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CAPÍTULO VIGÉSIMO TÉRCIO

No documento Revisão de texto e reformulação de índices (páginas 105-116)

DO DOCTOR GASPAR FRUCTUOSO, NATURAL DA ILHA DE SÃO MIGUEL, EM QUE SE CONTAM NA HISTÓRIA DE DOIS

CAPÍTULO VIGÉSIMO TÉRCIO

CAPÍTULO VIGÉSIMO TÉRCIO

DO LOUVOR DE CRISFAL, QUE FILIDOR ESCREVEU AO PÉ DO ÁLEMO EM QUE ESTAVA ESCRITA A SUA ÉGLOGA

Passando Filomesto muitos trabalhos no caminho por terra de imigos, e por causa de sua doença, que se renovou depois de despedido de Narfendo, chegou primeiro a esta ilha, e, pelo contrairo, a saúde de Filidor lhe foi causa de mais detença, por ser ocupado em muitas aventuras, que não ouso contar por terem ventura.

Só sabei, senhora, que, caminhando ele um dia pelo reino de Lusitânia antre as serras de Sintra e as de Ribatejo, foi ter, antre um arvoredo, junto de uma ribeira, onde a água dela de alto lugar caía e, querendo descansar um pouco do trabalho do caminho, pondo os olhos em um alto álemo, que ali estava, viu nele escrito o choro do grande pastor Crisfal, que a curiosa ninfa escrevera, enquanto ele em outro tempo passado naquele lugar chorara.

E com a grande mágua que sentiu de ver um fiel amador tão mal ditoso, chorando também com ele ao pé do mesmo álemo, na medida dos que ali achou, escreveu estes versos.

Nunca desejei amores, por que tal mal desejasse; Mas porque, provando dores, Melhor teu louvor provasse, Crisfal, louvor de amadores. Que as tuas coisas subidas São de tanto merecer, Que quem quer delas dizer, Devera ter mais feridas, Quais tu soubeste sofrer. Ou devera ser Crisfal,

Quem, Crisfal, te há-de louvar; Porque, se ele não for tal, Não te pode louvor dar A teu merecer igual.

Mas, pois, agora estás mudo, por acabar já teu pranto, Algum teu louvor te canto; Porque pera dizer tudo Ninguém pode dizer tanto.

Capítulo Vigésimo Tércio 79

Por mais mal que estè (sic) sentindo, Ninguém, com grande vigia,

Nem por mais que vá subindo, Dizer tanto chegaria

Como tu, Crisfal, dormindo; Nem é caro fazer certo, Quão mais alto vás voando, Pois que qualquer, vigiando, Dirá que não diz, esperto, Quanto tu dizes, sonhando. Tu, pastor, e teu parceiro Engrandeceis Portugal Com português tão inteiro. Tu, em teus versos, Crisfal, e tu, em prosa, Ribeiro, Que de amor outra escritura Uma vez lida avorrece; Mas, ainda que se lesse Mil vezes vossa tristura, Cada vez melhor parece. Em branco estava Cupido, Antes que, Crisfal, nascesses, Esperando o teu sentido, Pera que dele escrevesses, Por ficar bem conhecido. Dantes era amor julgado Por cativo, e não senhor; Agora é amor, amor, Amor de muitos amado Por amor do escritor. Nunca amor tanto bem teve, Como por ti alcançou, E pois já ninguém se atreve Chamar-lhe o que já chamou, Tudo isto amor te deve; Tua escritura, bem vista, Todo mundo a louvará; Logo, cada um dirá

Que és de amor grande cronista; Mas de ti quem o será?

Os que são feios nascidos E mulheres afeiadas Podem ter filhos polidos, Vendo imagens bem pintadas, Em que ocupem os sentidos. Vendo teus versos, Crisfal, Tão doces e curiosos,

Quem não faz versos sabrosos? (sic) Até sem ter natural

Capítulo Vigésimo Tércio 80

E se o que aqui digo, Em mim só se não achar, Cuide cada um consigo Que, por querer-te eu louvar, Me vem isto por castigo. Logo eu teu louvor dissera, Sendo quem louvar espero; Mas louvar-te como quero, Só de Tito Lívio era, Ou pertencia a Homero. Se como tão bem choraste, Pudera eu louvar teu choro, Porque tanto me quadraste, Te houvera de pagar foro, Inda que não te aforaste; Muitos versos compuseste, E eu pera não errar Houvera de tresdobrar O conto, dos que fezeste, Pera cada um teu louvar. Antes que tua dor contasses, Contas tu que as mesmas águas Te rogavam que chorasses; Mas era contar tais máguas, Por que mais te maguasses; Pois as águas to diziam, Teu grão choro adivinhavam, Por que ouvir-te desejavam; Por isso donde caíam, Parece que to lembravam. Se eu Tejo acertara ser, Quando a par dele choravas, Por melhor te ouvir e ver, Por curar do que contavas, Não curara de correr; Nem creio que ele corria Em vendo-te estar chorando; Viste teus choros nadando, E isto te enganaria, Mas ele esteve escuitando. E é certo que te escuitava O amor de ti pasmado, E ele mesmo desejava, Vendo o teu sonho passado De ser o que o passava; O seu arco então mui quedo, Encostado à mão seu rosto, Bem junto contigo posto, Ali temia teu medo, Ali gostava teu gosto.

Capítulo Vigésimo Tércio 81

Quando alguém com se queixar Mostra que sente tristeza, Muitos move a seu pezar; Mas de ti ninguém lhe pesa Só pera te ouvir chorar, E se tu não acordaras, Como acordar não quiseras, Pelo que não escreveras, Ou pelo que não choraras, A muitos chorar fezeras. Assi como nos manjares O sal põe todo sabor, Se tu, Crisfal, não amares, Nem dera prazer amor, Nem pesaram seus pezares; E se Amor te não fezera Seu cronista principal, Sem te ter a ti por sal,

Não sei quem do amor soubera, Sem o saber de Crisfal.

És outro Siracusano,

Que Arquimedes é chamado, Que fez com saber humano Um novo mundo acabado Cos (sic) cursos de todo ano; Vendo o que de amor disseste, Vendo quanto amor louvaste Verão todos que acabaste E, de novo, amor fezeste, Que nada feito achaste. Pelo ver assi pintado, Sempre cuidei que era Amor Cego, da vista privado; Mas vejo, pois, que vê dor, Que é cego dissimulado; Descuidava-me, cuidando Que era cego, que não via; Pois tanto Crisfal dizia Que viu de noite, sonhando, Muito mais verá de dia. Fazendo por se extremar Alguém antre os antigos, No céu tinha seu lugar, Que eram por costume amigos De em estrela o transformar: Porque subiste às estrelas, Crisfal, com fama tão clara, Ninguém, como tu, chegara A ter grão nome antr’elas, Se ainda se costumara.

Capítulo Vigésimo Tércio 82

Já que és tão triste amador, Onde quer, Crisfal, que andares, Lembra-te de Filidor,

Chora lá os seus pesares, Pois cá chora tua dor: Porque conformam consigo Teu pezar e meu pezar, Ambos devemos chorar, E eu devo ser teu amigo Pelo teu choro sem par. Neste álemo esculpido, Nestas alongadas serras Achei teu choro subido, Que regou já muitas terras, Que d’antes secas hão sido. Pera poucos escreveste E a muitos aproveitaste, Porque inda que alto choraste, Com tal doçura desceste, Que a muitos baixos alçaste. Obras vejo fabricadas, Assás artificiosas, Antre doctos celebradas,

Que, inda que muito engenhosas, Todavia são forçadas.

Mas a tua rasa altura, A tua chã gentileza, Tua fácil soliteza

Não parecem compostura, Mas a mesma natureza. Livre tinhas a ventura, Mas em prisões te puseram; Se eras preso com brandura, E em Brandoa te prenderam, Porque era a prisão dura? Deveu ser de amor isento Quem usou tal crueldade; Enfim, amor de verdade Não tem na terra aposento; Na prisão tem a herdade. Preso levam a Crisfal Diga o cantar, ou dizia, Preso o levam por seu mal, Não por furtos, que fazia, Mas por amor imortal. Hera leva na cabeça, Sinal que era, e não será, Era, mas não durará

Seu amor, que em bem começa, Mas em mal se acabará.

Capítulo Vigésimo Tércio 83

É tragédia este mundo, Com venturosos começos E com seu rosto jocundo; Mas os seus fins são avessos, E tem fezes em seu fundo. Nos bens que te prometeu, Quando amá-lo começaste, Olha como desandaste, Pois quão mais alto te ergueu, Tanto mais baixo ficaste. Mundo movido por vento, Mundo desagradecido, Mundo sem conhecimento, Como deixas abatido,

Quem tem mais merecimento. Este mundo de mudanças, Cheio de mundos mudados A uns dá ouro, privanças; A outros prazer, estados; A ti só deu esperanças. A tua graça excelente Bem conforma o viver pobre, Que quem se estrema da gente Em ser sabedor e nobre Também nisto é diferente. Ouvi do teu pouco haver, Sem tal ouvir já sabia, Que onde o teu saber havia Não havia de caber

Ouro de menos valia. Se o dinheiro é servidor E o saber senhor perfeito, Não é bem servo e senhor Estar ambos num sujeito, Sem dar lugar o menor. Fugiu de ti a riqueza,

Deussete bem a paixão, (sic) Deu lugar ouro vilão

A teu saber e tristeza, Que de mais quilates são. Nem por ter minas a terra, Deixa de ser elemento

Baixo, que em outros se encerra; Daí sopra maior vento

Do mais alto dessa serra. Vento são riquezas vãs, E muitos que as tiveram Em vento as desfizeram. Com teu saber, tuas cãs, Essas só permaneceram.

Capítulo Vigésimo Tércio 84

Pois por destino do fado, Alter do Chão te criou, engenho tão sublimado Não ser bem pronosticou Outro do chão levantado. Dos pastores maioral, Chão com alta sublimeza, Rico engenho com pobreza, Vestida no teu saial

Está do mundo a riqueza. Águia de ninho erguido, Diferente te puseste De qualquer outro subido; Em Alter do Chão nasceste; Outro do chão és nascido. Que, inda que outros primeiro Por seu engenho fecundo Celebrou d’antes o mundo, Tu segundo és sem terceiro, Tu primeiro sem segundo. Ouvi, Crisfal, que acabaste Indo por mar navegando; Em bom lugar te enterraste Viveste mares chorando, Por sepultura os buscaste. As lágrimas que mandavas Ao mar, quando cá vivias, Acabaram lá teus dias; Cá dos olhos as choravas, Lá na boca as recolhias. Pera ser melhor lembrado O teu choro antre a gente, N’água foste sepultado, Se é verdade, que contente No mar morreste afogado. Mas vendo eu tanto chorar, Quanto tu choraste aqui, Duvido, porque isto vi, Se afogaste tu o mar Se o mar te afogou a ti. Ó ondas do mar salgadas, Se guardais vivo a Crisfal, Bem sereis galardoadas, Que com conversar seu mal Vos sereis doces tornadas; Que as lágrimas de Maria, Inda que salgadas eram Dês que à boca lhe vieram, Que tudo doce fazia, Nela doces se fizeram.

Capítulo Vigésimo Tércio 85

Razão é que o guardeis, Pois cá vos foi tão amigo, E, se como homem quereis Que acabe nesse perigo, Nisto vos desculpareis: Levai-o de porto em porto, Qualquer lugar saudando, Todo o mundo rodeando, Pera que, se em nós foi morto, Que viva a fama nadando. Depois ouvi que, provido D’el-rei, te querias ir Pera as águas já movido. E partindo ante partir, Te foste antes de ser ido; Porque, estando de partida Por mar, com próspera sorte, Atropos fada deu corte, Cortou-te o fio da vida, Vestiu-te a sombra da morte. O mar, que lá te esperava, Sem ser disto sabedor, Grandes festas ordenava Por receber com amor Quem ver tanto desejava. Junto das praias douradas Pôs os peixinhos dançando E suas ondas voltando, E no pego outras manadas De delfins grandes saltando. Como a teu louvor convinha, Pera bem te festejar, Muitos peixes juntos tinha, E Tétis, deusa do mar,

Bem com cem mil ninfas vinha, Vinha Vénus e Cupido,

Com Apolo convidado, Porque, dele tu chegado, Outra vez por mais subido, N’águas fosses coroado. Em seu carro triunfante Vinha logo o deus Neptuno Fazer-te seu almirante, E por não ser importuno, Não conto mais adiante. Abasta que todo o mar Se moveu a receber-te, Os peixes vinham por ver-te, As ninfas por te escuitar, As ondas obedecer-te.

Capítulo Vigésimo Tércio 86

Pera teu recebimento, Sendo assi todos movidos, Deu-lhe lá novas o vento Dos teus dias já cumpridos E do teu falecimento. Foram todos tão turbados, Sabendo perda tamanha, Que era de ver, coisa estranha, Convertida em choro e brados Toda aquela gram campanha. Os peixes se vão ao fundo Com pezar de tanto mal; Os que ficavam no mundo, Choravam tanto a Crisfal, Que em dizê-lo me confundo. Pois quem mais fere esta seta, Ou quem choro mais conquista, Era Apolo, e o sem vista, Um dizia o meu poeta, Outro diz o meu cronista. Se o mar desta vez achara Lugar pera onde correr, Certo é que se esgotara, Pois com chorar e gemer Todo junto se chorara. Mas os rios vêm dos montes, Outras águas das ladeiras Fazem pranto em mil maneiras, No mar vão entrar as fontes, No mar entram as ribeiras. Depois de te haver chorado Com assás dor e tristura, Foi antre eles consertado Que te dessem sepultura Onde eras tão desejado. Consertados desta sorte, Encarregou-se o Amor De te levar num andor

Em que andasse em tua morte Sempre vivo o teu louvor. Se Alexandre te alcançara, Os teus doces versos lera, Creio que o reino deixara, Que ser Alexandre, que era, Mais ser Crisfal desejara. Tanto da terra te alçaste Com teu sonho tão profundo. Que sem ficar teu segundo, Pera quão grande ficaste, Pequeno ficou o mundo.

Capítulo Vigésimo Tércio 87

Nem há tão forte lugar Nem nos vales nem na serra, Pera em paz te sepultar, Que, se te quiser a terra, O Céu não te há-de deixar. Mas pois tanto amaste as águas, Companheiras da tristura, Nem na terra, nem n’altura Se devem sepultar máguas; N’águas tens a sepultura. Este Crisfal, gram pastor, Muitos não sabem onde anda, Mas é certo que o Amor, Lá nas partes onde manda O fez seu cronista mor. Tem ninfas a seu mandado Pera lavrar e escrever Tudo quanto ele disser; Crisfal não tem mais cuidado Que cuidar que há-de dizer. Umas horas corre as terras, Outras horas corre os mares, Vendo nos vales ou serras Prazeres contra pezares,

Anda-lhe escrevendo as guerras. As ninfas o vão seguindo

E o que ele diz escrevendo; Se os prazeres vão vencendo, Ali vai o Amor ouvindo Quanto Crisfal vai dizendo. Antre mil flores e rosas Anda escrevendo doçuras E mil coisas amorosas; E quando escreve amarguras Não parecem amargosas. Tudo torna brando e doce, Quanto de amor vai contando; Se de pedras vai falando, (Como se ele o Amor fosse) Pedras vai no Amor tornando. E por isto o Amor ver,

Está dele tão contente, Que, quando há cá de descer, Lá o deixa em Oriente Com seu comprido poder. E andasse cá muitos dias De Oriente descuidado, Mas depois que é lá tornado, Com dobradas alegrias, Acha tudo melhorado.

Capítulo Vigésimo Tércio 88

Neste bem, neste favor Se anda Crisfal recreando, Tudo foi pera melhor, Pois lá lha vão descontando, Se cá teve alguma dor. Que, por ser cá tão cursado Na sua grande tristeza, Alcançou tanta riqueza, Dantes posto em triste estado, Posto agora em tal grandeza. Mas uma coisa que faz, Notai bem pera notar Que com quanto mando traz Nos mares mais quer andar E qualquer água lhe apraz. Por ventura se lembrava Como cá com ele choraram; E pois cá o ajudaram, Nisto agora lhe pagava, O que lhe então emprestaram. Quem quiser dele saber Do seu fim sua ventura, Vasse (sic) d’onde água correr, Que aquela é sua figura, Que eu não vos sei mais dizer. E não é pera espantar

Se nos rios corredores Descansem mais amadores, Pois nasceu dentro no mar Vénus, deusa dos amores. Só pera altos pensamentos Dizem ser tal livro feito, Mas os baixos sentimentos Podem ter sentir perfeito, Se cursarem seus tormentos. Que, inda que temos ser rudo Com mil faltas e fraquezas, Se cursamos as tristezas, Elas nos ensinam tudo, Elas limam as rudezas.

No documento Revisão de texto e reformulação de índices (páginas 105-116)