outro mundo e outra terra, baixa, empolada, toda com pequenos e espessos montes cobertos de altos arvoredos, e, tornando a descer por aqueles crespos e arrugados vales, viu perto de si, por antre as árvores, estar uma quadrilha de ladrões e salteadores roubando, com grande rumor que faziam, uma grande recovagem de um rico mercador que por ali, então, passava. E entendendo o que era e querendo tornar atrás buscar a seu senhor, que não via, foi impedido com a pressa dos ladrões que o seguiram, vendo-o tornar pera donde vinha, ficando outros, com o mercador e recoveiros presos, descarregando as azémelas (sic) e desenvolvendo os fardos, assoalhando tudo por buscar dinheiro ou algumas jóias e peças ricas. E com tanta pressa seguiram o escudeiro fugitivo, que o alcançaram e prenderam; e, começando (sic) de o despir e buscar se levava alguma moeda (porque no deserto, onde ela se não bate, costuma semelhante gente dar bateria no que a leva; e ainda muitas vezes acontece o mesmo nos povoados, onde os ladrões são vistos e conhecidos, quanto mais nos ermos devassos, aparelhados pera toda maneira de maus acometimentos, onde não são achados, nem sentidos).

Neste tempo chegando Filomesto à tresposta do monte e vendo a companhia que a seu escudeiro se fazia, quis pagar o gasalhado àquela gente perdida, como ela merecia, pelo que, descendo com grande fúria a espora fita em seu cavalo, os ladrões, que o sentiram, deixando seu escudeiro, arremeteram a ele com suas lanças e dardos, cercando-o de todas as partes; e não somente estes, mas os outros, que com a recovagem ficaram, acudiram todos ao assalto tão travado antre todos, que foi bem necessário a Filomesto valer-se nele de todo seu valor e ânimo pera não ficar ali roubado e sepultado.

Mas como quando se ajunta o rústico povo aldeão com suas mal polidas e pior luzentes armas a buscar a besta fera, que o mal visto pastor lhes afirmou que era lobo, e chegados ao lugar onde lhes foi dito que estava, saindo dentre a mata, não lobo, mas um ferocíssimo leão, bramando e saltando antre a vil gente, quebra com grande ímpeto e despedaça lanças e bestas, abre e desgarra os corpos e faz voar as almas com grande crueza e ligeireza, e o que, então, melhor foge dele se tem por mais valente e esforçado, achando-se salteados do que não cuidavam, assi esta canalha de salteadores maus, cuidando que tinham na serra lobo com ver somente o escudeiro, achando-se depois com o bravo leão, que fazia estrago deles e suas armas; ainda que alguns o fariam, mais eram e por mais valentes se tinham os que se encomendavam à ligeireza de seus pés e se acolhiam.

E, matando ali o cavalo a Filomesto com as feridas das lanças, dardos e setas, que mui bastas lhe atiravam, depois de se ver a pé e seu cavalo caído e morto, se alevantou com dobrada fúria e, jogando com maravilhosa destreza, de sua espada os feria e fazia derredor de si larga praça, derribando, como raio, aqueles em que mais resistência achava.

Dizia meu pai (contando isto) que assi como o destro e acordado arrais, depois de perdido o barco com a contrária tormenta, se lançava ao mar com maior ânimo e em cima das ondas, bracejando a todas as partes, se esforçava salvar a vida, e a importuna braveza delas lhe dobrava o esforço pera nadar mais depressa, assi Filomesto, perdido seu cavalo, com maior ligeireza e coração invencível corria e acudia a todas partes, bracejando com sua espada contra a impetuosa fúria das lançadas e tiros de seus contrários, e com mais facilidade os alcançava e atropelava que se a cavalo estivera.

Capítulo Sétimo 17

E como o arrais, depois de muito bracejar e nadar, saindo à costa em salvo, se assenta sobre algum penedo descansando, olhando pera o mar já lançado e com suas ondas mansas e quietas, assi se assentou Filomesto sobre seu cavalo morto, depois de muito bracejar e manear das armas, olhando como tinha abatida e lançada por terra a bravura de seus inimigos, mais amainada e quieta que a mesma terra, onde todos mortos e estendidos jaziam. E parece que foi permissão divina que lhe matassem o cavalo, pera que ele a pé os pudesse melhor seguir e alcançar e matar, quando por antre o espesso arvoredo fugiam, por onde o cavalo passar não podia.

Acabado este negócio, se foi soltar seu escudeiro, que preso estava, e ambos foram adiante pela estrada, juncada toda de ricas peças de panos, sedas e outras coisas dos fardos, que desenvoltos tinha aquela má relé, que parecia aquele caminho, ali, lugar de gente impedida, onde tinha abertos e postos ao ar seus fardos e coisas que neles vinham, em maneira que estava tudo solto, senão os donos, que estavam presos. E, soltando aos recoveiros e ao mercador e a seus criados, lhe foram dadas as graças de todos pelo bom socorro que lhes dera e liberdades em que os pusera.

E tornando a recolher tudo e a dobrar suas roupas, e a refazer e carregar seus fardos, cavalgando Filomesto no palafrém de seu escudeiro, começaram a caminhar juntos algumas jornadas, com muito gosto e contentamento, contando o mercador como vinha de uma rica e franca feira, onde fora fazer emprego de muito dinheiro, e que toda aquela fazenda era de seu pai e de um seu irmão mais velho e sua, que moravam na cidade pera onde caminhavam.

Nesta conta e noutros contos passaram seu caminho até chegarem à cidade pera onde iam. Constrangeu o mercador com rogos a Filomesto que acceptasse a pousada em casa de seu pai, onde foi com grande gasalhado recolhido e servido, contando o filho a seu pai como por ele fora livre da morte e de ser roubado de quanto trazia.

Recolhido Filomesto a uma rica e bem adereçada câmara, que pera repousar e descansar lhe foi dada, estando com ele o venerável mercador antigo e seu filho mais moço, chegou o mais velho de fora, donde andava passeando na cidade, com o alvoroço das novas que lá lhe deram da vinda de seu irmão, e fazendo-lhe amoroso recebimento, assi a ele como ao novo hóspede, e ajudando-o todos três a desarmar, como Filomesto tirou o elmo da cabeça e o filho do mercador mais velho lhe viu o rosto e ouviu sua voz, conhecendo-o, se lhe lançou aos pés, chorando com muito prazer, dizendo: “Oh! meu senhor Filomesto, não sei se é sonho ver-vos agora, ou se vos vejo dormindo, ou se, esperto, me engano. Não conheceis vosso amigo Avinnezeno, que de casa de vosso pai vos trouxe menino? Que com insofrível mágoa vos perdi dormindo e com tão sobeja alegria vos acho agora, não sei se velando! Que ainda agora tenho sobressalto de ser esta vossa vista sonhada”!

Beijando-lhe os pés, lhos banhava e se derretia com a súbita alegria, todo em alegres lágrimas, que nisso são iguais o muito contentamento e a grande tristeza, porque ambas estas coisas igualmente choram. E acordando Filomesto como de sonho, conheceu seu amigo, com que saíra de casa de seu pai, e alevantando-o nos braços, o teve assi abraçado grande espaço, chorando.

O pai e o irmão, ouvindo que era este Filomesto perdido (como seu filho muitas vezes lhe contara), quase desatinados de prazer se abraçaram com ele e apelidaram toda a casa, que andava revolta com o alvoroço de tal hóspede, envoltas as lágrimas de todos em contentamento e o prazer em choro, que parecia casa de doidos. Tanto endoidece uma grande alegria, que não há coração, por mais grande que seja, que não fique pequeno pera a recolher toda junta.

Dizendo o honrado velho: “Hoje, senhor cavaleiro, ressuscitou meu filho, que por vossa perda andava morto, e me nasceu outro, que sois vós no amor que vos tenho, e se alegrou minha casa, e cobrei quanto tinha. Grande ventura foi esta minha, pois vos perdeu um filho meu vivo e vos achou outro meu filho morto, que, se vós o não livráreis da morte, ele a tinha muito certa antre aqueles ladrões na serra; e é pouco quanto tenho pera servir mercê tão grande”. Filomesto dizia: “Toda a boa ventura é minha em prestar pera vos servir, e sobeja-me galardão em vos conhecer a vós e aos vossos, e achar agora vosso filho, meu fiel companheiro”.

Estas e outras práticas de muito amor passaram todos, contando-lhe o trabalho que tiveram em o buscar muitas vezes no lugar onde se perdera e em outras partes muitas, sem achar dele

Capítulo Sétimo 18

novas; mas que tudo Deus ordenava pera maior bem e gosto. Então, souberam de Filomesto onde fora ter, e como ali viera, onde foi agasalhado por alguns dias, segundo seu alto merecimento e como o muito amor e conversação lhe devia a ele, e a seu pai, que, de princípio, ali o enviara. E sendo divulgados seus feitos em armas por toda aquela cidade e comarca, era tido em grande veneração de todos e visitado e conversado dos melhores da terra, que achavam em sua conversação ainda mores coisas do que sua fama apregoava. Que, onde ela é verdadeira, muito mais há na pessoa do que soa.